16 de mar. de 2010

A tragédia humana de "Ensaio sobre a cegueira"

Nas lentes de Fernando Meirelles, o livro de José Saramago ganhou uma adaptação fantástica, em todos os sentidos. "Ensaio sobre a ceggueira", mais recente trabalho do diretor brasileiro, é daqueles filmes capazes de arrebatar a plateia indo a fundo em suas consciências, através de uma mensagem urgente. Capitaneado por um elenco que está em perfeita simbiose dramática, ele apresenta uma investigação, assim como acontece no livro, a respeito de uma inexplicável epidemia de cegueira branca que assola uma cidade que nunca é nomeada.

Logo no início da trama, um homem não consegue mais dirigir seu automóvel, pois tudo o que vê é um líquido leitoso, que bloqueia toda a sua capacidade de enxergar, e o faz abandonar o veículo. Dali a pouco, vários outros habitantes da grande metrópole estarão contaminados pelo mesmo mal, sem que se saiba ao certo a razão daquilo. A sensação que se instaura sobre a população é de pânico total, por não saberem como lidar com um problema que não sabem de onde vem e nem como podem solucionar. Aos poucos, os protagonistas, termo um tanto impróprio para designar os papeis defendidos por Mark Ruffalo e Julianne Moore, vão começando suas buscas para entender o que realmente está acontecendo. Assim como a cidade onde se dá a tragédia, os personagens dessa espécie de conto moral não recebem nome. Ruffalo dá vida ao Médico, ao passo que Moore personifica a Mulher do Médico.

Essa ausência de identidade presente tanto no cenário onde se passa a história quanto em seus personagens contribuem para que a realidade apresentada na tela seja interpretada como universal. Qualquer grande cidade e quaisquer pessoas poderiam estar naquela situação escabrosa que surge sem aviso prévio. Um aspecto interessante do filme é que há várias perspectivas mostradas em sua duração. O olhar que nos guia pode ser o de um cego, ou pode ser a visão da única mulher ainda capaz de enxergar. Somente a Mulher do Médico permanece vendo todo o caos que se faz ao seu redor, e sua condição de única que enxerga acaba sendo para ela um grande fardo. Resta a ela acompanhar e ajudar o marido, que tenta encontras a resposta para o mistério que tomou conta não só da cidade onde se passa o filme, mas também do mundo inteiro. O espectador passa a compartilhar da agonia dessa mulher em ver as pessoas dando vazão ao seu instintos mais primitivos, comportando-se como animais em busca de abrigo e comida. O pior do ser humano se aflora, de maneira a nos confrontar com nossa realidade perversa, sempre mascarada por convenções sociais coecirtivas, que garantem o bom funcionamento da vida em estado gregário.
Outros personagens vão sendo apresentados, como uma bela jovem que tenta encontrar um caminho para sua sobrevivência, vivida por um correta Alice Braga. A atriz vem consolidando sua carreira com bastante talento, aparecendo ao lado de outros ótimos atores, e mesmo com sua participação pequena, demonstra segurança e domínio de seu papel. Outro que também acerta em sua composição é Danny Glover. O veterano ator vive o Velho com Venda nos Olhos, e transmite o desalento com o mergulho no abismo da falta de visão. Sua presença no elenco enobrece ainda mais a produção de Fernando Meirelles. Até mesmo Mark Ruffalo, habitué de filmes bobos como "Voando alto" e "De repente 30", transparece maturidade na pele do Médico, servindo de comprovação para a excelente direção de atores de Meirelles. Em sua incapacidade de ver, ele mostra desespero e despreparo para lidar com uma condição que pode ser irreversível. Seu tlento artístico já havia aparecido em outras obras, como é o caso do delicado "Minha vida sem mim", mas parece que somente com "Ensaio sobre a cegueira" ele ganhou mais que notoriedade. Tornou-se um ator mais digno de crédito.

Quando foi exibido em Cannes, o longa causou uma reação um tanto fria na imprensa e nos demais presentes em sua sessão. Esse foi o filme eleito para abrir a 61ª edição do festival, e apesar de certa frieza da parte da alguns, em outros o filme despertou a certeza de que aquela era uma das melhores obras que dava início aos trabalhos na Croisette em muitos anos. O fato é que trata-se de uma obra ante a qual é difícil ficar impassível, tamanha a contundência com a qual os acontecimentos são retratados na tela. Algumas sequências são bastante incômodas, como o momento em que várias pessoas, incluindo a Mulher do Médico, que se finge de cega, estão confinadas em um hospital já sem qualquer condição de higiene, disputando alimento como cães famintos que sequer sabem o que estão comendo. É desolador ver a progressiva transformação de pessoas antes civilizadas(?) em seres sem qualquer senso de humanidade. Eles estão ali abandonados à própria sorte pelo governo, que já não sabe mais o que fazer para conter a epidemia. O personagem de Gael García Bernal reforça esse aspecto doentio do homem, na pele de alguém que não se importa em praticar todo tipo de violência para defender sua porção. Quando exige que as mulheres que estão do outro lado do local de confinamento sejam levadas até ele e aos outros homens dali para que sejam estupradas em troca de comida, o asco é inevitável.
A fotografia em tons esbranquiçados é outro elemento que configura uma importante ferramenta para a potência narrativa do filme de Meirelles. Ela auxilia a enxergar a situação tão difícil que se alastra por toda a população, dando uma sensação forte de não poder fazer absolutamente nada. "Ensaio sobre a cegueira" funciona brilhantemente como um painel da crueldade humana em meio aos tempos hodiernos, em que a compaixão e a generosidade estão diminuindo cada vez mais, sem que muitos se deem conta. A perda da capacidade de enxergar pode refletir isso, tanto física quanto psicologicamente. É uma perda de crédito no homem e em sua sensibilidade. Ao chegar ao seu final, o filme ainda traz uma mensagem de esperança, mas deixa a pergunta no ar: nossa caminhada rumo à própria destruição ainda tem volta?

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