21 de dez. de 2009

O pulsar do coração em "Apenas uma vez"

"Apenas uma vez" é uma agradável surpresa para os fãs de um cinema que conta boas histórias sem recorrer à pirotecnia. Rodado na bela Irlanda, de onde vêm imagens de encher os olhos, o filme de John Carney é a mais pura expressão da naturalidade e do realismo, ao retratar o encontro e o desencontro de duas pessoas absolutamente comuns no centro de Dublin. O aspecto documental é um detalhe que chama logo a atenção do espectador. Eles não são sequer nomeados, o que é mais um índice de
indeterminação dos dois sujeitos, por assim dizer.
Os dois se conhecem nas ruas da cidade, onde ele toca violão para obter algum dinheiro, quando não está ajudando seu pai na loja de instrumentos musicais da famíia. Ela precisa de alguém que possa consertar um velho aspirador de pó com defeito, e encontra a ajuda na figura dele. Está dado o início de um conto curto e muito comovente sobre aproximação e sublimação da vontade.

A música tem um papel decisivo na história dos dois, uma vez que ambos tocam. Ela tem habilidade com o piano, fato que se revela na cena em que eles vão até uma loja de um amigo dele e ambos compõem uma canção aproveitando a presença do instrumento no lugar. É dessa cena que sai a melodia mais bela de todo o filme, da qual sai a música-tema vencedora do Oscar em 2008. Trata-se de "Falling slowly", uma simples e bela música sobre um encontro fugaz de dois amantes, cantada lindamente pelos
protagonistas. Aliás, nenhum dos dois é ator profissional, o que ajuda a entender a enorme naturalidade com que atuam diante das câmeras. E o talento com a voz e os instrumentos não é mero acaso. O diretor os escolheu a dedo, pois, na vida real, ambos são cantores e compositores. Com isso, a fluidez evidente nas cenas musicais (quase todas do filme) tem uma explicação.

Cada momento do enredo é permeado por uma espécie de estética da sinceridade, em que se verificam duas pessoas daquelas com as quais se esbarra todos os dias nas ruas demonstrando tudo aquilo que são de verdade. Essa característica faz de "Apenas uma vez" um filme atraente e saboroso, que faz muito bem aos ouvidos. É de impressionar a beleza das letras das cançõesm, que traduzem prefeitamente as sensações de incerteza, de euforia e de desestrutura que acometem quem ama. Ainda que em algumas passagens a visão de Carney seja um tanto romanceada, nunca a história cai na ingenuidade. Tanto ele quanto ela se sentem atraídos um pelo outro, mas ambos também têm outras pessoas de quem se lembrar, não totalmente apagadas de suas vidas. No caso dela, há uma filha pequena que a faz lembrar disso diariamente.
O tempo de filmagem do longa é recorde: somente 17 dias, e com um baixo orçamento. Não deixa de ser um recado para os grandes produtores sedentos de cifras cada vez mais altas, que deveriam se preocupar um pouco menos com efeitos escalafobéticos e dar também atenção às histórias simples que falam ao coração. No caso do filme de John Carney, a sensação que fica ao final da sessão é a de que ainda é possível acreditar na magia do cinema.
No fundo, "Apenas uma vez" leva a refletir sobre a condição humana, sobre a fragilidade dos sentimentos e da incerteza diante de tudo, principalmente do amor. Tudo isso musicado com muita poesia e encantamento, num tom quase fabulístico.

12 de dez. de 2009

"Volver", uma história forte e comovente

Nas mãos de grandes diretores, mesmo as pequenas histórias podem ganhar uma dimensão de qualidade sem par. Exatamente como sucede a alguém que se chama Pedro Almodóvar, espanhol que é sinônimo de cinema de bom gosto. Em "Volver" ele mais uma vez destila sua verve dramática na condução de uma trama de predominância do sexo feminino, uma constante em sua obra. Aliás, a filmografia almodovariana passeia por vários estilos, mas sempre com uma base muito forte: as relações entre mães e filhos, mulheres com uma força incrível, entre outros elementos facilmente identificáveis pelo público, e que também são apontados pela crítica.

Rodado em 2006, essa nova obra-prima traz Penélope Cruz num reencontro com Almodóvar, depois de 7 anos de ausência em seus filmes. Foi um grande acerto do cineasta, pois ele deu a atriz um de seus melhores papéis de sua carreira, a intensa Raimunda. Seu drama começa quando a filha, uma adolescente na típica fase de autoafirmação, assassina o pai durante uma forte discussão. O fato é o elemtento desencadeador das reviravoltas do enredo, já que Raimunda se vê obrigada a tomar uma atitude drástica com o intuito de acobertar o crime da filha. A saída encontrada pela personagem é, no mínimo, inusitada.
Do assassinato em diante, ela precisa encontrar uma forma de ganhar dinheiro, e a oportunidade surge quando uma equipe de filmagem vai rodar um filme perto de sua casa. Logo, Raimunda se oferece para cozinhar para todos em troca de pagamento. A jovem viúva encanta os membros da equipe com seu talento culinário, e eles acabam prolongando mais um pouco sua permanência no local em que foram filmar.

Entretanto, outro fato importante ocorre e desmonta uma convicção da personagem: sua mãe, que ela e as irmãs julgavam estar morta, reaparece, somente para sua irmã mais nva, e, depois, para ela também. Inicialmente perturbada com a surpresa, Raimunda decide ajudar a mãe, que está mais viva do que nunca, a retomar sua rotina. Assim, Irene, a mãe morta-viva, começa a trabalhar no salão de beleza montado pela irmã mais nova de Raimunda em sua casa, fazendo-se passar por uma cabeleireira estrangeira.
O reaparecimento de Irene é o começo de um acerto de contas familiar para essas mulheres, que precisam lidar com questões traumáticas do passado, feridas que insistem em não cicatrizar. Sem alternativa, todas são confrontadas o tempo todo com o que fizeram de suas vidas até aquele momento.
Partindo desse argumento que rompe em certa medida a fronteira entre real e fictício, Almodóvar faz mais um filme de cores fortes, porém sóbrias se comparadas às suas produções oitentistas, e de diálogos passionais. Além de, mais uma vez, encher a tela com a presença magnética e vibrante de Cruz, indicada ao Oscar de atriz por sua Raimunda. A cena em que a personagem canta acompanhada de músicos num jantar é simplesmente apaixonante, já que, ali, toda a sua sensualidade se aflora. Se o espectador ainda não havia se deixado levar pelo encanto de Raimunda até então, não segue impassível a ela dessa cena em diante.

O espanhol expõe em "Volver" as suas obsessões, falando da grande força do sexo dito frágil, e brindando o público com passagens de rara beleza. A trilha sonora, a cargo de Alberto Iglesias, é um deleite para os ouvidos.
O filme também traz a figura talentosa de Carmen Maura, habituée do diretor em outros tempos, e que aqui, como as demais mulheres do elenco, é homengeada o tempo todo. A presença pífia dos homens, aliás, é fato recorrente em seus longas, que exaltam a força delas em detrimento da debilidade masculina.
A afetividade fica por conta da ambientação da história em La Mancha, terra natal de Almodóvar, e que, no filme, é constantemente castigada por fortes ventos, que já foram responsáveis por incêndios mortais. Sem ser manipulador, ele comove com uma história saborosamente bem contada, que faz bem ao olhar e à audição, reflexo de um roteiro bem escrito e um elenco que dá o melhor de si. "Volver" prova que a melhora pode vir mesmo com o tempo, tal qual sucede aos vinhos. Aqui, o cinesta mostra um estilo mais refinado e contido, sem abrir mão, porém, do talento. Resta a quem assiste embarcar na narrativa, aliado ao pacto ficcional, suspendendo sua descrença e se deixando comover pelo que vê na tela.

6 de dez. de 2009

Romantismo e fugacidade em "Todos dizem eu te amo"

A instabilidade dos sentimentos é o grande tema de "Todos dizem eu te amo", vigésimo sexto filme da carreira de Woody Allen. Cineasta dos mais produtivos, seu ritmo atual de produção, um filme por ano, começou ainda nos anos 80. De lá para cá, sua obra tem tido, segundo a crítica especializada, momentos de plena inspiração e instantes de certa debilidade criativa.

Mas para fãs essa divisão faz pouco sentido, visto que, a exemplo de outros filmes, "Todos dizem eu te amo" versa sobre temas corriqueiros para qualquer mortal. Estão lá os arrepios típicos da paixão, as besteiras que todos fazemos diante da
pessoa amada unicamente com o intuito de impressioná-la, e a incerteza em relação a uma vida inteira ao lado de uma pessoa. Pode ser que, em alguns casos, Allen não tenha sido muito feliz na captação desses assuntos em seus filmes, mas é sempre uma delícia acompanhar a trajetória de seus tipos desajustados, loucos adoráveis.
Num filme que fala escancaradamente de amor como esse, não poderiam ficar de fora cidades tão românticas como Paris e Veneza. E elas aparecem, com tal força que podem ser consideradas personagens da narrativa. A presença de ambas é luminosa, principalmente Paris, que serve de cenário para uma dança entre os personagens de Allen e Goldie Hawn.

"Todos dizem eu te amo" conta, de maneira musicada, as histórias de amor de uma família tipicamente novaiorquina (mais alleniano, impossível). Cada membro do clã dos quais Joe (Allen) e Steffi (Hawn) são patriarcas vive, à sua maneira, uma paixão. Como Skylar (Drew Barrymore), que está encantada por Holden (Edward Norton), com quem vai se casar logo. E também as irmãs Laura (Natalie Portman, ainda adolescente) e Lane (Gaby Hoffman), que estão experimentando o sentimento pela
primeira vez. Há vários outros personagens que transitam pela história ao longo de seu transcorrer, e citar todos seria como transcrever uma lista telefônica.
Cada um deles, ao se juntar, forma um coro divertido de canções, que servem de elemento de ligação entre as subtramas do filme. Aliás, ele pode ser apreciado como um musical desengonçado sobre as armadilhas do amor, e também sobre suas consequências, ora cômicas, ora dramáticas. Os personagens têm todos uma aura cativante, e são muitos os destaques em todo o longa. Julia Roberts, por exemplo,

está perfeita como uma mulher inconstante que deseja uma aventura para sair da mesmice do seu casamento, mas que, depois, percebe que precisa da rotina de antes. O avô da família também é outro achado, com suas atitudes insólitas, que enlouquecem a todos, principalmente a empregada. Há, ainda, espaço para discussões entre pai e filho por causa de diferenças de opinião política, e é essa uma das passagens em que o humor arguto de Allen entra em ação, questionando a validade do comunismo ou do capitalismo.
No geral, o filme tem um roteiro bastante inspirado, e entretém do início ao fim com suas piadas inteligentes e suas locações charmosas. Desde os primeiros minutos, o espectador é seduzido por cenas divertidas e situações inesperadas que podem surgir para os amantes. Como na sequência em que Holden vai a uma joalheria comprar um anel de noivado para Skylar, e se vê sem muitas escolhas por causa do alto preço das joias. Quando, enfim, escolhe uma, começa a cantar e dançar junto com os clientes do lugar, comemoranro seu casamento vindouro. Até mesmo fantasmas camaradas entram em cena. Assim, o público vai acompanhando com atenção e curiosidade o desenrolar das ações. Definindo em poucas palavras, pode-se dizer que é um filme recomendado para quem ama amar.

1 de dez. de 2009

A louca jornada de "A vida marinha com Steve Zissou"

Alguns cineastas são capazes da façanha de impor uma personalidade bastante própria às suas obras. Seus filmes se tornam facilmente reconhecíveis por marcas registradas que a eles ficam associadas, o que é uma qualidade ou um defeito, a depender do ponto de vista ou do gosto do espectador.
Talvez por isso Wes Anderson seja um diretor que divida opiniões. Seus trabalhos estão impregnados de uma visão algo cínica do mundo e da humanidade, sempre de uma maneira nada óbvia. Podem se encaixar em rótulos, mas sempre escapam a eles. Veja-se o caso de "A vida marinha com Steve Zissou", terceiro filme do cineasta. Pouco interessa aqui o enredo sobre o qual o roteiro está baseado, ainda que seja ele a mola propulsora do longa.

O elenco é algo que já depõe a favor da qualidade do filme: protagonizado por Bill Murray, um dos melhores atores em atividade, que vem ladeado por nomes como Anjelica Houston e Cate Blanchett, não se pode esperar nada menos do que ótimo. Na pele do protagonista, Murray faz um trabalho impecável, vivendo um oceanógrafo que perdeu um grande amigo morto por um tubarão numa de suas expedições submarinas. Seu desejo de revanche o move a um retorno às águas do trágico acidente, e com ele vão uma série de tripulantes, entre eles, uma jornalista (Blanchett), um jovem que pode ou não ser seu filho (Owen Wilson) e sua esposa (Houston). São apenas aperitivos da insólita jornada que está por vir.
A cada entrada de um personagem na história, um novo e curioso tipo é apresentado ao público, que tem a chance de se deliciar, já no meio da trama, com uma galeria de seres improváveis. O humor do filme surge dos momentos mais inusitados, e provocam sorrisos de canto de boca, não necessariamente garagalhadas temporárias, como a maioria das comédias (aí está a força dos rótulos) atuais, um apanhado de piadas descerebradas. Cada ator demonstra estar dando o melhor de si para o conjunto da obra, que é magnífica. Cate Blanchett, por exemplo, atuou grávida, depois de aceitar o papel que fora oferecido a Gwyneth Paltrow.

Um dos grandes achados do filme é a maneira com que Anderson concatena as partes da narrativa. É através do personagem de Seu Jorge, que toca canções em seu violão o filme inteiro, e são elas que delineiam os acontecimentos do filme. Versões brasileiras de músicas consagradas que bons observadores e ouvintes atentos reconhecerão certamente. O cantor, aliás, sai-se muito bem em sua função de ator ocasional, incorporando a melancolia irônica característica dos filmes do diretor, transmitida em seu olhar desviado do interlocutor.
A fotografia também é um aspecto que merece ser citado como uma das qualidades do filme. As imagens subaquáticas, com um quê de artificiais, sublinham a proposta de uma estética mambembe, digna de ser apreciada. Entre os elementos que a confirmam, está o uso de um tubarão falso nas sequências em que o tal acidente com o amigo de Zissou é lembrado. Por falar no protagnista, sua caracterização é uma homenagem ao grande Jacques Costeau, mais conhecido oceanógrafo.
Como seu longa precedente, "Os excêntricos Tenembaums", Anderson exercita em "A vida marinha..." seu talento para criar figuras carismáticas e capazes de gerar identificação com o espectador por suas fragilidades e pequenas loucuras. No fundo, sob a verniz da empáfia, escondem-se constatações sobre o bizarro da vida, que não pode ser levada totalmente a sério. Esse olhar acurado se traduz em reflexões sobre as contradições da existência, que marcam qualquer indivíduo em alguma fase de sua vida. Um filme interessado nessas questões, e que ainda proporciona entretenimento, é verdadeiramente uma opção maravilhosa, nas telas de cinema ou nas prateleiras de uma locadora.