28 de fev. de 2011

O empolgante jogo dialético de Cópia fiel

Com um cinema costumeiramente atrelado a questões orientais, o iraniano Abbas Kiarostami não está, necessariamente, circunscrito como realizador ao seu país de origem. Esse septuagenário nascido em junho de 1940 gosta de brincar com os dispositivos que envolvem a representação, e de lançar ideias provocativas a esse respeito. Além disso, também já se dedicou a traçar retratos precisos da sociedade em que se insere, mas nunca deixando o seu modo de filmar soar fixo nesse espaço. E treze anos depois de ter sido premiado com a Palma de Ouro em Cannes por Gosto de cereja (Ta’m e guilass, 1997), em que abordava uma trama de tentativa de suicídio, ele vem impávido com seu novo trabalho, o sensacional Cópia fiel (Copie conforme, 2010).
O diretor se aproxima, com esse filme, de seu Close-up (Nema-ye Nazdik, 1990), em que também buscava uma aproximação discreta entre o real e o ficcional, ao trazer a história de um rapaz que se passava pelo diretor Mohsen Makhmalbaf, até o dia em que sua farsa foi descoberta. Kiarostami foi autorizado a filmar o julgamento do jovem, e buscou levar a cabo sua proposta de fundir aqueles dois polos aparentemente antagônicos citados acima. Cópia fiel nos apresenta uma narrativa sobre um escritor que acaba de lançar um livro cujo título é o mesmo do filme em questão. Em sua obra, ele defende o valor da cópia na arte, e polemiza ao postular que, no universo artístico, o plágio é recorrente e necessário. O filme começa com os créditos sendo exibidos pacientemente na tela, tendo ao fundo o lugar onde James Miller (William Shimell), o escritor, proferirá uma palestra em que comenta a respeito de seu trabalho.

O cenário no qual ele é levado a debater sobre as questões que levanta em seu livro é uma pequena cidade situada na Toscana, região da Itália cujo dialeto foi eleito para ser a língua italiana standard. Logo nesse começo, James é instado a explicitar com mais força o que o leva a pensar positivamente acerca da cópia na arte, e inicia uma discussão que vai permear todo o filme. Na plateia que assiste a ele, está uma mulher exuberante (Juliette Binoche) que se interessa muito pelo teor do texto do autor, mas que tem de sair dali rapidamente por conta do pedido insistente de seu filho para que eles vão procurar um lugar para comer. Uma vez tendo saído dali, ela vai travar um diálogo franco e, por vezes, divertido com o garoto. Nessas duas primeiras sequências, já se pode perceber que o diálogo é a grande fonte de espetáculo de Cópia fiel, que evoluirá paulatinamente para uma intensa sessão de análise por meio da palavra.
James acaba por se aproximar daquela mulher, que jamais é nomeada, o que só reforça a aura de mistério que se constrói em torno dela. Depois de se aproximarem, eles darão início a um intrincado jogo de aparência x essência que acaba por fundir a compreensão do espectador mais atento e exegético. A princípio, pensa-se que o relacionamento entre o escritor e aquela mulher, que é dona, justamente, de uma galeria de arte, seja de amizade ou, no máximo, de uma conquista. Mas logo eles desenvolvem uma astuta conversa em que parecem dar vida a personagens, assumindo personas distintas daquelas que demonstraram inicialmente. Ela convida James para um passeio pela cidade que ele está visitando, e é nesse passeio aparentemente inofensivo que os diálogos incríveis são travados entre eles. Cabe ressaltar aqui o talento incontestável de Juliette Binoche como intérprete, que reafirma seu prestígio entre os diretores franceses e sua posição como uma das melhores de sua geração. Ela é a encarnação da beleza e da intensidade dramática, e seu trabalho impecável lhe deu a Palma de Ouro de melhor em atriz no festival de Cannes de 2010. A atriz transita muito bem entre o inglês, o francês e até no italiano, trocando de idioma cada vez que troca de interlocutor. O primeiro, ela usa quando conversa com James, o segundo, quando fala ao telefone, e o terceiro, quando se comunica com a dona de um café no qual ela e James param durante o passeio.
Kiarostami parte de uma premissa ampla e rica em possibilidades de análise para depois afunilá-la no jogo dialético que se estabelece entre “ela”, a personagem sem nome, e James. Logo depois que saem do café em que ele fala longamente ao telefone, o tratamento entre os dois se modifica inesperadamente. No tempo em que eles estavam naquela pausa, a senhora que lhes serve acredita que eles são casados, e começa a comentar sobre as agruras por que pode passar um casamento. A dona da galeria de arte não se preocupa em desfazer o mal-entendido (?), e ouve os conselhos “sábios” daquela mulher a respeito da vida a dois, enquanto James permanece conectado ao celular do lado de fora. A modificação no diálogo dos dois se dá, aparentemente, por conta desse mal-entendido da dona do café. Eles passam a uma discussão da relação, comportando-se como um casal que joga no ventilador todas as suas incongruências, como quem as guardava em uma gaveta que já não mais as comportava.
Essa é a grande virada do roteiro de Kiarostami, que fez dessa a sua primeira incursão pelo cinema dalém das fronteiras de seu país, no sentido de local de filmagem. Ele também convidou uma atriz conhecida para o papel principal, algo que não costuma fazer. Por razões já comentadas, felizmente ele rompeu com essa “regra”. Alguns críticos afirmaram que Cópia fiel contém a mais longa discussão de relação do cinema, o que não deixa de ser uma verdade. Ela e James falam, falam e falam, expondo suas personalidades difíceis e fascinantes, gerando um sentimento de incerteza que não abandona mais o espectador até ao final da sessão. O cineasta remove o chão que se havia solidificado sobre o público no começo do filme, e transmuta a discussão sobre ser certo ou não copiar em um longo percurso pela consonância que existe ente mentira e verdade. A questão que se levanta é: eles estão fingindo ser o que não são quando se comportam como um casal ou são casados que, de início, estavam fingindo ser desconhecidos?

Com essa dúvida instalada no público, o realizador oferece uma obra que se abre em inúmeras janelas e portas que se desdobram em outras mil possibilidades, fazendo valer o cinema como um veículo de reflexão sobre a condição do artista e sobre as máscaras que usamos cotidianamente. Esse é um filme para se acompanhar com olhos bem atentos, esquadrinhando cada minuto transcorrido, a fim de formular uma perspectiva individual a seu respeito. Por falar em olhos, Cópia fiel conta com uma fotografia deslumbrante, que matiza a policromia do ambiente idílico em que se passa, e é um trabalho de esteta realizado por Luca Bigazzi. A direção de arte também é sublime, e é assinada por Ludovica Ferrario, que traz para as cenas um apuro visual que contribui muito para atmosfera inebriante que cerca o filme. Bigazzi é um colaborador recorrente de Silvio Soldini, com quem já trabalhou no famoso Pão e tulipas (Pane e tulipani, 1999) e em Queimando ao vento (Brucio nel vento, 2002). Ele também assinou a fotografia de A estrela imaginária (La stella che non c’è, 2006), filme de Gianni Amelio que nunca teve chance no circuito comercial carioca, tendo sido lançado diretamente em DVD. Ferrario, por sua vez, também já trabalhou com Amelio, quando foi responsável pela direção de arte de As chaves de casa (Le chiavi di casa, 2004), além de já ter sido colaboradora de Nanni Moretti em O crocodilo (Il caimano, 2006).
Por meio de Cópia fiel, o cinema contemporâneo ganha um reforço e tanto no time de longas-metragens que esmiúçam os interstícios do constante mascaramento que atravessa a condição humana. Certamente, poderá se prestar em um futuro próximo a análises acadêmicas no âmbito filosófico e literário. Essa obra monumental se soma a títulos como Sinédoque, Nova York (Synecdoch, New York, 2008), que também investiga as potencialidades da encenação por meio de uma narrativa que caminha para o terreno do insólito. À medida que vai diluindo nossas certezas sobre a dupla de atores – tanto Juliette Binoche e William Shimell quanto “ela” e James – Kiarostami demonstra que, mais do que preocupado em provar uma tese que tomou para si, ele está interessado em jogar com as possibilidades de leitura decorrentes da interpretação (com ou sem aspas?) cheia de vitalidade desses dois, lançando o público numa espécie de mise em abîme (jogo de efeito especular em que uma imagem está contida na outra e, assim, infinitamente).

26 de fev. de 2011

Através de um espelho: uma análise dos interstícios da mente

A exemplo do que começara Michelangelo Antonioni no ano anterior, 1960, Ingmar Bergman se propôs a iniciar um estudo meticuloso sobre os meandros da falta de comunicação entre os seres humanos. Se Antonioni idealizou e concretizou a sua Trilogia da Incomunicabilidade, Bergman trouxe à existência a sua Trilogia do Silêncio. Entre elas, há vários pontos de convergência, a começar pelo interesse claro por investigar por que estamos fadados à completa solidão, mesmo que tenhamos interlocutores para contar nossos problemas e outras fontes de inquietude. Com isso, os diretores adentraram um terreno incômodo e, por vezes, sombrio e aterrador.

Através de um espelho (Såsom i en spegel, 1961) abre a trilogia de Bergman, que se completa com Luz de inverno (Nattvardsgästerna, 1962) e O silêncio (Tystnaden, 1963). Os três filmes são independentes entre si no que concerne às tramas, mas todos se relacionam do ponto de vista das temáticas que os atravessam, e que perpassam a obra bergmaniana como um todo. Neles, estão presentes o vazio da existência, as incongruências da vida a dois, o questionamento da fé, o siêncio aparente de Deus, o fascínio pelos mecanismos que regem a loucura e o flagrante às máscaras de que todos nos apoderamos no trato com o outro. Para dar espaço ao debate dessas questões atordoantes, a trama de que o diretor lança mão é protagonizada por um casal que vai passar alguns dias em uma casa perto da praia.
O casal atende pelos nomes de Martin (Max Von Sydow) e Karin (Harriet Andersson), e está vivendo uma crise sem precedentes em seu relacionamento. A grande causa dessa crise são os constantes surtos psicóticos de Karin, que parece enxergar uma realidade paralela, e vem desagastando Martin com seus acessos de loucura. Na tentativa de encontrar um suposto equilíbrio, que talvez nunca tenha existido realmente, eles decidem passar um período de férias na tal casa, que se situa em uma ilha distante. Ali também estão David (Gunnar Björnstrand) e Frederik (Lars Passgård), respectivamente o pai e o irmão de Karin, que estão cientes do quadro emocional da jovem.
Utilizando-se da ilha como uma espécie de microcosmos das relações interpessoais de que todos dependem, Bergman começa a alinhavar uma poderosa radiografia dos sentimentos conflituosos que podem surgir na convivência entre as pessoas, e o faz sem deixar pedra sobre pedra. O diretor evita a obviedade no enredo, e conduz a trama em um ritmo linear, mas nem por isso, o caminho se torna mais fácil. A trama é dolorida, e o espectador mergulha junto com Karin em sua mente frágil, perturbada, e o roteiro escrito pelo próprio diretor sublinha o tempo todo que a fronteira entre sanidade e loucura é por demais tênue, e que ninguém está livre de se tornar refém dos seus pensamentos. Bergman também acerta ao escapar da abordagem maniqueísta, já que Martin não é tão-somente um marido devotado, mas também esconde sua parcela de egoísmo diante da lenta agonia da esposa. É seu sogro quem revela essa porção de sua personalidade, quando, em um passeio de barco em que somentes eles estão, lança-lhe na face a palavra, demonstrando que sabe que ele não tem sido, de fato, o melhor companheiro para sua filha.
Como em todos os filmes de Bergman até o final da década de 60, a fotografia de Através de um espelho é em preto e branco, e reporta o público para a Suécia desse tempo, não permitindo, entretanto, que se considere uma realidade distante, seja no tempo, seja no espaço. Depois de tantos anos, o cinema do talentoso diretor não ficou datado, pois os conflitos que ele aborda ainda encontram guarida no coração do homem contemporâneo. Ao longo da narrativa de Através de um espelho, ele nos desafia a procurar o fio de razão que nos orienta, e desmonta uma série de convicções que muitos temosa respeito do que é ser normal. Em momento algum a trama perde o fôlego, mas requer uma atenção acurada, pois as possibilidades de entendimento daquilo que está se passando com Karin são levantadas sutilmente nos poucos diálogos travados entre os personagens.
Nesse filme, o realizador trabalha mais uma vez com seus atores-fetiche, todos figuras recorrentes em sua longa obra. Max Von Sydow, por exemplo, vinha de uma série de colaborações com o diretor, começando com O sétimo selo (Det Sjunde inseglet, 1957) passando por Morangos silvestres, (Smultronstället,1957) O rosto (Ansiktet, 1958), No limiar da vida (Nära livet, 1958) e A fonte da donzela (Jungfrukällan, 1959). Como habitué da filmografia do diretor, ele se insere perfeitamente na atmosfera incômoda em que Bergman coloca seus personagens, e demonstra todo o seu talento para interpretar um personagem dúbio, que revela sua frivolidade à medida que a narrativa prossegue, e é então que seu lado sombrio se descortina par o público. Gunnar Björnstrand é outro que frequentemente aparece na lista de filmes de Bergman, tendo estado igualmente presente em O sétimo selo como um artista circense que beirava a ingenuidade, além de ter estado em outras obras pregressas do diretor, como Noites de circo (Gycklarnas afton, 1953) e Sorrisos de uma noite de amor (Sommarnattens leende, 1955). Ele imprime vitalidade em seu desempenho como um pai que preza pela felicidade da filha acima de tudo, e que trava embates memoráveis com o genro em prol do bem-estar dela.

Por mais paradoxal que esse comentário possa parecer, o cinema de Bergman está constantemente demonstrando o quanto se atrela à palavra, por mais que se proponha a investigar o peso do silêncio sobre as relações humanas. Os personagens de Através de um espelho se veem confinados a uma ilha, onde se confrontam o tempo todo, ainda que muitas vezes pelas vias da sutileza. Aquele cenário acaba por instaurar conflitos velados, e a fazer esvair todo o verniz que torna os indivíduos empedernidos. O diretor não se furta de ir além em termos de abordagem da dor individual, que também pode ser compreendida como universal. O filme fala de Karin, Martin, David e Frederik, mas também fala de qualquer um de nós, a cada vez que tentamos sublimar o questionamento da existência com mil artifícios.
Apropriadamente, Bergman se vale da metáfora do espelho, um reprodutor tão fiel da realidade que, ao capturá-la, devolve sua imagem invertida. Oriundo do latim speculum, o vocábulo é largamente espargido ao longo da narrativa desse filme, demonstrando que há um pouco do outro em nós, bem como de nós no outro. O cinema, por sua vez, também é o espelho que por muitas vezes nos reflete, ainda que, aos nosso olhos, possa ser enxergado com hipermetropia ou qualquer outro erro de refração. O longa é um caso raro entre os concorrentes ao Oscar. Foi indicado na categoria de melhor filme estrangeiro em 1962, da qual saiu vencedor, representando todo o esplendor da cinematografia sueca. Em 1963, recebeu uma nova indicação, dessa vez na categoria de melhor roteiro original, pela qual saiu igualmente vitorioso. As láureas entregues a este trabalho estimulante coroam o esforço de Bergman como um realizador que, a cada filme, depurava seu estilo único e inquietante, mergulhando intensamente nos recônditos da alma.

24 de fev. de 2011

Broadway Danny Rose e o amor na cidade

Aos 75 anos de idade completados em dezembro de 2010, Allen Stewart Könisberg ostenta uma filmografia que reúne nada menos que 41 títulos. Desdobrando-se muitas vezes entre as funções de diretor, ator e roteirista, esse veterano sabe como poucos fazer uso da palavra para provocar frouxos de riso e também para conduzir ao pensamento reflexivo sobre as mazelas de cada um de nós. Em Broadway Danny Rose (idem, 1984), ele opta pela primeira alternativa, à qual recorre, no geral, mais frequentemente. Suas lentes flagram o tal Danny Rose do título, interpretado pelo próprio, em uma trama sem grandes espasmos narrativos e com brilhante fotografia em preto e branco, recurso que abandonou há algum tempo.

A trama concentra seu foco na vida nada monótona de uma espécie de agente de pseudocelebridades, cujos talentos extravagantes são o pé-de-coelho do protagonista para apresentar uma arte “inovadora” a um respectivo público (pagante, é bom que se diga). Danny oferece sua chancela a tipos esgrouviados, canhestros, que não deixam de ser um reflexo bem-humorado do biótipo ostentado pelo realizador, acolhidos sem pestanejar por sua persona cinematográfica. Seu grande pupilo, entretanto, atende pelo nome de Lou Canova, papel do também cantor na vida real Nick Apollo Forte. Ele é um cantor gorducho que ainda não alcançou o estrelato. Não por falta de esforço de sua parte, muito menos da parte de Danny. Decidido a levantar a moral de seu agenciado, ele move céus e terra, até que conhece Tina Vitale (Mia Farrow), a namorada gostosona de Lou.
Está iniciado o desdobramento que trará as grandes reviravoltas da trama, que reserva hilárias surpresas em sua pouco menos de uma hora de duração. O que ocorre é que Danny entra de gaiato na agitada vida amorosa de seu cliente, e isso gera peripécias de ordem sentimental em seu coração. Lou também está envolvido com a máfia italiana, um fator degringolador de sua tranquilidade. Mas quem acaba pagando o pato é Danny. Fica notável para o espectador que Broadway Danny Rose é daqueles filmes cujo enredo traz um homem errado na hora errada, e é essa ocasião fora do esperado que responde pelas desventuras que se vão sucedendo na vida do personagem. Allen acertou novamente com essa comédia oitentista, repleta de situações divertidas pelo embaraço que causam aos personagens. A produção foi filmada no intervalo entre duas das obras mais comentadas do diretor: Zelig (idem, 1983) e A rosa púrpura do Cairo (The purple rose of Cairo, 1985) e, pela segunda vez consecutiva, o diretor se valeu do preto e branco, recurso que confere bastante charme ao longa.
Ela é resultado do trabalho esmerado de Gordon Willis, habitual colaborador de Allen nessa área. A parceira entre os dois rendeu pérolas como Noivo neurótico, noiva nervosa (Annie Hall, 1977), Manhattan (idem, 1979) e Memórias (Stardust memories, 1980). Coincidentemente, na maioria das vezes em que trabalharam juntos, Allen optou por uma fotografia em preto e branco. Na ausência de uma paleta de cores, a composição de planos acaba por valorizar muito mais os atores, e a apresentar uma ênfase igualmente intensa no conteúdo da trama que está sendo mostrada. Em Broadway Danny Rose, os tons de cinza colaboram, entre outras coisas, para adornar Mia Farrow com uma aura de mistério, já que sua personagem quase não é visível aos olhos do público a maior parte do tempo em que está em cena. Só mais pra frente, quando o filme já está em sua metade, é que podemos enxergá-la sem os óculos enormes que escondem seu olhar especial.

Aqui, o mais importante para Danny é não deixar escapar sua chance de crescimento de dividendos, encarnada na figura de Lou. É para proteger o cantor que ele se envolve em tantos problemas. E engendra pra si mesmo outros tantos, principalmente pelo fato de se apaixonar perdidamente por Tina durante as horas em que eles precisam ficar juntos para servir de escudo contra aqueles que procuram vingança contra Lou. É indispensável o comentário de que tanto Allen quanto Farrow aparecem aqui como tipos que não interpretam normalmente. Ele está especialmente à vontade encarnando um tipo boa-praça, que só quer se dar bem com seus patrocínios a figuras exóticas, e que parece ter encontrado naquele cantor a sua mina de ouro. O figurino usado pelo personagem, aliás, ajuda a reforçar essa percepção, porquanto ele lança mão de várias sobreposições de estampas, anéis, correntes e pulseiras, um visual muito mais espalhafatoso que o de outros personagens seus. Ela, por sua vez, faz a linha arrasa quarteirão, o que obrigou a atriz a colocar uma prótese nos glúteos para demonstrar mais corpo que o que realmente tem. Além do que, seus cabelos louros estão muito mais esvoaçantes, e seu comportamento é muito mais libidinoso que de costume em se tratando das mulheres que vive.
Resumindo, esse é um filme descontraído em que Allen trata novamente de suas temáticas estimadas de modo menos marcado, o que resulta em um enredo leve, que não deixa de ter seus momentos de pessimismo, ainda que mais embutido. Em parte da história, o ritmo é acelerado, como na sequência em que eles correm desesperados da perseguição dos mafiosos, e se refugiam em um galpão onde há enormes balões de gás hélio. Com os tiros que são disparados a esmo por ali, alguns desses balões estouram, e espalham o gás pelo lugar, tornando as vozes de Danny e Tina totalmente esganiçadas e hilárias. Os desencontros do coração, representados aqui na paixonite de Danny, também vão encontrar sua solução, bem ao estilo alleniano. Na cena final, em que o protagonista cochicha algo ao pé do ouvido de Tina, evidencia-se o talento do bonachão pra alcançar o seu pote de ouro daquele momento: o coração da garota que tirou seu sossego.

23 de fev. de 2011

Ternura, comoção e alento em História real

É bom quando um certo diretor se mostra capaz de presentear o público com um filme bem escrito, dirigido e encenado, já que se tem uma sensação prazerosa a fruir. Assim ocorre com História real (The straight story, 1999), um trabalho diferenciado de David Lynch. O diretor carrega consigo uma marca autoral muito forte desde o início de sua carreira, que ocorreu com Eraserhead (idem, 1977) e, 22 anos depois de seu primeiro trabalho, oferece uma proposta mais modesta de cinema, mas, nem por isso, inferior às suas obras pregressas. Trata-se de uma narrativa mais sóbria e contida de um cineasta habituado às peripécias audiovisuais, vide o filme supra-citado e também outros como Veludo azul (Blue velvet, 1986) e Coração selvagem (Wild at heart, 1990).

História real agrega ao currículo de Lynch uma mostra de sua versatilidade ao apresentar a simpática figura de Alvin Straight (Richard Farnsworth), um senhor de idade avançada e teimosa proporcional ao seu tempo de vida. Ele mora apenas com a sua filha Rose (Sissy Spacek), uma mulher devotada aos cuidados com o pai, que demonstra seu amor por ele em pequenos gestos carinhosos e sutis. O alento de Alvin é passear pela sua cidade, localizada em uma região campestre, no interior dos Estados Unidos. Tudo vai bem e sem grandes emoções até que lhe chega a notícia de que seu irmão, com quem não se comunica há anos, está gravemente doente. Essa é a deixa para que o idoso coloque em prática a resolução de ir visitá-lo, e surge em cena aquele que talvez seja o maior índice de exotismo da trama, se não o único: Alvin não dispõe de um automóvel para cobrir a distância de centenas de quilômetros que o separa de seu irmão. Por conta disso, ele resolve empregar seu velho cortador de grama como transporte para chegar até ao estado que seu irmão habita.
A decisão tomada pelo personagem abre espaço para que sua dedicada filha questione até mesmo sua sanidade, já que ninguém em juízo perfeito seria capaz de utilizar um aparelho daquele como meio de transporte. Mas Alvin prossegue em sua atitude, e se despede da filha em uma sequência que é a primeira de várias outras que decerto despertarão a comoção do público. Com isso, o filme ganha contornos de road movie, pois o protagonista tem uma longa trajetória montado sobre aquele cortador de grama absolutamente pitoresco para uma viagem. Através desse percurso empreendido por Alvin, Lynch encontra uma abertura para tratar das relações afetivas com uma delicadeza pouco esperada em se tratando de seu tipo de cinema. É um feito e tanto para ele, pelo que demonstra que é capaz de surpreender público e crítica com um enredo cativante e contido até certo ponto.
À medida que vai trilhando seu caminho, Alvin vai se deparando com variados tipos, alguns com verdadeira vocação para o abandono e sedentos de afeto em seus corações. Exatamente como a jovem grávida que ele encontra logo no começo de sua odisseia particular, a quem dá conselhos sábios, assim que descobre sua situação complicada. A convivência entre eles se dá por poucas horas, o suficiente para encher de ternura aquele coração desamparado que ela carrega em seu peito, e para fazer Alvin pensar que sua empreitada já está começando a valer a pena naquele momento. Esse é outro instante de comoção gerado pelo filme, que conquista seu espectador de mansinho, e se instala no coração definitivamente até que chegue ao seu final. História real tem a seu favor ainda o roteiro bem escrito de John Roach e Mary Sweeney, que valoriza sobretudo a interpretação dos atores para um texto que soa sempre sincero e emocionante. A narrativa nunca resvala para a pieguice, o que é um risco grande, levando-se em conta o argumento que o diretor tem nas mãos. Com isso, os personagens demonstram o quanto podem ser frágeis e limitados e, por isso mesmo, palpáveis aos nossos olhos.

Lynch dedica boa parte do tempo de seu filme a espiar com sua câmera a viagem de Alvin. Basicamente, o longa é sobre o caminho trilhado por ele, e essa característica induz a plateia a se conscientizar que o mais importante não é a chegada a um ponto determinado, mas o percurso em si. O jargão “viagem emocional”, que tanto se encaixa em filmes dessa natureza, reafirma sua força aqui, já que a longa estrada que Alvin tem pela frente é a deixa para uma rememoração ora lírica, ora soturna de suas primaveras. O filme apresenta um aparentamento com uma obra monumental do cinema: o belo Morangos silvestres (Smultronstället, 1957), em que também há um senhor viajante que entra em contato com as memórias de uma vida longa e encontra vários personagens cativantes pelo caminho. Lynch não é menos idílico que Bergman no trato com seu protagonista, e dá a chance de Richard Fansworth brilhar com folga na tela. Em praticamente todas as cenas ele está presente, e domina a ação com o talento incontestável de um veterano. É impossível não sentir um pingo de emoção que seja diante de sua atuação magistral.
Infelizmente o ator faleceu apenas 1 ano depois de filmar com Lynch, e deixou uma contribuição longa ao cinema, com uma carreira que começou ainda na década de 40, em títulos como Forja de heróis (This is the Army, 1943), passando por Ressurreição (Ressurection, 1980) e Louca obsessão (Misery, 1990). Acompanhar cada minuto de sua atuação impecável nos 112 minutos de História real é um presente e tanto para os fãs de um cinema que destaca as pessoas, e não tanto os heróis, como vem ocorrendo nos últimos anos – vide a proliferação de tramas adaptadas do universo das HQs. O seu trabalho foi minimamente reconhecido com uma indicação ao Oscar de melhor ator em 2000, que ele perdeu para Kevin Spacey, que disputava com Beleza americana (Amercian beauty, 1999).
Um senão do filme é o pouco tempo de permanência de Sissy Spacek na tela. A sua personagem sofre de dislalia, e exala uma necessidade de cuidado que leva a um carinho especial por ela. A atriz encarna com muito talento e propriedade uma mulher frágil, com necessidades como a de qualquer um de nós. A narrativa do filme chega ao seu final quase junto com o fim da viagem de Alvin, que leva o seu anseio por um último contato com o irmão às raias da loucura. É então que temos a chance de ver, ainda que por um lampejo, o bom desempenho de Harry Dean Stanton na pele de Lyle, que motivou todo aquele périplo do protagonista. O abraço apertado que eles dão assim que se reveem coroa todo o esforço feito por Alvin, e a certeza de que família não se escolhe, mas se ama incondicionalmente.

21 de fev. de 2011

A metaforização dos conflitos de jovens adultos em Scott Pilgrim contra o mundo

A geração que aprendeu a conviver cotidianamente com a tecnologia faiscante dos meios de comunicação tem um representante à altura desde o lançamento de Scott Pilgrim contra o mundo (Scott Pilgrim vs. the world, 2010). O longa-metragem dirigido por Edgar Wright (Todo mundo quase morto) é um brinde audiovisual para espectadores sedentos de uma história inventiva, não tanto em termos de conteúdo, mas de forma. Nas mil aventuras do personagem-título, encarnado pelo esquálido Michael Cera, evidenciam-se muitos dos conflitos que tipificam a segunda transição etária da vida de uma pessoa: a passagem da adolescência para a idade adulta.

Tão logo o filme começa, percebe-se sua grande inovação: a história de um rapaz que se apaixona por uma garota não muito convencional e tem de enfrentar os “fantasmas” de seus ex-namorados é narrada em ritmo de videogame, recurso que confere extrema agilidade à trama. A tela é quase um parque de diversões para Wright, que utiliza ícones, divisões de cenas e até balõezinhos de pensamento dos personagens em abundância, resultando em um apelo visual inédito em termos de filmes para o público jovem e de cinema, de uma maneira geral. Mas elas, por si só, não respondem pela atratividade que esse filme exerce. Há outros elementos envolvidos na alquimia que gera a sua qualidade.
O realismo que paira sobre cada sequência é outro fator que soma pontos a Scott Pilgrim contra o mundo. O protagonista é um garoto como qualquer outro que passa por nós pela rua ou pelos corredores de uma universidade. Nesse ponto, o tipo físico longilíneo de Michael Cera ajuda bastante a tornar seu personagem mais crível. Afinal, o chamado “cinemão” já pulverizou demais seu público com rapazes dignos de serem comparados a Adônis, tão distantes de um universo mais palpável para a maioria dos jovens que procuram por um entretenimento sob a forma de imagem. A seu favor, o filme também a série de referências que faz à música e aos jogos desses tempos hodiernos, as quais vêm batidas em uma grande liquidificador e são arremessadas de modo que dão liga e se integram à narrativa.
Basicamente, esse é um filme sobre como é difícil lidar com o passado de alguém a quem se acabou de conhecer. Scott cai de amores por Ramona Flowers (Mary Elizabeth Winstead), uma garota que conhece em uma festa, e fica decidido a tê-la, mesmo que ainda seja namorado de uma outra garota, fanática por cultura de mangá, como logo fica notável para o público. E conhecer Ramona é apenas o começo de uma incrível jornada que o rapaz viverá, pois ele descobre que a menina tem sete ex-namorados que virão de encontro a ele para sabotar seu relacionamento com a jovem. A partir da entrada do primeiro desses ex-namorados, no concurso em que a banda na qual Scott toca participa, fica claro o teor algo fabulístico da obra, que lida com as questões do coração metaforicamente, ganhando o espectador logo nas primeiras cenas. Os créditos de abertura também são muito charmosos, e apresentam o elenco de forma criativa e interessante. Aos poucos, a história vai ganhando em contornos dramáticos, trilhando ora esse caminho mais sisudo, ora o caminho da comédia franca e descompromissada. Eis outra qualidade de Scott Pilgrim contra o mundo: sua despretensão assumida. Talvez por conta desse caráter despretensioso o filme se permita ser leve sem ser descerebrado. Os jovens representados aqui têm tutano, e pesam e pensam em suas decisões com certa parcimônia, embora também tenham sua dose de irresponsabilidade.

A cada novo (ou nova) ex-amor de Ramona que aparece em sua frente, Scott se vê confrontado com a necessidade premente de enfrentar seus medos e limitações autoimpostas para assumir um relacionamento efetivo com a garota. Ele tem de dar inúmeras provas de amor e coragem toda vez que, nos lugares mais improváveis, aparece um dos fantasmas que ainda assombra o coração de Ramona. Em essência, é um filme bastante simples, que alia uma história bem contada a um visual rico, que contribui para despertar o interesse de um público que gosta de se reconhecer naquilo a que assiste. Quando o filme foi exibido no festival do Rio, a procura pelas sessões foi grande, e ainda não se tinha uma certeza sobre quando ele estrearia na cidade. Ao final da mostra, ele tinha se tornado um dos grandes sucessos de público, que teve sua sede por tramas que representam com propriedade o mundo das indecisões dos recém-chegados à fase adulta aplacada. E, para gáudio dos que não puderam acompanhar a trama em sua passagem pelo Festival, sua estreia em circuito comercial carioca ocorreu apenas alguns meses depois.
Por meio de um olhar minimamente aguçado, é possível perceber que Scott Pilgrim contra o mundo é um filme totalmente de seu tempo. Um tempo em que as várias mídias dominam o cotidiano dos jovens e adultos, que não imaginam suas vidas desvencilhadas delas sob hipótese alguma. Uma vez tendo-as conhecido, não concebem-se longe delas. E o longa incorpora essas tecnologias de ontem e de hoje para pincelar o quadro de uma geração que está sempre conectada e que aprendeu a usar a descartabilidade como critério essencial para nivelar seus relacionamentos interpessoais. Isso torna inadmissível uma união duradoura, e até mesmo o vocábulo “namoro” soa como aprisionador. E, assim, nessa conjuntura de obsolescência programada, vão minando suas chances de permanência e ligação a outrem, característica que está explícita no trabalho de Wright.
O filme é cheio de participações especiais de atores que já tiveram uma incursão anterior no universo dos nerds ou dos super-heróis. Brandon Routh, por exemplo, sai-se muito bem na pele do ex-namorado vegano de Ramona, que dá muito trabalho para Scott em sua luta. O ator viveu o Super-Homem em sua mais recente versão e, aqui, empresta seu tipo físico malhado para encarnar um cara que raciocina com os músculos, e é derrotado pela inteligência de Scott e pela armadilha em que cai com sua própria dieta. Jason Schwartzman é outro que oferece um bom desempenho como o último dos inimigos do protagonista, que oferece resistência ainda maior à derrota que os anteriores. O ator esteve no elenco de Viagem a Darjeeling (The Darjeeling limited, 2007), firmando parceria com Wes Anderson, expert em tramas inteligentes. Vale citar também a presença de Kieran Culkin entre os coadjuvantes, na pele de um dos melhores amigos de Scott, com quem ele divide a casa e os desvarios. Conforme vai se aproximando de seu fim, o longa se firma como um retrato vertiginoso e verossímel da urgência de crescer e aprender, e passa longe da receita de bolo que desabona tantos filmes que se colocam pretensamente no subgênero de filme jovem. E pensar que tudo começou apenas com um rascunho de história em quadrinhos...

18 de fev. de 2011

Lidando com os reveses e as redescobertas em Agora ou nunca

Mike Leigh é um diretor que gosta de chegar ao âmago da dor, o que o torna um cineasta meticuloso no tratamento de dramas humanos, dando-lhes um dimensionamento realista e quase palpável. Em Agora ou nunca (All or nothing, 2002), essa característica de seu cinema é perceptível, e fica difícil não reagir dolorosamente à história que ele apresenta ao público. O filme começa manso e discreto, com seus créditos em letras verdes, enquanto vemos ao longe, em um corredor, uma jovem aparentemente obesa que cuida da limpeza do lugar. Uma idosa passa por ali, e ignora o aviso da menina sobre o piso molhado. Ela é apenas a primeira personagem de uma família comovente.

O diretor não se preocupa em expor rapidamente os componentes dessa família, preferindo apresentar apenas perfis sutis de cada um, para compô-los ao longo de toda a duração do filme. Mais tarde, descobriremos que aquela jovem se chama Rachel (vivida por Alison Garland), e que é filha de Penny (Lesley Manville) e Phil (Timothy Spall) e irmã de Rory (James Corden). Também ficaremos sabendo que a vida desse quarteto não é nada simples, e que eles moram em uma espécie de conjunto habitacional no subúrbio londrino. Cada dia é de grande luta para eles, exceto para Rory, que não mostra disposição alguma para encarar um trabalho e, assim como a irmã, está com excesso de peso.
Enquanto Penny ganha o pão diário como caixa de supermercado, Phil é um conformado motorista de táxi, cuja apatia transpira a olhos vistos. Algo naquela família não vai bem, já que, cada membro transparece uma estranha falta de ânimo, cada qual à sua maneira. Aos poucos, vamos conhecendo mais habitantes daquele conjunto, personagens circunlóquios que têm suas próprias tramas. Cada um deles, entretanto, apresenta um entrelaçamento, ainda que tênue, com as vidas de Penny, Phil, Rachel e Rory. A começar por Maureen (Ruth Sheen), a colega de trabalho de Penny, que tenta de várias maneiras injetar alegria ao cotidiano da amiga e também vizinha, mas que também lida com dias sombrios em seu próprio.
O interessante de se notar naquele círculo de pessoas é que todos são trabalhados pelo roteiro de forma a jamais se mostrarem como planos, o que é um risco no caso de alguns, como a menina que trabalha cuidando da sujeira de uma casa de repouso que nunca tem tempo para se cuidar e ter uma boa autoestima, e do rapaz gordo que não se interessa por nada além de comer e dormir. Felizmente, o Leigh roteirista afasta a possibilidade de um tratamento estereotipado para eles, preferindo retratá-los com uma humanidade que os torna bem próximos da realidade. Além da família protagonista cujos dramas individuais se alternam em importância na tela e da amiga de todos, surgem, ainda, Donna (Helen Coker), a filha de Maureen, e Carol (Marion Bailey) com sua filha Samantha (Sally Hawkins), cujas vidas orbitam em torno dos dilemas diários com os quais Phil e companhia são confrontados. Donna e Samantha são rivais declaradas, e sua disputa se materializa na figura repulsiva de Ron (Paul Jesson), o namorado da primeira, para quem Samantha não hesita em jogar charme.
Agora ou nunca é um filme que não poupa os olhos e os ouvidos do espectador com diálogos e cenas pesadas. As relações familiares conturbadas são o grande polo gerador dessas sequências incômodas, que jogam na tela uma realidade desagradável, difícil de lidar. Rory trata a mãe com estranha agressividade, respondendo com grosseria às suas perguntas, assim como Donna é extremamente rude com Maureen e Samantha maltrata Carol. Cada um desses três lares é uma espécie de microcosmos de uma sociedade doente, que ajuda a levar o público a um estado de alerta sobre a condição de suas próprias famílias. Leigh não poupa a plateia em momento algum, fazendo que seus fotogramas demonstrem uma verdade cortante. Não há como não se condoer com as situações apresentadas, bem como desejar intervir nelas em busca de uma solução de ordem prática.
E as histórias de feições cataclismáticas só ganham em intensidade á medida em que o enredo avança, pois um dos membros da família principal manifesta uma doença que obriga diretamente os demais a se reaproximarem, e Donna tem de lidar com descoberta de uma gravidez que afugenta seu namorado e revela sua faceta mais desprezível. A partir de então, os personagens que pareciam encapsulados em uma certa embriaguez moral que os impedia de prosseguir são colocados diante da necessidade de revisão de seus comportamentos. Todos precisam lidar com uma busca pelo rompimento do conformismo, a começar por Penny e Phil, que deixam suas posturas de vítimas e de coadjuvantes de suas vidas. É nessa nova atitude de cada um, sempre com passos verossímeis e nunca tão repentinos, que Agora ou nunca cresce, e afirma a potência dramática contida em seu título, diferente em palavras do original (“Tudo ou nada”), mas cujo sentido é igualmente o de carência de mudança.
Em seus 128 minutos de duração, o longa é conduzido de forma magistral por Mike Leigh, um profissional que sabe contar uma história comovente e que não está preocupado em florear nada naquilo que apresenta. Esse é um filme pesado, que requer uma boa dose de resistência do público, que pode se ver agoniado em vários momentos diante dos desdobramentos que ocorrem na história. Agora ou nunca fala de gente desalentada, que parece conformada com uma vida medíocre e cheia de reveses, mas que apanha mais um pouco e acaba redescobrindo suas potencialidades para exorcizar seus fantasmas interiores e recobrar forças para modificar suas trajetórias. Sem necessariamente encaminhar tudo para um final feliz, o realizador conduz à reflexão de que um dia após o outro pode ser suficiente para reestruturar aquilo que se encontra em estado de franca desintegração, tornando o seu subtexto assaz otimista, a despeito da dor que se observa em cena.

15 de fev. de 2011

Film socialisme: trilhando o caminho da ruptura radical

Poucos filmes recentes podem ser adjetivados com o rótulo de radicais com tanta propriedade como ocorre com Film socialisme (idem, 2010). O mais recente exemplar da filmografia extensa do lendário Jean-Luc Godard é uma altiva provocação no melhor sentido da palavra, e permanece como um bastião da resistência do cineasta ao tempo e aos rótulos. Em primeiro lugar, o realizador franco-suíço abre mão da narrativa, o que gera um forte hermetismo em sua proposta de reflexão sobre tantos assuntos cobertos pelo filme. Estão lá a fragmentação da linguagem tão tipicamente contemporânea, em diálogos truncados que não permitem dar conta de um todo, bem como a mundialização progressiva que vem se instaurando no contexto em que se vive atualmente. Através desse mecanismo, Godard já vai inserindo seu trabalho na esfera do angustiante.

Que fique bem claro: esse é um tipo de filme que não permite meios termos. A experiência de se assistir a Film socialisme é, por muitos momentos, desconfortável. E nem tudo o que está sendo apresentado na tela requer, necessariamente, um entendimento pleno. O enredo, algo aparentemente imprescindível a um filme, é algo que Godard simplesmente oblitera aqui, e isso torna o seu longa uma viagem de perscruta por diferentes dispositivos de encenação. E a viagem se dá também no sentido literal da palavra, já que um dos cenários em que o filme se ambienta é um cruzeiro marítimo, onde ocorre parte da sua ação (?).
O filme está dividido em três grandes partes, que não apresentam, necessariamente, uma conexão entre si. Na primeira delas, passada no cruzeiro, personagens que jamais são nomeados dialogam sobre assuntos dos campos mais diversos, como a falência dos ideais socialistas, o valor do dinheiro e as transformações ocorridas no mundo nas últimas décadas. As conversas que se travam pelos personagens não são totalmente audíveis, e denunciam a proposta radical do diretor de experimentar ao máximo a incomunicabilidade humana em tempos hodiernos. Um nome conhecido que surge nesse trecho é o da cantora Patti Smith, que interpreta a si mesma (esse conceito é totalmente passível de controvérsia) e é um dos tópicos dos assuntos abordados pelo filme, que tem a aparência de uma tese de doutorado sobre a História como ente vivo e pulsante.
O som é um aspecto que salta aos ouvidos do espectador em Film socialisme. Propositalmente, Godard instalou um microfone no convés do navio em que se passa a primeira parte do filme, e todos – absolutamente todos – os sons do ambiente são capturados pelo microfone. Esse recurso impossibilita a audição plena dos diálogos e dos demais sons produzidos pelos personagens, já que o vento se encarrega de desorientar qualquer tentativa de compreensão mais profunda do que está realmente acontecendo em cada cena. Também por conta desse expediente, a edição de som do longa-metragem é uma das mais engenhosas de que já se ouviu falar e, certamente, mereceria um prêmio à sua altura. Como já foi comentado anteriormente, Godard não está interessado em contar uma história que apresente os tradicionais “começo, meio e fim”, mas em investigar as motivações que podem ter levado ao fim do socialismo como ideologia para uma nação, entre outros temas. O navio no qual o cineasta situa a primeira parte de sua investigação tem uma longa viagem pela frente, que inclui cidades históricas e países importantes para a humanidade, como Nápoles, Odessa, Egito, Barcelona e Palestina, cada qual tendo a sua parcela de representatividade para a suposta narrativa. Na tela, esse navio funciona como um signo da transitoriedade que perpassa as relações humanas, já que cada um de seus passageiros tem uma vida para além do tempo em que estão navegando dentro dele.

A divisão triádica não é uma novidade em se tratando de um filme de Godard, já que, em seu filme anterior, Nossa música (Notre musique, 2004), ele havia empregado esse mesmo expediente, ao propor uma paráfrase, à sua maneira, da obra de Dante Alighieri. A exemplo de A divina comédia, o diretor estruturou a narrativa de seu filme em inferno, com imagens de guerra e uma Sarajevo destroçada, purgatório, com o continente europeu nos dias de hoje, e paraíso, com um cenário pacífico onde guardas vigiavam uma pequena população constantemente. Portanto, ele já possui algum domínio dessa técnica, e acaba por construir três filmes em um só com Film socialisme. Há também uma aproximação com um trabalho de Manoel de Oliveira, Um filme falado (idem, 2004), em que um cruzeiro pelo mesmo Mediterrâneo servia de ambientação para uma viagem pelos vários marcos da civilização ocidental. A diferença é que o percurso de Godard é muito mais furioso e exegético que o do realizador português.
A segunda parte de Film socialisme é o trajeto em si pelas cidades e países acima mencionados, e é assinalada pelo uso de letreiros que lançam questionamentos e incógnitas que despertam a inquietude que habita cada espectador. Aliás, esses letreiros com mensagens aparentemente desconexas perpassam as três partes do longa, e são citações de nomes icônicos do pensamento ocidental, como Derrida, Benjamin, Nietzsche e outras figuras que ajudaram a redefinir filosoficamente o mundo em que vivemos. As cidades, como personagens desse percurso que são, choram suas mazelas, apresentam suas facetas desalentadas e erguem-se como símbolos de constante mutabilidade impressa pelo ser humano.
Na terceira e última parte da sinfonia proposta pelo cineasta, segue-se uma reflexão crítica sobre os ideais que nortearam o pensamento socialista: liberdade, igualdade e fraternidade. Eles são colocados em discussão com muita propriedade pelo realizador que fez da experimentação da linguagem a maior de suas bandeiras, e a forma brilhante como ele se apropria novamente da arte do fazer cinematográfico com esse Film socialisme atesta sua capacidade de ruptura radical com rótulos. Cannes reconheceu o talento de Godard mais uma vez, selecionando seu trabalho para a mostra paralela Um certo olhar em 2010. O fato é que é mesmo difícil enquadrar essa película nesta ou naquela nomenclatura, e o estado do espectador ao final da sessão é de confusão mental nítida, assegurada pela montagem frenética e hiperbólica adotada pelo diretor. Uma análise que dê conta das numerosas camadas justapostas e superpostas desse longa é deveras complexa, inclusive por questões que fogem à alçada do próprio Godard. Os três movimentos, por assim dizer, de Film socialisme, são insígnias da inquietação de um homem repleto de ideias que, para disseminá-las, elegeu mecanismos difusos.

11 de fev. de 2011

A existência atirada a esmo em Um lugar qualquer

Um lugar qualquer (Somewhere, 2010) começa com uma sequência que já pode ser considerada icônica: uma Ferrari anda em círculos, evidenciando que seu motorista está sem rumo, ou que apenas quer dar umas voltas sem compromisso. Esse momento inicial gera um certo atordoamento, pois não se sabe ainda quem está conduzindo aquele veículo, e o desconforto dura aproximadamente 2 minutos. Essa cena já dá conta de dimensionar a plateia para a proposta de cinema na qual Sofia Coppola investe dessa vez. A diretora de Encontros e desencontros (Lost in translation, 2003) e Maria Antonieta (Marie Antoinette, 2006) quer falar sobre o tédio e a vacância de afeto no coração.

E o tipo para levantar essa discussão é Johnny Marco (Stephen Dorff), um ator de filmes de ação (termo cada vez mais vulgar) que leva a vida na maciota, por assim dizer. Ele é o arquétipo das celebridades da cultura de massa, que arrasta um séquito de súditos pelos espaços que percorre, mas que esconde uma essência inócua, reforçada pelos dias e noites de tédio que vivencia, um após o outro. Talvez a expressão máxima desse comportamento entediado e entediante se configure em uma cena apresentada logo no princípio do longa: enquanto está deitado na cama de um dos muitos hotéis por que passa, ele assiste a duas irmãs gêmeas e louras se desdobrando na pole dance. Mas a imagem delas, em vez de lhe causar excitação, deixa-o sonolento. Elas terminam o que foram fazer ali de modo protocolar, arrumando seus objetos em seguida, e Johhny fica estático em sua cama, dominado pelo sono. A sequência ganha uma quase repetição minutos depois, quando elas voltam a dançar e, dessa vez, encantam o ator.
O comentário sobre essas duas cenas já pode servir para encaminhar o espectador para a percepção de que Um lugar qualquer é construído por meio da delicadeza, que serve como uma aura para a trajetória algo dilacerante vivida por Johnny Marco. Coppola está interessada muito mais no homem que no astro, e isso fica claro nos primeiros fotogramas. Como fez em Encontros e desencontros, a diretora desconstrói o aspecto artístico de seu protagonista para entender o que se passa em seu âmago. O filme apresenta um ritmo propositalmente arrastado, que contribui para que se note que o cotidiano de Johnny não é nada glamouroso, mas sim aflitivo para ele, que tem de cumprir uma agenda interminável de compromissos relativos à promoção de seus filmes.
A possibilidade de revisão de seus passos se instaura na figura adorável de Cleo (Ellen Fanning), a filha única de 11 anos do ator, que vai visitá-lo. Inicialmente, ela passa poucos dias com ele, como parte do acordo feito com a mãe da menina, e logo se percebe o quanto ela é capaz de injetar alegria à rotina monótona do pai. Há uma cena que traduz bastante o espírito de análise do tédio feito pela cineasta, quando Johnny leva a filha para uma de suas aulas de patinação no gelo. Os planos-sequência que mostram a garota deslizando na pista se alternam com a expressão cansada do protagonista, que antes de chegar ali nem sabia exatamente que a menina se exercitava naquele esporte, confundindo-se e perguntando a ela sobre o balé. Sofia se detém por um bom tempo no espetáculo particular na menina, e esse é um dos elementos que pode servir de justificativa para alguns espectadores classificarem o filme simplesmente como “chato”. No fundo, trata-se de uma obra permeada por simbolismos, que fazem uma ponte entre em cinema palatável e outro mais angustiante.
A convivência entre Johnny e Cleo torna-se mais intensa depois que, sem mais nem menos, a mãe da garota pede para que o pai tome conta dela por tempo indeterminado. Então, ela passa a acompanhá-lo em suas viagens de trabalho, e trafega no universo esnobe das “estrelas” que ele enfrenta todos os dias. Cleo se mostra uma menina madura e responsável, que nunca se deslumbra com os ambientes chiques e caros que eles frequentam, talvez por já estar plenamente habituada e inserida neles. Por meio desse contato mais estreito, a vida de Johnny ganha mais vivacidade, e Sofia demonstra mais uma vez um apreço por retratar uma relação paternal, dessa vez literal, diferentemente do que fizera em Encontros e desencontros. Aliás, Um lugar qualquer guarda semelhanças nítidas com seu filme retrasado. A diferença é que, nesse último, a diretora dá um tratamento mais minimalista tanto à composição de planos quanto de personagens, apostando em uma economia que pouco se encontra no chamado cinema mainstream.

Por aspectos que já foram elucidados, o filme vencedor do Leão de Ouro no festival de Veneza pode ser considerado superior a Encontros e desencontros, que é um exemplo claro de filme superestimado. A intenção de Sofia com Um lugar qualquer parece ser basicamente a mesma que teve ao dirigir Bill Murray e Scarlett Johansson como protagonistas outrora: lançar um olhar afetivo para corações desalentados. E esse seu longa vem depois de Maria Antonieta, cuja recepção hostil em Cannes faria qualquer diretor rever sua carreira. De alguma maneira, nota-se que ela não quis arriscar, ao preferir escrever e dirigir um filme que trata de uma temática que lhe é tão próxima. Talvez seja um pouco exagerado dizer que Cleo seja um alter ego de Sofia, mas a realizadora é um exemplo concreto de criança que aprendeu a crescer em meio à rotina de filmagens e viagens, como filha de Francis Ford Coppola que é. Ela aprendeu, ainda que à revelia, a lidar com a ausência do pai a maior parte do tempo, e essa também é a realidade de Cleo, que é muito mais compreensiva que qualquer outra garota da sua idade, diga-se de passagem.
Um lugar qualquer se constrói mormente de silêncios e de olhares de cumplicidade que vão se estabelecendo entre a menina e seu genitor, o que tornam a experiência de assistir ao longa-metragem um delicado exercício de observação paciente. Há muitas cenas icônicas, que merecem ser comentadas, como a que mostra a equipe de maquiagem do filme que Johnny estrela preparando o molde para sua caracterização como um idoso. Sofia gasta vários minutos mostrando o personagem ator preso naquela máscara sufocante, empregando-a como metáfora para um cotidiano de incompletude que sua carreira de intérprete lhe gera, cuja saída talvez esteja no travamento de relações afetivas mais estreitas. A sequência da tal máscara causa aflição aos nervos de quem se dá conta da necessidade que urge diante do beco aparentemente sem saída em que aquele homem se colocou.
Sofia é bastante feliz no uso da metalinguagem, um elemento que se presta a inúmeros olhares, e vem sendo analisado e utilizado com rendimentos díspares por meio da filmografia de cineastas de diferentes estirpes. Em Um lugar qualquer (título que não traduz exatamente o original, que seria algo como "algum lugar"), o olhar é encantador, e repleto de momentos ternos e sublimes. Não há muitas respostas prontas aqui, mas o apontamento para caminhos que talvez possam ser uma possibilidade de encontro consigo mesmo ou com o outro. Na cena da premiação do ator em uma cerimônia italiana, a diretora mostra com humor o deslocamento e o descolamento de Johhny Marco daquela rotina risível de compromissos, e seu olhar para a filha que está na plateia parece clamar por um socorro urgente. Ali, eles já estão na fase do entendimento algo telepático, até culminar em outras duas cenas memoráveis: o banho de sol dos personagens no hotel, que existe de fato e onde a própria Sofia já se hospedou com o pai, e o mergulho na piscina em que eles brincam de tomar chá. O filme chega ao seu final com uma nova sequência de estrada, dessa vez mostrando que a bússola do personagem talvez tenha encontrado finalmente o seu norte.

Conto de verão: a prova de que tudo pode se transformar

Eric Rohmer iniciou sua série de Contos das Quatro Estações no limiar entre as décadas de 80 e 90 com Conto da primavera (Conte de printemps, 1990), seguido de Conto de inverno (Conte d’hiver, 1992), Conto de verão (Conte d’été, 1996) e Conto de outono (Conte de automne, 1998). Em cada um desse filmes, há um fio condutor simples que serve para alimentar as discussões de cunho existencial e amoroso do cineasta, que não abre mão de ser prolixo a cada história que conta. Fica muito claro que Rohmer não está interessado em expor uma sequência de ações, mas em fazer um estudo de personagens que lhe permita abrir um amplo leque de reflexões sobre a condição humana nas mais diversas instâncias. E a mais universal de todas elas é, indubitavelmente, o amor.

O amor é combustível de Conto de verão, que tem como protagonista o jovem e instável Gaspard (Melvil Poupaud), um rapaz que está indo em direção ao balneário de Dinard, situado próximo ao mar da Bretânia. Ele pretende reencontrar por lá a sua namorada Lena. Antes disso, porém, passa duas semanas completamente ocioso, alternando idas à praia e conversas com poucos amigos. Logo ele conhece mais de perto uma simpática e solícita garçonete chamada Margot (Amanda Langlet), com quem passa a sair quase todos os dias, e a quem lhe fala de sua condição de espera pela garota que leh prometeu aparecer. Esse detalhe inicial da sinopse do filme já apresenta-nos uma inversão no tocante à estrutura de muitas obras que versam sobre o amor. Aqui, quem espera é o homem, a parte dita mais forte de uma relação a dois. Gaspard não sabe se Lena realmente aparecerá, e seus dias de aguardo por ela transpiram tédio, o que o ajuda a se aproximar de Margot cada vez mais.
Rohmer situa seu longa-metragem em um ambiente agradável, solar e, de certa forma, retorna à conjuntura que explorara em Pauline na praia (Pauline à la plage, 1983), cuja protagonista fora vivida exatamente por Amanda Langlet, que trabalha pela segunda vez com o saudoso realizador francês. A exemplo do trabalho supra-citado, ele conduz uma trama focada na instabilidade dos sentimentos, com boa dose de desencontros que podem gerar uma mudança na vontade do espectador em relação ao que pode acontecer. Rohmer se dedica a dissecar as inúmeras circunstâncias que podem envolver o sentimento de paixão, e exala domínio de câmera ao optar por um acompanhamento mais distanciado dos personagens, ao mesmo tempo em que o texto dito por eles vai despindo-os pouco a pouco.
A questão de fidelidade a quem se ama e da incerteza que se pode ter diante da pessoa que se ama ou que se pensa amar são abordadas com categoria através de Gaspard, que parece bastante desorientado com relação às suas escolhas no campo amoroso. Tanto que não consegue se decidir se ainda está amando Lena ou se já pode ter algum tipo de envolvimento mais sério com Margot. Para melhorar, surge uma terceira garota em seu caminho, que acaba por turvar ainda mais sua visão para um alvo específico, levando-o a caminhar a esmo por entre essas três jovens. Na verdade, Lena é muito mais citada do que propriamente aparece na história. Sua entrada em Conto de verão já é perto de seu final, e acaba servindo como um catalisador das decisões finais que Gaspard tem de tomar para encerrar seu período de dúvida. Antes que ela surja, o protagonista ainda vai divagar bastante no relacionamento fronteiriço entre o amor e a amizade que desenvolve com a afável Margot, que também tem um namorado, mas que não parece ser quem ela realmente quer.

A jovem demonstra uma sensatez notável para sua idade, e confronta Gaspard em diversos momentos com suas tiradas sobre o que pensa acerca do amor. É através dela que Rohmer insere conceitos filosofais que lhes são sempre tão caros, e se encarregam de tornar o filme tão verborrágico como tantos outros, e também é por ela que entram as lufadas de lucidez do filme, já que Gaspard não se mostra muito cônscio do rumo que deseja dar à sua trajetória. A câmera de Rohmer espia o tédio deflagrado entre os jovens que passeiam por aquele lugar. Mesmo estando em um ambiente formidável, nenhum deles parece verdadeiramente contente com a vida. E o diretor traça também, um painel do inconformismo que paira sobre uma geração, que não encontra no amor uma realização plena, mas sempre se vê claudicante e em busca de uma completude que nunca encontra de fato.
Conto de verão é o tipo de filme que consegue dizer muitas coisas com poucos elementos, caracterizando o que se chama de composição minimalista. O enredo é conduzido de forma convencional, e a narrativa é menos importante que o flagrante da essência dos personagens. Rohmer novamente explora o terreno das incertezas no amor, abusando dos envolvimentos intrincados entre os personagens, assim como fez nos dois primeiros filmes da tetralogia de que esse também faz parte. Ele coloca em cena um quarteto amoroso que eleva a desorientação a níveis muito altos, e entrega uma espécie de inspiração para outro diretor que adora ambientar filmes seus em praias: François Ozon [veja-se o caso de Amor em cinco tempos (5 x 2, 2004), O tempo que resta (Le temps qui reste, 2005) e O refúgio (Le refuge, 2009)]. Com o final da sessão de Conto de verão, vêm junto a certeza da incerteza, e a conclusão de que o cineasta da palavra cumpriu novamente com louvor sua proposta de confrontar as pessoas com sua letargia, apropriando-se da magnitude do efeito especular do cinema.

9 de fev. de 2011

“Tudo pode dar certo” e as colisões de pessoas orquestradas pelo Universo

Os filmes de Woody Allen são um exemplo ótimo de obra que chega muito depois de seu autor. Ao longo dos anos, os longas do diretor se tornaram uma espécie de grife para o cinema, e há quem adore dizer que ele sempre faz o mesmo filme. Em parte, isso é verdade. Em parte, é uma mentira deslavada. No fundo, o que Allen faz é procurar novas formas e circunstâncias de expressar seus temas-fetiche, chegando a resultados que, se não são sempre geniais, sempre se mostram, no mínimo, ótimos. Tudo pode dar certo (Whatever works, 2009), um de seus trabalho mais recentes, é também uma revisita do cineasta a assuntos que surgem com frequência em seus filmes. Trata-se do primeiro longa-metragem do diretor depois de uma temporada em solo europeu, que resultou nos ótimos, cada qual a seu modo, Ponto final (Match point, 2005), Scoop – O grande furo (Scoop, 2006), O sonho de Cassandra (Cassandra’s dream, 2007) e Vicky Cristina Barcelona (idem, 2008).

O grande problema de Tudo pode dar certo, na verdade, está no título que recebeu. Os filmes do cineasta, quando não são traduzidos diretamente para o português, recebem títulos desastrosos e inacreditáveis, figurando, certamente, entre os mais mal traduzidos da sétima arte. Logo em seu filme de estreia isso aconteceu, quando chegou aos cinemas Um assaltante bem trapalhão (Take the money and run, 1969). O título original do filme é simplesmente “Pegue o dinheiro e corra”! O caso mais famoso, porém, é o de Noivo neurótico, noiva nervosa (Annie Hall, 1977), cujo título em língua inglesa é somente o apelido carinhoso da protagonista. Na verdade, não há sequer noivos no filme para que esse nome seja justificado. Tudo pode dar certo é mais um caso na longa galeria de equívocos de nomenclatura em língua portuguesa da produção alleniana. O título original pode ser traduzido livremente como “Vale o que der certo”, o que combina muito mais com a perspectiva algo pessimista que o diretor lança sobre o filme. Batizado como foi no Brasil, parece muito mais ingênuo e simplório.
Conhecendo um pouco do enredo, fica mais fácil compreender o motivo da eficácia do título selecionado pelo próprio Allen. O protagonista da história é Boris Yellnikoff (Larry David, ótimo), um físico nuclear aposentado que passa o tempo dando aulas de xadrez ao ar livre. Convicto de que seja a pessoa com mais visão em todo o mundo, ele se dá o direito de insultar seus alunos sem a menor cerimônia, o que permite ao público entrar em contato com o texto inspirado do também roteirista de mão cheia. Boris é cheio de rituais e manias, algumas com um certo fundamento científico, como lavar as mãos pela duração de um Parabéns pra você, o que, segundo alguns médicos, é o tempo recomendado para eliminar os germes. Nota-se aí, portanto, umas das várias recorrências da obra de Allen: o personagem principal que é refém de manias e sempre se vê preocupado com doenças. Espectadores atentos saberão fazer uma ponte entre Boris e o Mickey de Hannah e suas irmãs (Hannah and her sisters, 1986), que é um dos exemplos mais fortes desse tipo na carreira do diretor.
Voltando a Boris, sua rotina cheia de xingamentos de pouquíssimos amigos vai se transtornando quando chega em sua casa a simpática Melodie (Evan Rachel Wood), uma jovem caipira que pede guarida a ele depois de fugir da casa dos pais. O relacionamento entre eles se desenvolve na base da hostilidade de Boris e na doçura incondicional de Melodie, que não tardará a dissolver parte da carapaça do velho rabugento – eles acabam se casando. Allen aproveita a trama como deixa para destilar sua verve irônica e sempre afiada, e insere referências eruditas que muitos leigos certamente não entenderão, como é o caso da teoria das supercordas, que, em resumo, postula que tudo o que há no mundo são movimentos vibratórios de grandes cordas imaginárias. Essa é uma das teorias mais aceitas atualmente para tentar explicar o que havia no Universo antes do Big Bang, e chega a dar nó na cabeça quando estudada com um pouco mais de profundidade.Para Boris, é uma das várias formas de expressão de seu sentimento de superioridade perante todas as pessoas que o cercam, inclusive sua esposa Melodie.
Um recurso bastante interessante utilizado por Allen com esse filme é uma subversão clara a uma das regras basais do cinema. Desde o seu surgimento, é imprescindível que se mantenha a ilusão no espectador e nenhum personagem olhe diretamente para a câmera. Desprezando esse conceito, Boris começa o filme falando diretamente a quem está assistindo ao filme, demonstrando que sua história não é nada agradável, bem como a sua personalidade. Allen derruba a quarta parede com essa cena, indo além do que alguns cineastas já fizeram. Esse não é o primeiro filme em que um personagem fala para a câmera, mas é o primeiro em que os outros personagens percebem que há alguém falando para a câmera. A estratégia foi usada semelhantemente por Laurende Dunmore em O libertino (The libertine, 2004), em que o protagonista vivido por Johnny Depp discursa para a plateia dizendo que será muito fácil destestá-lo. Mas, nesse momento, ele é o único em cena, e a sequência forma praticamente um trecho à parte no filme.

A agitada vida conjugal de Boris e Melodie é movida pelos conhecimentos que ele “doa” à jovem, que, apesar de ser constantemente hostilizada pelo marido, devolve-lhe um afeto desconcertante. Sim, no fundo, Boris não é tão mau assim, e Allen demonstra, como de hábito, que há uma essência muito humana em seus personagens. Ainda surgem várias outras peripécias na trama, principalmente depois da entrada de Marietta (Patricia Clarkson) e Brockman (Conleth Hill), os pais da jovem, que se envolvem, cada um, em jornadas particulares de autodescoberta que se revelam surpreendentes para eles mesmos e para o público que acompanha a história. Clarkson sela com Tudo pode dar certo a sua segunda parceria consecutiva com Allen, depois de ter se saído muito bem em Vicky Cristina Barcelona. Aqui, ela se despe em parte da aura de elegância que costuma cercar seus personagens, e encarna uma mulher que começa simples e algo ingênua, mas que acaba por encontrar dentro de si uma coragem e uma sofisticação que desconhecia. Por meio dos pais de Melodie, o roteiro de Allen evidencia que o ser humano está em constantes descontrução e reconstrução, e pode ser vários em apenas um só.
Aqueles que tem algum conhecimento de filmes pregressos do diretor vetusto sabem o que esperar de Tudo pode dar certo. Trata-se de mais uma obra pautada pelos diálogos, o que se configura como uma caracterísitca prototípica do cinema europeu, do qual ele soube se apropriar muito bem ao longo dos anos. O filme não deixa de fora muitos desencontros de várias ordens entre os personagens, e a realidade se assume como um lugar onde os maiores absurdos podem acontecer. Muitos críticos apontam esse longa como uma volta de Allen ao cinema que vinha praticando até antes de Ponto final, com um alter ego mais claro – impossível não perceber que o diretor poderia dar vida ao protagonista – e ambientação da trama na sua adorada Nova York, fazendo do filme uma espécie de volta às origens do diretor. Mas, a bem da verdade, independentemente de ter situado seu cinema em terras europeias nos últimos anos, Allen continua perseguindo as mesmas questões, fazendo delas o norte para sua filmografia, a grosso modo. Estão presentes mais uma vez a falta de sentido da existência, a incapacidade de lidar com a morte, e a salvação na arte, representada na personagem de Patricia Clarkson, que se torna uma nova mulher depois de descobrir o prazer da pintura.
As impressões que o filme causam no espectador são mormente positivas, e ajudam a situá-lo em uma série de discussões que vêm sendo feitas por inúmeros realizadores com igual, maior ou menor êxito, e que demonstram que podem continuar sendo feitas ad eternum, sem que haja um caminho exclusivo para apontar as suas respostas. Em parte, Allen faz um cinema de teor confessional, e compartilha boa parte de suas infinitas angústias filme após filme, fazendo de seu estilo contumaz, ao mesmo tempo, um ímã e um repelente para o público, a depender do apreço que cada um sentir por ele. O fato é que, mais uma vez, ele dá a sua cara a tapa, e sentencia desde o início que nada nesse filme é feito para que seja apreciado, apenas visto. Boris Yellnikoff afirma, tão logo a projeção começa, que não há qualquer razão para que a plateia se interesse por sua história. A sequência acaba sendo uma metáfora audiovisual para a figura de linguagem da preterição, em que, fingido despeito por um determinado assunto, o enunciador vai dele falando.

8 de fev. de 2011

“Apenas o fim” e a desconstrução do amor por meio da palavra

O cinema de tempos em tempos gosta de lançar olhares de afetividade para o campo das relações amorosas. Muitos diretores fazem dessa temática um terreno tão fértil que pavimentam suas carreiras apenas em torno dela. Assim acontece com Wong Kar-Wai, realizador de pequenas joias como Amor à flor da pele (In the mood for love, 2000) e Um beijo roubado (My blueberry nights, 2007), só para citar dois exemplos. Entre os diretores recentes, Matheus Souza é mais um a se debruçar sobre o assunto, o que o levou a conduzir o singelo Apenas o fim (idem, 2008).



O filme é um retrato do amor que realça o que ele tem de mais nefando: sua mutabilidade. Sim, antes de se esvair o amor passa por constantes metamorfoses, como passam os amantes, ou talvez porque passam os amantes. Amantes que aqui são simbolizados nas figuras algo emblemáticas de Gregório Duvivier (Antônio) e Érika Mader (a namorada de Antônio), que são jovens e comuníssimos, reflexos de um tempo e de uma geração que aprendeu a pautar suas relações pela palavra escrita (vide redes sociais e sites como MSN, Orkut, blogs e Facebook). Nada em sua personalidade parece se diferenciar daquilo que se enxerga em outros garotos e garotas de sua idade, os 20 e poucos anos. Por conta disso, eles despertam como sentimento primeiro no espectador uma certa identificação – muito mais da parte dos nerds, é bom que se diga.
A trama é das mais simples, podendo ser resumida em uma ou duas frases: uma garota decide ir embora e vai encontrar o namorado pela última vez, tendo apenas uma hora para fazer um balanço do tempo em que eles ficaram juntos. Calcado nessa premissa, Matheus presenteia muito mais os ouvidos que os olhos do público, pois seu longa de estreia é uma clara demonstração de apego à palavra. Durante os 80 minutos da história, os personagens falam sem parar, demonstrando muito do que são por meio dos diálogos que travam um com o outro. Apenas o fim foi construído no melhor estilo “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” resultando em um cinema autoral de verve alleniana, o que se verifica em vários aspectos.
A começar pelo perfil de Antônio, que se delineia em poucos minutos de projeção: o personagem é a composição arquetípica do cara perdedor, que não se dá bem com as meninas por um porte físico atlético ou por um charme irresistível, mas pela insistência e pela conversa inteligente. Além disso, Antônio é dominado em vários momentos pela insegurança, que o leva frequentemente à insensatez no trato com sua namorada, cujo nome jamais é mencionado. Qualquer eco que leve à uma associação com a persona criada por Woody Allen não é pura coincidência, pois o próprio Matheus contou que parte de sua inspiração vem dos filmes dirigidos pelo veterano novaiorquino. Esse aspecto torna Apenas o fim um pouco mais prazeroso para quem é fã de Allen, mas cabe assinalar que o filme de Matheus não é um mero decalque da produção alleniana.


O roteiro, escrito também por ele, tem uma linguagem muito própria, e que reflete com competência notável o modo de expressão típico da juventude contemporânea, embora em certos momentos fique específico demais, circunscrevendo-se a um grupo de jovens cariocas da Zona Sul viventes dos anos 2000. Tal opção feita pelo cineasta, entretanto, é absolutamente legítima, pois lhe permite lidar com aquilo que conhece bem. Afinal, Matheus é cria dos pilotis da PUC, famosa universidade privada situada no bairro da Gávea, um dos mais aprazíveis do Rio de Janeiro. Ele estudou ali e conhece cada ponto da geografia ricamente arborizada do ambiente. Nesse ponto, nota-se mais uma semelhança do “discípulo” com o mestre Allen. A Nova York amada e idolatrada do realizador vetusto também é constantemente retratada em seus filmes, evidenciando a intimidade que ele tem com seu lugar do coração.
Nas falas de Antônio e sua namorada, também não faltam referências explícitas a filmes, desenhos animados, séries e personagens que marcaram o romance dos dois, e que podem servir de espelho para muitos jovens casais. De alguma maneira, os diálogos deles sintetizam aspirações e frustrações de uma juventude que não se reconhece há muito nos enlatados hollywoodianos, que insistem em instituir um padrão de comportamento para essa faixa etária e que são mandados para solo estrangeiro para ser empurrado goela abaixo de platéias totalmente heterogêneas. E a maneira como as conversas dos protagonistas são conduzidas exala fluidez e causam um sorriso de canto de boca no espectador, que podem se tornar gargalhadas a depender da sua receptividade. Em dado momento da história, ambientada integralmente no campus da universidade em que eles estudam, uma menina passa, mas apenas eles a veem, e a namorada de Antônio diz que ela tem cara de que elegeu como filmes prediletos Diário de uma paixão (The notebook, 2004) e Um amor para recordar (A walk to remember, 2002), que são vistos depreciativamente pela protagonista e por Antônio.
Eles também brincam com outros ícones de quem viveu sua infância no início dos anos 90, citando a Vovó Mafalda, que apresentava um programa de desenhos pela manhã e que, na verdade, era um homem. Antônio demonstra sua indignação com o fato, alegando que é inadmissível um dos seres mais carismáticos de seu tempo de criança ser um homem travestido de mulher. A maneira como eles dialogam evoca outro diretor que tem forte apego à verborragia, e que atende pelo nome de Domingos Oliveira, esse sim um patrício de Matheus Souza. Como o cineasta setentão, o jovem Matheus se mostra inclinado a analisar as causas e consequências da dissolução de um amor pelo viés da longa conversa. Com seus diálogos, ele dialoga diretamente com a obra do realizador de Separações (idem, 2002) e Feminices (idem, 2004), que aborda com semelhante enxutez as agruras da vontade no que tange ao relacionamento entre duas pessoas que se amam. No caso do relacionamento de Antônio e sua namorada, cabem várias neuroses e terceiras e quartas pessoas, muitas mais advindas da parte dela e que atordoam o rapaz. Ele, aliás, tem medo de tudo, de aranhas a altura, o que contribui para caracterizá-lo como o loser que foi mencionado antes.
No fim das contas, Apenas o fim é um filmes descontraído dentro dos limites da escrita e da filmagem de um realizador iniciante e introvertido, que transpira a agonia jovem de cada dia, não esgotando as possibilidades de diálogos com a obra de outros colegas de ofício já septuagenários. A estreia de Matheus Souza na direção é louvável, e vem se somar à boa safra recente que se tem verificado no cinema brasileiro dos últimos anos. Domingos Oliveira, em cuja fonte ele bebe, elogiou bastante o rapaz, quando o filme foi exibido no Festival do Rio de 2008, chegando a dizer que Matheus poderia tranquilamente ser seu filho, pois persegue as mesmas inquietações que tomam o seu cinema. Com uma declaração dessas vinda de alguém tão experiente, há que se atentar com os próprios olhos para a trama juvenil sincera e cheia de frescor que o novato engendrou.

3 de fev. de 2011

“Nova York, eu te amo” e os desencontros na urbe contemporânea

Reunir diretores de estilos e nacionalidades distintos sempre é um negócio arriscado, tal qual dar um tiro no escuro. Mas o resultado também pode tender muito mais para a positividade, como atesta Nova York, eu te amo (New York, I love you, 2009), uma compilação de dezenas de pequenos filmes sobre uma das cidades mais esquadrinhadas, analisadas, amadas, homenageadas, romanceadas e desejadas de todo o mundo. Presente em vários títulos, ela é a alma, o corpo e o coração de lindas histórias, contadas por uma seleção caprichada de atores e cineastas.

Entre os nomes envolvidos na produção, figuram nomes que não são novaiorquinos, nem mesmo estadunidenses. Podem-se citar, por exemplo, o alemão de raízes turcas Fatih Akin (Do outro lado), os indianos Mira Nair (Feira das vaidades) e Shekar Kapur (As quatro plumas) e a israelense Natalie Portman (Closer – Perto demais). O filme é uma espécie de primo de Paris, te amo (Paris, je t’aime, 2006), que reuniu 23 curtas de 5 minutos para render graças a Cidade Luz. Parece que houve uma certa inveja dos moradores dos EUA, que motivou uma espécie de resposta à altura ao longa francês. Melhor para os cinéfilos, que se esbaldam com um grande apanhado do que há de melhor na safra recente de realizadores. Cabe afirmar, entretanto, que o resultado final de Nova York, eu te amo fica um pouco aquém do de Paris, te amo, talvez muito mais por questões de ordem subjetiva.
Enumerar detalhes e características de cada diretor e de cada história não é o escopo dessa crítica, mas algumas delas merecem ser comentadas. A primeira de todas traz uma envolvente competição entre os personagens de Hayden Christensen e Andy Garcia por uma mulher. Tudo começa em um táxi, veículo que reflete a pressa e o frenesi de uma grande metrópole. Ben (Christensen) acaba dividindo o carro com um desconhecido em uma tarde chuvosa. Depois, a história se encaminha para um bar, que serve de cenário para um divertido jogo de gato e rato entre os personagens. O segmento é dirigido por Allen Hughes, que, em parceria com seu irmão, foi responsável anteriormente por Do inferno (From hell, 2001). Para um início de filme, a história é bem simpática, e revela uma faceta algo malandra de Nova York.

Ao longo de seus 110 minutos de projeção, o filme exibe uma galeria de tipos que, em sua maioria, são memoráveis, e abre espaço para alguma pirotecnias narrativas e cênicas, e deixando espaço para intérpretes tarimbados realçaram seu traquejo para encarar papéis diferentes. Um outro curta que certamente chama a atenção do espectador é o que brinca com as idas e vindas de um relacionamento amoroso, e é protagonizado por Christina Ricci e Orlando Bloom. Os dois demonstram um bom entrosamento em cena, embora contracenem por apenas 1 ou 2 minutos. Presentes no segmento de Shunji Iwai, eles são velhos conhecidos de chamadas telefônicas, que só se encontram pessoalmente depois de uma série de pequenos desencontros. O lado mais passional da cidade que se encaixa em vários adjetivos e epítetos se revela aqui com toda a força, e é capaz de encantar um público ávido de romantismo e certa dose de idealização.
Um outro curta bastante interessante é protagonizado por Anton Yelchin, ator novato que vem conquistando espaço em Hollywood, vide a sua presença no elenco de O exterminador do futuro 4 – A salvação (Terminator 4, 2009). Ele vive um jovem que se envolve com uma garota paralítica, de quem está tomando conta para ajudar o pai dela. A paixão dos dois inicialmente apresenta contornos juvenis e hesitantes, mas o que se vê no início não é exatamente o que se concretiza poucos minutos depois. Decerto, esse filmete dirigido por Brett Ratner (Dragão vermelho, A hora do rush) é um dos mais surpreendentes de Nova York, eu te amo, pois subverte as expectativas que lança em seu prólogo. A direção de atores desse segmento é bastante eficiente, e ressalta o apuro dos roteiristas envolvidos em criar histórias consistentes.

A irregularidade é um detalhe que sempre se assinala em filmes episódicos, e é um dos clichês entre os críticos. Esse elemento aparece em Nova York, eu te amo, mas em uma escala muito pequena, insuficiente para comprometer o filme em sua macroestrutura. Como um todo, ele oferece uma sessão de qualidade para os apreciadores de uma boa história, e evoca a natureza múltipla de produções da década retrasada, como os painéis de diferentes horizontes orquestrados por Robert Altman em Short cuts – Cenas da vida (Short cuts, 1993) e Paul Thomas Anderson em Magnólia (Magnolia, 1999). Diferentemente desses dois, contudo, as trajetórias dos personagens de Nova York, eu te amo jamais se entrecruzam, tornando os cotidianos dos homens e mulheres de cada segmento um tanto estanque, para o bem e para o mal. Ainda assim, a coleção de curtas é uma experiência altamente válida e digna de atenção.
Em seu percurso pelas várias tramas costuradas sob o título acima, o público entra em contato com um dos aspectos mais sobressalentes da contemporaneidade: a fragmentação. Ao optar pela estrutura de pequeninas narrativas, os idealizadores do projeto trafegam pela via da obliteração de uma completude que já foi concebida e reclamada com mais intensidade em tempos precedentes. Cada um dos curtas tem duração inferior a 10 minutos, o que impede um apreço mais intenso por qualquer uma das histórias. Esse talvez seja o maior inconveniente do longa, em alguns momentos. Quando o espectador começa a se envolver com uma história, ele é abruptamente retirado dela, para conhecer uma nova, envolver-se rapidamente com ela, e deixá-la também, e assim sucessivamente. Vale ressaltar também que a palavra “amor”, evidente no título, assume diferentes camuflagens e análises, que endossam a riqueza do filme e reafirmam a sua condição de painel da multipolaridade humana no trato com esse sentimento.
Outro aspecto que salta aos olhos é a capacidade de mimetismo da cidade para abrigar os mais variados estilos de habitantes, trazendo novamente à tona uma peculiaridade dos grandes centros urbanos. Nova York é a urbe pulsante, o coração do mundo, com suas contradições e encantos, com seu lado deplorável e também com sua face encantadora. Como personagem que é, a cidade recebeu um olhar multilateral, e abriga pessoas em busca de um refúgio urgente para a coisificação do ser humano, caso da prostituta vivida por Maggie Q, que entra em um inteligente jogo dialético com o cliente em potencial vivido por Ethan Hawke, desmontando algumas convicções que já duram há muito sobre o amor. E também gente para quem o desalento alcançou níveis máximos, e que parece reclamar a companhia de seus iguais em alguma instância, tal qual demonstra a mulher desiludida de Julie Christie em seu encontro fortuito com o funcionário de um hotel encarnado com docilidade desconcertante por Shia LaBeouf. Ao acender das luzes desse poderoso exemplar de miscelânea audiovisual, pulsa no coração um sentimento de amor pela Nova York de cada um, que se materializa para além de qualquer referência espacial exata.