27 de dez. de 2011

Paranoia coletiva e realismo alarmante em Contágio


O filão dos filmes de catástrofe ganhou um novo exemplar através de Contágio (Contagion, 2011), recente trabalho de Steven Soderbergh. O diretor, sempre prolífico, decidiu apresentar ao público o seu olhar para uma temática cada vez mais atual: a paranoia coletiva, especificamente no âmbito da saúde. Para isso, ele parte de uma premissa recorrente em longas de ficção científica, que é a descoberta de um vírus letal que vem fazendo vítimas com rapidez assustadora. Ninguém sabe ao certo de onde vem aquele organismo com alta capacidade destrutiva, e a primeira vítima é feita com menos de 15 minutos de narrativa. Beth Emhoff (Gwyneth Paltrow) pensa estar sofrendo de jet lag quando fala ao telefone, ainda em viagem, com o marido Mitch (Matt Damon). Pouco depois, ela estará de volta para casa e apresentará estranhos sintomas, até que falece.

Ela é apenas a primeira de um numeroso catálogo de vítimas, que vai aparecendo uma após a outra, em um enredo eletrizante que começa por um fatídico “dia 2”. A morte de Beth dá a largada de uma epidemia de contornos alarmantes, que é capaz de deixar o espectador apreensivo na poltrona. Soderbergh tem por hábito dar uma leitura particular para temas e gêneros comuns no cinema, e é exatamente o que ele faz em Contágio. Ao mesmo tempo em que se vale de certos chavões dos filmes de ficção científica, ele exibe coragem para subverter certos códigos que se julgam imexíveis na gramática do gênero. O elenco é repleto de astros e estrelas, e o roteiro de Scott Z. Burns (de O desinformante [The informant, 2009], também dirigido por Soderbergh) não se furta de tirar a vida de personagens interpretados por atores famosos, como Paltrow. Há, inclusive, uma agoniante cena de necropsia com sua personagem, em que se vê, graças a uma ótima maquiagem, a retirada de seu escalpo.

Em meio ao desespero que toma conta de todos, a narrativa se multiplica em várias frentes, levando o público às altas esferas do governo e suas tentativas de solucionar o grave problema diante do qual se encontram. Ministros, médicos, governadores... todos têm uma tese para responder às perguntas que não querem calar. Assim, Contágio não apresenta exatamente um protagonista. Pelo menos, não um protagonistas humano. O vírus praticamente invisível é o personagem mais importante da história, e todos os humanos se tornam coadjuvantes diante do seu poder devastador. Qualquer um pode ser a próxima vítima. Todos estão vulneráveis e esse realismo contribui para que o roteiro se aproxime do palpável. As cenas que envolvem os aparatos para o enfrentamento do vírus, bem como os diálogos sobre seu desenvolvimento são fruto de uma criteriosa pesquisa com especialistas no assunto. Isso significa que, se estivéssemos realmente vivendo um caso de epidemia global, o cenário seria muito parecido com o que o filme apresenta.



Entre os nomes ilustres que figuram no elenco de Contágio, está Kate Winslet, no papel de uma médica austera que luta com unhas e dentes por uma resposta à agonia da população mundial. A atriz exibe a sua competência habitual, e é uma das tais coadjuvantes do filme, cuja presença é constantemente eclipsada por outros nomes, como o de Marion Cotillard, também na pele de uma profissional da saúde que também se engaja na luta contra o tempo por um antídoto àquele mal. Elas funcionam como peças de um grande jogo de tabuleiro que se estende por vários pontos do mundo e inclui cidades importantes como Hong Kong, Macau, Atlanta e Chicago. No Brasil, especificamente no Rio de Janeiro – até onde se sabe – a campanha de divulgação do filme foi maciça, e procurou dar conta de colocar o público no clima de alerta que o filme apresenta. O lema de que cada segundo é fundamental foi colocado no subtexto da campanha e de todo o filme e, diga-se de passagem, deu muito certo.

Matt Damon é outro ator importante do elenco, e o que mais se aproxima do posto de protagonista da trama. Como Mitch, ele é o único que, inexplicavelmente, permanece imune ao vírus, e enfrenta a barbárie em que o mundo se tornou. O ator vem de outras cinco colaborações com Soderbergh, que incluem títulos como Confissões de uma mente perigosa (Confessions of a dangerous mind, 2002), em que fez uma ponta. De certa forma, é possível traçar um rápido paralelo entre seu personagem em Contágio e a Mulher do Médico (Julianne Moore) de Ensaio sobre a cegueira (Blindness, 2008). Se ele é único a que o vírus não alcança, ela é a única que mantém a faculdade de enxergar. Não por acaso, ambos os filmes foram colocados em pé de igualdade por alguns espectadores e críticos, o que é uma meia verdade. Cada um deles apresente identidade própria, embora ambos apontem para cenários cataclísmicos.

No fundo, Contágio é mais um exercício de Soderbergh pela reinvenção de gêneros e perspectivas, como ele já fez tantas vezes – Full frontal (idem, 2002) é um outro exemplo. O roteiro é dotado de um estrutura algo didática, com a narrativa distribuída um tanto linearmente, começando pelo dia 2, passando por outros que são determinantes para o desenrolar dos fatos. O tal dia 1 é a grande incógnita, que não deixa de ser respondida, ainda que de modo um tanto óbvio a certa altura. Ainda há espaço para a discussão da força das mídias em sua potência disseminadora de informação, traduzida no personagem de Jude Law, estranhamente caracterizado e dotado de uma ferocidade que o faz impassível diante da vontade de manter todo a par de cada notícia que surge na comunidade científica. Ao fim da sessão, resta a noção de que Contágio é mais um trabalho convincente e competente de Soderbergh, que vai além do entretenimento e gera reflexão.

20 de dez. de 2011

Chagas profundas e difíceis de carregar apontadas em Submarino


Dolorido como poucos, Submarino (idem, 2010) assinala novamente a capacidade de Thomas Vinterberg de incomodar e impactar. Narrado com uma quase assepsia, o filme se foca nas dificuldades de relacionamento de dois irmãos com o mundo, bem como entre si mesmos. Nick (Jakob Cedergren) e Martin (Peter Plaugborg) foram profundamente marcados por um trauma na infância, envolvendo sua mãe e seu irmão mais novo, do qual nunca demonstram, na idade adulta, completa superação. Eles estão há muito tempo sem se ver, algo que fica claro depois que a narrativa do filme sai do curto flashback inicial e chega ao presente do enredo. Nick aparece desde o começo como um homem atormentado e arredio. Martin só retorna à cena com quase uma hora de filme.

Pautado pela lentidão, Vinterberg entregou mais um filme pungente, exibindo a mesma destreza na captura das discretas nuances que envolvem os seres humanos. A exemplo de sua faiscante estreia mais de uma década atrás, com o incisivo Festa de família (Festen, 1998), ele vislumbra o cotidiano de pessoas ligadas por laços sanguíneos e as derivações nem sempre tão benévolas desse tipo de relacionamento. Submarino é um trabalho denso, desprovido de boa parte da palatabilidade dos filmes comerciais que sempre têm espaço garantido no circuito exibidor, para dissabor de muito entusiastas de produções dessa estirpe. A situação piora quando se trata do cinema escandinavo, como é o caso do filme de Vinterberg, que foi exibido no Festival de Berlim de 2010 e chegou ao Brasil com um relativo atraso.

Na idade adulta de ambos os irmãos, o foco do longa, eles lidam com as limitações que a vida lhes impõe, cultivando comportamentos tantas vezes reprováveis. Nick flerta com a cafajestagem, fazendo de uma namorada um par descartável, ao passo que Martin trilha um caminho de vício em heroína, o que não o impede de se demonstrar um pai extremamente amoroso com o filho, embora, por seu problema, ele represente um grande perigo ao garoto. Como se pode perceber, a dupla de protagonistas caminha o tempo todo no fio da navalha, e angustia o público com suas escolhas errôneas e frustradas. Vinterberg espia um cotidiano dolorido, longe de qualquer floreio e edulcorante, como quem lança luz sobre as chagas de uma sociedade doente e aflita.



Um detalhe importante assinalado pela crítica é o amadurecimento do diretor no tratamento da temática que lhe é cara. Ele abandonou, ao longo da carreira, os preceitos do Dogma 95, e Submarino deixa isso muito claro, com sua estética mais límpida que a de Festa de família e a ausência dos tremores de câmera que entonteciam o público no seu primeiro filme. Não se trata, em princípio, de pontos negativos, mas, simplesmente de características que o diretor foi deixando de lado em prol de uma autorreinvenção em sua carreira. No fundo, são mostras de versatilidade no olhar para um assunto que é capaz de despertar comoção geral. Quando se trata de família, é possível afirmar que não há quem não tenha alguma sensação no peito e uma opinião formada. Aliás, esse é o calcanhar de Aquiles dos dois irmãos, que, em meio às dissonâncias que os circundam, ainda guardam afeição e carinho um pelo outro. Mesmo quando, em um instante de fúria vulcânica, Nick diga que só quer ajudar o sobrinho, salvando-o de Martin.

Distante de qualquer centelha de sentimentalismo, Submarino permanece na memória longamente, e se filia a outro exemplar bem-sucedido de filme sobre dor e sofrimento interiorizados: Reencontrando a felicidade (Rabbit hole, 2010). Assim como o filme de John Cameron Mitchell, o trabalho do dinamarquês é escavar o processo diário de lida com a realidade cruel que se impõe a protagonistas cuja desorientação é a própria bússola, com todo o oximoro que a observação carrega. Em Submarino, são raras as cenas pontuadas por uma trilha sonora, o que acaba por amplificar a sensação de nó na garganta que atravessa o espectador do filme. Vinterberg matiza discretamente o luto perene de Nick e Martin com uma luz esbranquiçada que, de longe, faz remeter a Ensaio sobre a cegueira (Blindness, 2008), que, obviamente, valeu-se do recurso de modo distinto, enquanto o objeto de análise deste texto segue por outra via com igual eficiência.

Por sua capacidade de enfrentar um dia a dia tão incômodo, o filme pode ser acusado de pessimista, mas há que se atentar para o seu subtexto não tem desacreditado quanto as aparências levam a concluir. Em verdade, Submarino exibe protagonistas com uma mescla de fúria, ternura e carência. Nick, por exemplo, é capaz de cometer um ato extremo para proteger um grande amigo de infância com quem retoma contato depois de tantos anos. E de sofrer terrivelmente por um novo evento chocante em sua idade adulta, sobre o qual afirma não ser plenamente capaz de suportar. Essa dualidade tão possível de habitar o coração dos homens assevera que o filme adota o realismo como sua rosa dos ventos, e resulta em uma tradução dolorida da dor e das pequenas e sutis alegrias que permeiam a vida de qualquer pessoa. Como qualquer outro filme, Submarino é um recorte e uma reinterpretação da vida. E a maneira com a qual Vinterberg a faz é verdadeiramente devastadora.

14 de dez. de 2011

Humor ferino e neuroses atemporais flagradas em Dorminhoco



Em sua fase setentista, Woody Allen era dado a certas estripulias, não apenas de roteiro, mas também físicas. Isso explica a profusão de piadas que se compõem de referências corpóreas notada nos seus filmes dessa época, como é o caso de Dorminhoco (Sleeper, 1973). A comédia oferece uma leitura hilariante para o futuro, mas precisamente o século XXII, época na qual Miles Monroe (Allen) desperta depois de 200 anos de sono provocado pela criogenia. Tudo no mundo está muito diferente de quando ele dormira, e sua reação diante das mudanças sucedidas ao longo de tanto tempo é de espanto, naturalmente. E seu retorno ao convívio social se dá por causa de uma manobra de uma equipe médica que necessita de alguém sem registro, como ele, para uma reação em massa contra um governo totalitário. Está iniciada a série de peripécias que vai permear esse que é o quarto filme de uma longa e notável carreira.

Desde o início, fica evidente que Dorminhoco flerta com o melhor da tradição do cinema mudo, em especial aquele praticado por Charles Chaplin, figura de proa de um subgênero que viu seu prestígio naufragar com o advento do som nessa arte. É quase inevitável não se remeter ao grande Carlitos ao ver Miles correndo de um lado para o outro, quase sempre em fuga e tentando entender o que se tornou o mundo enquanto ele dormia profundamente. Nesse aspecto, pode-se perceber que os questionamentos basais da obra alleniana já estavam presentes aqui, mesmo que de forma embrionária. Miles é o arquétipo do sujeito deslocado, que se angustia pela ausência da sensação de pertencimento ao local em que se encontra. Dessa sensação, decorre todo tipo de neurose e de vagotonia, que o leva a caminhos e situações improváveis, como a condição temporária de robô doméstico de Luna (Diane Keaton, em sua primeira parceria com o diretor), uma poetisa inconsciente de sua falta de talento.

Torna-se cada vez mais interessante acompanhar os desdobramentos de uma trama que prima pelo riso frouxo, ainda demonstradora da associação do diretor com sua atuação no stand up comedy, estilo de humor no qual ele foi, sem dúvida, pioneiro. O futuro imaginado por Allen difere bastante daquele pensado por Stanley Kubrick, por exemplo, que partiu de uma obra literária para construir Laranja mecânica (Clockwork orange, 1971) apenas 2 anos antes, e fez da visão de um escritor a sua. O nova-iorquino decidiu caprichar na arquitetura cômica e entregou um dos retratos mais bem-humorados do porvir, do qual ninguém tem a menos certeza. E, de quebra, ainda refletiu sobre as mazelas de cada um de nós com relativo talento. É factual a observação de que ele ainda melhoraria muito na condução de suas tramas, mas há que se admitir que a argamassa com a qual ele ergue anualmente sua obra monumental já vinha sendo empregada aqui, bem como a presença de seu alter ego cinematográfico, por vezes interpretado por outros atores, com maior ou menor eficiência.




Ainda pensando na correlação possível entre Allen e Kubrick neste Dorminhoco, segue uma curiosidade interessantíssima por trás do filme: há um computador malvado presente na história, cuja voz foi feita por Douglas Rain, o que se tornou uma sátira a 2001 – Uma odisseia no espaço (A space odissey, 1968), pois foi esse mesmo ator que deu voz ao legendário HAL 9000. Especificamente no cotejo com esses dois filmes, o de Allen vai totalmente na contramão, elegendo as gags visuais e o festival de piadas para destilar sua visão contrária a regimes ditatoriais que geram um culto indefensável ao isomorfismo humano. Cabe comentar também o encontro feliz do diretor e ator com Keaton, que viria a se tornar sua musa em uma série de filmes posteriores, e que culminaria com um romance fora das telas. Sem sombra de dúvida, o ápice dessa parceria está em Noivo neurótico, noiva nervosa (Annie Hall, 1977), que viria a se tornar uma espécie de abecedário das relações amorosas, uma fonte de que muitas comédias românticas beberiam. No caso de Dorminhoco, ela apresenta franca beleza com Luna, característica que, machistamente falando, compensa sua inabilidade com as palavras, que ela jura ter.

Por vários momentos, este é um filme completamente de sua época, que investe em situações com contornos bizarros e expressam o pensamento de um época com relação a outra. Está patente que aquela é a visão de futuro de alguém que ainda vive na década de 70, e que, quando projetamos nosso pensamento para tempos anteriores ou posteriores ao nosso, a tendência sempre é a de enxergá-los com o olhar que temos no presente. Quem imaginaria o ano de 2173 como Allen hoje em dia? De qualquer modo, essa é a questão que menos importa no filme, que não está necessariamente entre as grandes obras do diretor, mas tem sua importância pela capacidade de reflexão que oferece, e pela deixa para boas risadas que apresenta ao longo de seus 87 minutos de duração. Trata-se de um filme leve, mas também com um quê de mordácia, que o livra do vale da banalidade pura e simples e contagia o espectador em diversos momentos. Allen é um exímio contador de histórias e um grande comediante, e essa sua faceta, ainda que, por vezes, dilua-se em seus filmes, é a grande tônica de toda a sua produção cinematográfica.

Dorminhoco, portanto, merece um lugar em qualquer lista de grandes comédias, por sua capacidade de diálogo com obras de seu tempo e pela prevalência de um discurso afiado que se complementa com uma sucessão de cenas verdadeiramente hilárias. Estão presentes ainda algumas referências à própria vida pessoal do cineasta, como a sua faceta de músico. Como muitos sabem, ele tem uma banda de jazz e toca clarineta semanalmente em Nova York há muitos anos, e o fato é citado através de Miles, que também toca o instrumento musical, embora nunca apareça fazendo, já que esse é um traço do outrora do personagem. Como curiosidade final, está a que envolve a veracidade das teorias científicas que aparecem na história: elas foram atestadas depois que o diretor as apresentou a Isaac Asimov em um almoço. Portanto, Allen não jogou conversa fora, e traduziu, em meio a angústias sintomáticas de um homem sem lugar, a loucura de cada um de nós, delineada aqui pelas imbricações com canhestros aparatos tecnológicos.

7 de dez. de 2011

Super 8, uma nostálgica crônica infanto-juvenil


Conhecido por séries televisivas nas quais injetou fôlego ou ternura (Alias e Felicity, respectivamente), J. J. Abrams também gosta de enveredar pelo cinema. Sua mais recente estripulia é o ótimo Super 8 (idem, 2011), um filme feito à moda antiga, com gosto de infância. Mesmo os clichês que atravessam a narrativa são temperados da melhor maneira possível, resultando em um entretenimento de primeira e comprovando que o cinema também deve ter espaço para histórias fantásticas. Muito se comentou sobre a semelhança do filme com obras oitentistas de Steven Spielberg, de quem Abrams pode ser considerado um discípulo confesso. Entretanto, as pontes possíveis entre o filme em análise e algumas produções do diretor de E.T. – O extraterrestre (E.T., The extra-terrestrial, 1982), uma das referências mais óbvias, vêm sob a forma de diálogo e tributo, evocando uma geração aventureira e com muita coragem e disposição para ultrapassar limites.

Os protagonistas são pré-adolescentes que, justamente por estarem vivendo essa fase tão limítrofe, ainda não se deram conta do que realmente desejam, bem como do que os espera pelos próximos anos. Em comum, eles também têm a paixão pelo cinema e pelas descobertas, o que os leva a decidir rodar um filme amador com a câmera que dá título ao longa de Abrams. Assim, Joe (Joel Courtney), Martin (Gabriel Basso), Charles (Riley Griffiths), Cary (Ryan Lee) e Alice (Elle Fanning) enveredam por caminhos um tanto inesperados. Em uma das filmagens que realizam, eles acabam registrando um estranho acidente que gera consequências ainda mais esquisitas. Daí em diante, a inserção do elemento sobrenatural na trama se torna irreversível, e guiará toda a ação do filme. Tudo porque uma criatura assustadora é liberta, e os amigos têm de lutar contra ela a fim de salvarem as próprias peles e toda a cidade em que moram. Como se pode perceber, Super 8 é um típico filme-pipoca, que não nega nem obscurece sua condição, e se revela bastante divertido exatamente por isso.

Em meio à corrida frenética que se instaura no cotidiano dos jovens amigos, o longa ainda tem espaço para apresentar os dilemas familiares vividos por eles, especialmente o que envolve Joe, completamente devastado pela perda de sua mãe, mostrada logo no começo da história. Ele encontra na paixão pelo cinema um refúgio para seus problemas, tal qual seus amigos. Todos, aliás, têm um motivo concreto para rodar o tal filme caseiro: um concurso para jovens cineastas que concederá um interessante prêmio ao vencedor. As filmagens, porém, logo cedem lugar para uma incrível aventura e uma delicado jogo de desencontros do coração, já que Alice desperta a paixonite de dois dos amigos, gerando uma disputa ora velada, ora explícita, entre eles. Quem já viveu esses momentos de amor juvenil entenderá perfeitamente a dimensão magna que eles ganham para os personagens, cujos corações pulsam com uma ânsia esquisita, que só entende quem ama ou quem amou. E o melhor é que a junção dos ares de suspense com drama doméstico não soa como uma miscelânea desastrada na história, demonstrando que Abrams tem talento em seu modus operandi, já que também responde pelo roteiro.



Outra referência declarada de Super 8 é a Contatos imediatos de terceiro grau (Close encouters of the third king, 1977), também dirigido por Spielberg. O filme narra as alterações no comportamento de um pai de família depois de pressentir a chegada de alienígenas. As semelhanças com o filme recente, portanto, não são gratuitas. Ademais, vários outros longas que versam sobre crianças aventureiras são citados indiretamente aqui, como Os goonies (The goonies, 1985), facilmente alcunhado como ícone de uma geração. Que fique claro, contudo, que Super 8 apresenta identidade própria, até mesmo pelo fato de estar situado em uma dimensão temporal distinta dos filmes com os quais dialoga. O fato de os personagens usarem o modelo antigo de câmera é o único índice concreto de anacronismo da trama, já que os garotos estão claramente inseridos em um mundo cibernético, de relações mediadas via teclado. A criatura aterradora que as persegue também admite uma leitura metafórica, soando como a quintessência dos medos irracionais que podem assolar esses seres humanos ainda em formação.

Para olhares mais atentos, há até mesmo rápidas referências ao mestre dos filmes de zumbi, George Romero, como o cartaz de um dos trabalhos do diretor. Com isso, assistir a Super 8 é também ficar de olho em várias menções que passeiam pela trama, e sentir novamente um doce sabor de fim de infância, do tradicional adeus à inocência por que todos, invariavelmente, passam. Cumpre assinalar os desempenhos de gente grande (aqui vai um lugar comum) do elenco juvenil, em especial o de Elle Faning, que já vinha dando provas de traquejo em seus filmes pregressos, dos quais Um lugar qualquer (Somewhere, 2010) é a maior prova. A garota vive uma espécie de musa do grupo de amigos, que responde pelo racha na harmonia ente dois deles, até que um novo equilíbrio é delineado. Aqui, não se está diante de um filme inesquecível, mas a habilidade de Abrams em contar sua história, bem como a empolgação transparecida pelo elenco, garantem diversão, alguns sustos e um leve sorriso com o curta produzido pelos amigos, exibido durante os créditos finais. Vale esperar por eles.

1 de dez. de 2011

O lutador e a busca pela reconciliação com a existência



Apontado como a grande redenção da carreira de Mickey Rourke, O lutador (The wrestler, 2008) é também um grande achado na carreira de Darren Aronofsky, o diretor por trás da obra. Sua narrativa tem como personagem principal Randy “Ram” Robinson (Rourke), um lutador profissional que vive sua aposentadoria aos sobressaltos, passando seus dias como quem está à deriva. Sua rotina é deplorável, e seu passado de glórias, em vez de lhe trazer alegria e satisfação, pesa como um terrível tormento. Ele está sozinho, e essa triste constatação dói em seu peito, ainda que suas demonstrações de força e autossuficiência digam o contrário. No fundo, o que ele quer é voltar à ativa, já que nunca se desvencilhou totalmente das lutas, conservando a tendência para se meter em confusões de qualquer tipo ainda competindo no circuito independente. Até que sua sorte parece mudar: ele fica sabendo que um de seus antigos rivais está chamando ao desafio. Incapaz de resistir, ele empreenderá um enorme esforço para enfrentar o famoso Aiatolá.

Partindo dessa premissa intensa, Aronofsky nos traz mais um de seus personagens obcecados pela perfeição e pela autossuperação, fato que os leva a entrar em projetos camicases que responderão por suas glórias e por suas ruínas, às vezes, simultaneamente. Essa tendência é sintomática no cinema do diretor, e pode ser destacada como o seu tema-fetiche, por assim dizer. Interessa e ele espiar como se processa o triunfo da vontade sobre as circunstâncias adversas que se interpolam entre um indivíduo e seu caminho. A despeito de uma série de contrariedades, como um infarto recente, Randy nunca para de lutar. E sua disposição é tanto para a luta em seu sentido literal quanto metafórico, uma vez que vários dos seus problemas são vistos por ele como inimigos a serem abatidos. Somado ao seu desejo de voltar aos ringues, está a sua necessidade de reconciliação com a filha Stephanie (Evan Rachel Wood), com quem não mantém contato há anos, e sua paixão desastrada por Cassidy (Marisa Tomei), uma stripper com quem compartilha uma estranha e oportuna identificação.

O protagonista caminha entre esses três eixos ao longo da duração de O lutador, e oferece um denso estudo sobre a importância de se criar laços, inerente a qualquer ser humano. Muitas vezes, Randy e seu destino colidem, mas ele não demonstra perder a fé em si mesmo e na vida, ainda que essa demonstração venha por meio de decisões e métodos que não aparentam ser os mais ortodoxos. Aronofsky ganha pontos com o público por se valer de uma abordagem que soa sempre sincera, com personagens que não se furtam de apresentar as suas mazelas, e que, ainda que não acertem o tempo todo, procuram avançar em seus caminhos. O protagonista tem um percurso longo e difícil diante de si, mas sua veia de competidor impede seu esmorecimento. Da mesma forma, seu intérprete, Mickey Rourke, exibe uma sede de atuação como poucas vezes se viu recentemente. É sabido que o ator vinha de um longo hiato na participação de filmes, ao qual se antecederam alguns fiascos, como o tosco Orquídea selvagem (Wild orchid, 1990), em que o ator ainda exibia uma beleza admirável em meio a um roteiro primário e constrangedor.



Diante dessa vontade férrea observável em Rourke e em Robinson, há que se recorrer ao velho chavão de que “A arte imita a vida”, pois o que se verifica em O lutador é um notável efeito especular entre as carreiras do personagem e do ator. Depois de anos dedicados à luta na vida real, o intérprete perdeu boa parte de seu viço, o que leva a atenção para seu desempenho, e não tanto para sua estampa. E, nesse quesito, ele mostra que pode ser exemplar, arrastando para si todo o filme, e promovendo inesquecíveis cenas com a personagem de Marisa Tomei, outra que arrebenta em seu papel. Tanto como Randy, Cassidy foi aprovada com louvor na escola do abandono (uma metáfora muito eficiente aqui reeditada), e entende, inclusive com o olhar, as feridas que o lutador carrega em seu peito parrudo. Eles são, de uma maneira muito desengonçada, como almas gêmeas, que se amam tumultuadamente, que se reclamam com seus corpos e seus corações apaixonados. Stephanie, por sua vez, é o sopro de paternidade que bate no rosto vincado de Randy, que se esmera em tentativas de aproximação que, por muitas vezes, são repelidas por ela. Note-se bem o trabalho bem feito de Evan Rachel Wood, que viria a chamar a atenção de Woody Allen e trabalhar com ele no ótimo Tudo pode dar certo (Weathever works, 2009).

Alegando diferenças criativas (lugar comum recorrente entre os atores), Nicolas Cage, inicialmente escalado para o papel principal, deixou o projeto. Vendo-se Mickey Rourke e seus potentes rugidos de fúria e afinco na tela, torna-se quase impossível pensar e outro ator para o personagem, e o espectador pode produzir gritos de júbilo pelo contentamento com sua escalação para o filme. Pontos a menos para Cage, que seguiu seu marasmo de escolhas equivocadas, que incluem bombas como Perigo em Bangkok (Bangkok dangerous, 2008) e Presságio (Knowing, 2008). Assim como Rourke, Tomei e Rachel Wood demonstram um ótimo encaixe aos seus papéis, e reafirmam Aronofsky como um grande diretor de atores, que sabe decalcar de seus intérpretes preciosos desempenhos. Não foi de espantar, portanto, a indicação de Rourke na categoria de melhor ator, cuja vitória acabou sendo de Sean Penn, que concorria por Milk – A voz da igualdade (Milk, 2008).

Caberia também uma indicação para o diretor, que acabou não vindo. Independentemente desses detalhes, porém, O lutador é um filme que faz bem aos olhos e aos ouvidos, como uma trilha sonora marcante, cuja assinatura cabe a Clint Mansell, parceiro do cineasta em outros filmes, como Fonte da vida (The fountain, 2006) e Cisne negro (Black swan, 2010). Seu orçamento foi frugal diante dos investimentos nímios de outras produções que saem dos altos-fornos hollywoodianos: apenas 7 milhões de dólares. O tempo de filmagem também foi recorde: somente 35 dias. Eis duas provas cabais de que enxutez de grana e economia narrativa podem significar um brinde ao público com uma história cheia de sentimento, emoção e, por conseguinte, coração.

25 de nov. de 2011

Traídos pelo desejo, a vida e seus pontos de virada

Engenhosidade é um vocábulo adequadíssimo para se correlacionar com Traídos pelo desejo (The crying game, 1992), um trabalho dirigido e roteirizado por Neil Jordan que brinca com os descaminhos e dissabores que a vida pode apresentar. Não por acaso, o filme fez um grande barulho à época de seu lançamento, demonstrando que histórias originais e bem conduzidas realmente chamam a atenção do público e da crítica. Tudo começa quando um soldado inglês chamado Jody (Forest Whitaker) é sequestrado por um grupo de guerrilheiros do IRA, entre os quais está Fergus (Stephen Rea), um homem dotado de certa sensibilidade. Jody cai nas garras dos militantes radicais depois de se engraçar para o lado de Jude (Miranda Richardson, uma atriz injustiçada), que o seduz descaradamente para arrebanhá-lo para o grupo. Então, a proximidade entre ele e Fergus gera uma amizade, regada a longas conversas mantidas durante o tempo em que o soldado está sob a vigilância do guerrilheiro. Que fique bem claro: essa é apenas a ponta do iceberg filmado por Jordan.



Enquanto pretendem usar Jody como escudo e represália contra o governo irlandês, ele e Fergus vão desenvolvendo um relacionamento amistoso, que deixa entrever que Fergus não está tão satisfeito com as decisões tomadas por seu grupo. Mas a proximidade entre os dois desagrada os seus companheiros, que os afastam, até o dia em que Jody consegue escapar de seu cativeiro correndo floresta adentro, e um atropelamento totalmente inesperado tira a sua vida. Daí em diante, o título em português começa a ir se justificando aos poucos, e o personagem de Stephen Rea, a princípio coadjuvante, assume importância vital para a narrativa. Isso porque, antes de morrer, Jody fala para Fergus sobre a sua namorada, e o guerrilheiro promete para si mesmo que irá ao seu encontro para comunicar a morte do seu então amigo. Os dois acabam se encontrando e o envolvimento amoroso entre ambos acaba por se tornar inevitável.

Aos poucos, Jordan vai engendrando sua teia com Traídos pelo desejo, deixando o público ansioso pelos desdobramentos que a trama apresentará. O grande burburinho causado pelo filme ocorreu por causa do segredo que envolve a personagem Jil (Jaye Davidson), a ex-namorada de Jody. Quando o filme estava na corrida pelo Oscar de 1993, houve quem se chocasse com a revelação, o que não impediu a Academia, notadamente conservadora, de premiar o longa na categoria de melhor roteiro original. Nada mais justo, afinal Jordan se mostra, além de um competente diretor, um roteirista de mão cheia, com uma trama que não deixa pontas soltas e constroem personagens redondos, que vão revelando novas facetas à medida que vamos conhecendo-os mais. A despeito de saber ou não previamente qual é o mistério com relação a Jil, o filme reserva bons momentos. Mesmo os cinéfilos mais xiitas, que não admitem o menor sinal de spoiler, poderão desfrutar de uma ótima sessão se souberem de antemão que não se trata exatamente de uma pessoa do sexo feminino.



O filme conta com um colaborador recorrente de Neil Jordan no elenco. O talentoso Stephen Rea é o que se pode chamar de ator fetiche do diretor, e a parceria entre eles já rendeu até hoje nada menos do que dez filmes. Tudo começou com Angel (idem, 1982), passando por títulos como Fim de caso (End of the affair, 1999), até chegar ao recente Ondine (idem, 2010). Seu Fergus é um profundo poço de incógnitas, que deixa o espectador sempre na incerteza sobre seus desejos, especialmente no que tange ao seu relacionamento escrito por linhas tortas com Jil, por quem nutre um sentimento que não se sabe ao certo classificar. O ator é bastante competente no que faz, o que não impede que ele seja preterido pelos demais cineastas. Seu desempenho em Traídos pelo desejo lhe rendeu sua indicação ao Oscar de melhor ator, a única de sua carreira até hoje, perdida em favor de Al Pacino, que concorria naquele ano por Perfume de mulher (Scent of woman, 1992), o grande favorito daquela edição do prêmio. Trata-se de uma grande injustiça, pois cada fotograma do filme de Jordan se beneficia de sua atuação hipnótica, demonstrando um homem cheio de lacunas e carências que encontra na tortuosidade de seus sentimentos por uma espécie de outsider a razão de viver. Entre idas e vindas, encontros, desencontros e reencontros, as trajetórias dos dois, uma vez tendo se encontrado, tornam-se irremediavelmente entrelaçadas.

Enigmático, Traídos pelo desejo é um filme que permanece na memória e salta aos olhos como uma história que não descamba para o sensacionalismo ou para as viradas gratuitas de roteiro. Ainda que lide com um certo componente de estranheza na sua narrativa, Jordan demonstra ser hábil para revestir cada acontecimento de uma notória credibilidade, assinalando que a própria vida pode preparar grandes armadilhas das quais não se escapa facilmente. O filme pode ser entendido com um drama sobre a complexidade da natureza humana, bem como das peripécias que se pode viver mediado pelos golpes do coração. Tanto Fergus quanto Jil entram em uma relação de dependência, e esse mutualismo é o guia de seu percurso até que uma nova tragédia, semelhante à que vitimou Jody, venha se abater sobre eles. Na bela alquimia montada por Jordan, também há espaço para uma bela trilha sonora, uma incumbência de Anne Dudley, capaz de gerar poesia em vários contextos, inclusive no plano de abertura que exibe os créditos. As canções vão ao encontro dos espaços e das cenas, e arrematam o enredo algo inusitado e bem pensado por um diretor que merece, muito mais do que uns e outros, um lugar na ribalta.

22 de nov. de 2011

Lutando pela sobrevida em Direito de amar


Malgrado o seu título em português completamente ordinário, Direito de amar (A single man, 2009) é a auspiciosa estreia na direção de Tom Ford. O renomado estilista texano é o grande responsável por levar às telas a história de um homem cujo estado é o próprio retrato do desalento. George (Colin Firth) perdeu o companheiro com quem viveu por 16 anos em um acidente automobilístico. A tragédia vem se revelando devastadora para o professor de inglês, que encontra na amiga Charley (Julianne Moore) o único porto seguro, sendo ela capaz de compartilhar de alguma maneira de seu desespero. Em meio à dor que o consome, ele cogita a ideia de suicídio, que lhe parece a melhor alternativa para dar cabo de seu sofrimento. Entretanto, a vida vai lhe apresentado pessoas e pequenos momentos que talvez possam ser indícios de que seguir adiante ainda seja possível e valha a pena.

Baseado nesse argumento dolorido, Ford construiu uma história de dor universal, de sentimentos contraditórios e do peso que a ausência pode representar. George lida com os efeitos devastadores da morte de Jim (Matthew Goode), a quem os anos de convivência ensinaram a considerar a pessoa mais importante do mundo. Em um dia crucial do ano de 1962, o protagonista se vê aturdido pelos ecos desse passado recente de morte, e pela necessidade de podar as arestas que mantém em sua vida. Nessa data, ele precisa escolher entre morrer e lutar. A princípio, a primeira escolha parece ser a mais acertada, mas os fatos da vida se encarregam de redimensionar seu pensamento, e colocam—no em uma inesperada proximidade com um de seus estudantes. Para o mundo, ele ainda é a fortaleza que jamais se abala, um homem ilibado que exerce sua profissão com dignidade e firmeza. Por dentro, porém, George está destruído. Quem se achega bem junto a ele, como é o caso desse aluno, pode perceber.

Durante seus 101 minutos de duração, Direito de amar se demonstra um filme simples, mas de emoções complexas. Ford se propôs a apresentar um estudo meticuloso da dor, que não passa em um piscar de olhos. George vive dia após dia, existe mesmo aos sábados, domingos e feriados. Não há como escapar da tristeza sem antes passar por ela: só pode recuperar a alegria quem um dia a perdeu. E todo o filme particular de George, que só é exibido em sua cabeça e são seus pensamentos mais secretos, passa—se em um único dia. Essa estratégia de condensar a narrativa em apenas 24 horas é um recurso recorrente no cinema, que não perde a validade e contribui para concentrar um vasto campo de emoções em um curto arco temporal. Dessa decisão, já foram produzidos filmes maravilhosos, de origens e temáticas vizinhas à de Direito de amar, entre os quais se podem mencionar os densos e ditosos Na cama (En la cama, 2005) e A vida dos peixes (La vida de los peces, 2010), ambos de Matías Bize, um especialista em histórias de um único dia.



É inegável que a alma do longa seja Colin Firh. O ator cinquentão oferece um brilhante trabalho de entrega e dedicação ao seu personagem, e o mantém verossímil e quase palpável o tempo todo. Seu George é uma justa oportunidade de protagonismo, depois de uma longa carreira como coadjuvante, em títulos como Simplesmente amor (Love actually, 2003). Antes de Direito de amar, o mais perto que o ator tinha chegado do posto de principal havia sido com O diário de Bridget Jones (Bridget Jones’ diary, 2001) e Bridget Jones — No limite da razão (Bridget Jones: the edge of reason, 2004), nos quais era um dos pretendentes da personagem—título. Entretanto, é no filme de Ford que ele tem a chance magna de brilhar em um impressionante voo solo. Sua atuação é magnetizante, e ele consegue dar a ideia da consumição do personagem através de seu olhar. Mas Firth não está inteiramente sozinho nesse mergulho dolorido. Sua parceira de cena, ninguém menos que Julianne Moore, é perfeita em sua composição e, transpirando talento, é a síntese da guarida de que George tanto necessita em um dia difícil e aparentemente interminável. Ford acertou em cheio na escalação de ambos, maximizando suas chances de acerto com dois intérpretes cujo valor é indiscutível.

Sobressai-se, ainda a exuberante fotografia assinada por Eduard Grau. Os ambientes clicados pelas lentes poderosas desse talentoso rapaz qualificam ainda mais o filme. Nada mais adequado, por sinal, já que estamos diante de um cuidadoso trabalho de um estilista que debuta na direção. Grau tem um currículo relativamente curto, mas já obteve chances de demonstrar sua competência em títulos subsequentes a Direito de amar, como Enterrado vivo (Buried, 2010) e Finisterrae (idem, 2010), dois filmes de estirpes e intenções díspares que carregam seu nome dos créditos. Fica patente o quanto, num filme como o de Ford, a fotografia pode contar muitos pontos, e Grau demonstra ciência desse fato, amplificando a potência dramática de cada cena com sua direção fotográfica que lapida cada ambiente com a virtude de um esteta da imagem. A esse aspecto técnico se soma a belíssima direção de arte, a cargo de Ian Phillips, que, enfim, ganhou um sopro de dignidade em sua carreira, depois de uma sequência de filmes de gosto duvidoso, entre os quais se inclui até mesmo Crepúsculo (Twilight, 2008). E o que dizer dos figurinos assinados por Arianne Phillips, escandalosamente belos? Por esses motivos, Direito de amar se mostra como um drama bonito no sentido figurado da palavra, mas também em sua acepção plástica. Ford também exibe com seu primeiro filme como diretor uma forte preocupação com a fruição estética.

Em seu percurso lento e suave, o filme vai revelando suas camadas aos poucos, e consegue abarcar, com sua dita condensação temporal, uma série de questões cruciais para a existência humana, sem perder a dimensão estética que tanto se aponta e se reclama na arte. Direito de amar se revela como arte nessas duas dimensões, e decanta suas passagens de maneia garbosa e elegante, com cada uma de suas cenas em uma costura toda particular, evidenciando a autoralidade de seu criador. Para o filme, ele se baseou no livro de Christopher Isherwood, um importante escritor inglês naturalizado estadunidense, e imprimiu ao longa toda a sua veia de moda, equilibrando a estrutura dramática com a arquitetura visual, traduzida nos já comentados figurinos, fotografia e cenários. De todas essas digressões que derivam do filme, contudo, a mais importante talvez seja o longo percurso pelas lembranças que George vai trilhando no mais longo dia de sua vida. O que interessa não é a origem da dor, mas como ela se manifesta e se processa. Em seus minutos finais, Direito de amar se afirma em definitivo como um dolorido retrato particular da memória de um sobrevivente.

3 de nov. de 2011

Lidando com a certeza da finitude em Inquietos

A afeição de Gus Van Sant pela juventude é notória há muito. Seus filmes, na grande maioria das vezes, versam sobres as angústias que pairam sobre essa geração, constituindo-se como belíssimos retratos de dores e amores que podem rondar as vidas de quem ainda não chegou à idade adulta. E são poucos além dele que exibem grande capacidade de diálogo com os jovens. Exemplares desse talento não faltam em sua filmografia, como Drugstore cowboy (idem, 1989), Garotos de programa (My own private Idaho, 1991) e o recente Paranoid Park (idem, 2007). E há um novo belo filme a ser inserido nessa carreira de sucesso, que atende pelo convidativo nome de Inquietos (Restless, 2011). Com esse novo trabalho, o diretor retoma aquele que já demonstrou ser o foco de sua carreira, que havia deixado temporariamente de lado ao conceber Milk – A voz da igualdade (Milk, 2008).



Os protagonistas de Inquietos são Annabel (Mia Wasikowska) e Enoch (Henry Hooper), dois jovens cuja aproximação se dá por meio do inusitado. Ambos lidam com traços de comportamento depressivo e, no caso do rapaz, sua vida desgostosa é pincelada por entradas em velórios para os quais não foi convidado, de pessoas que sequer conhece. É numa dessas “invasões” que seu caminho se cruza com o da moça, e a empatia entre os dois, ainda que imediata, é negada veementemente pelo garoto, que prefere manter uma postura arredia diante da docilidade apresentada por ela. Pouco tempo depois, contudo, nasce uma bela amizade entre ambos, um curto caminho para o romance que os envolve em seguida. Baseando-se nesse argumento, Van Sant oferece ao seu público um filme agridoce, por conta dos laivos de tristeza que o circundam. É inegável que haja uma certa semelhança entre sua premissa e a de Ensina-me a viver (Harold and Maude, 1971), em que também há um protagonista obcecado pela ideia da morte. Entretanto, há diferenças entre as tramas, tanto de ordem objetiva quanto de ordem subjetiva, a começar pelo fato de Inquietos trazer dois jovens nos papéis principais, e pela condução inconfundível de seu realizador.

O filme é dotado de um alto grau de convencionalismo no desenvolvimento de seu enredo, e se vale de alguns lugares comuns caros aos filmes dramáticos que lidam com o florescimento de amores em circunstância adversas. Todavia, o uso de clichês não é condenável por si só. Quando bem administrados, podem render filmes maravilhosos, e Inquietos é um belo exemplar de como essa afirmação pode ser verdadeira. No caso do longa de Van Sant, o nó da narrativa, termo constante da obra de William Labov, é a doença de Annabel. A jovem está desenganada, e engana Enoch a princípio, omitindo o fato para o rapaz. Mas ela acaba confessando a verdade em pouco tempo, e o idílio juvenil vivido pelos dois acaba sendo um romance assinalado pela fugacidade e pela finitude, exalando urgência em sua necessidade de ser vivido.

Essa certeza do término de tudo é a deixa para que sejamos brindados com imagens espetaculares, com cenas de um romance com prazo de validade, e diálogos inspirados e marcados por muita poesia. O roteiro elaborado por Jason Lew engrandece cada palavra dita pelos personagens, entregando conversas estilizadas em um filme que fala ao coração com muita verdade. Em uma das sequências mais tocantes de todas, Annabel comenta com Enoch sobre a descoberta de um pássaro que, todos os dias, fica perplexo com o fato de ter amanhecido e ele ainda estar vivo, o que o leva a entoar uma canção lindíssima. A comoção de Annabel com o animal – ela é apaixonada por ornitologia e por criaturas marinhas em geral – sintetiza, de alguma maneira, a sua condição. Cônscia de sua trajetória encurtada por uma doença agressiva, ela quer cantar a vida todos os dias, enquanto lhe for dada a oportunidade de um novo amanhecer. E, para isso, quer a companhia de Enoch, que também se relaciona de perto com a morte, mais precisamente desde que se viu na condição de órfão. Sua revolta com a vida se manifesta, antes de mais nada, por essa perda quelhe é letal. O relacionamento com Annabel, entretanto, é capaz de produzir calor em seu coração.



Lew estreou como roteirista com Inquietos. Antes disso, ele já havia atuado em Um amor sublime (All God’s children can dance, 2008) e em The experiment (2010), ainda sem título em português. Seu trabalho na escrita do filme de Van Sant é louvável, e traz frescor a uma temática que poderia cair no sentimentalismo barato e no peso excessivo de uma abordagem plúmbea e pessimista. Inquietos consegue mesclar amor e dor na medida certa, e exibe uma deliciosa maturidade do diretor no tratamento de sua temática favorita. É interessante saber que a intenção original de Lew era escrever uma peça teatral, mas Bryce Dallas Howard o convenceu a conceber o texto para o cinema. Some-se ao belo roteiro a deslumbrante fotografia de Harris Savides, um habitual colaborador de Van Sant, que já clicou trabalhos como Encontrando Forrester (Finding Forrester, 2000) e o já citado Milk – A voz da igualdade. As lentes de Savides apontam para uma paleta de cores vivas, contrastando com o estado de morbidez que invade as vidas dos protagonistas. A inquietude que lhes é atribuída nos títulos original e em português, no entanto, não é vã. Annabel e Enoch vivem a urgência em todos os sentidos. Verdadeiramente, não há tempo a perder para os dois.

Em meio à relação de fim iminente dos protagonistas, está a amizade de Enoch com Hiroshi, um soldado que lutou na guerra que só existe em sua imaginação. A presença de Hiroshi, porém, é bem viva, e funciona perfeitamente para a trama, como uma lufada de realismo fantástico que tempera e pontua fatos no percurso do seu “inventor”. Aliás, é importante salientar o desempenho excelente de Henry Hooper. O californiano – filho de ninguém menos que Dennis Hopper – tem uma carreira ainda curta, mas já demonstra que tem uma estrada brilhante pela frente, encarnando a agonia juvenil e a incerteza sobre os próximos passos que terá de dar. Do início ao fim de Inquietos, ele passa da esquiva à devoção por Annabel, uma garota sempre adorável. Ela é interpretada com um brilho vívido por Mia Wasikowska, outro jovem talento que conjuga uma beleza ofuscante com segurança na atuação. Não há outro adjetivo que classifique melhor a interação entre os intérpretes em cena como simbiótica. Quando chega bem perto de seu final, Van Sant coroa Inquietos com uma aura de profundo pesar, deixando tudo mais realista, e decantando a sensação que um sonho bom precisava se encerrar. Então, somos despertados do sono, ainda surpresos como o pássaro descoberto por Annabel, cantando, perplexos, a vida que ainda nos é dada de presente.

27 de out. de 2011

Amor a toda prova e seu tratamento sincero para uma premissa recorrente


Está mais do que provado que as comédias românticas têm um apelo popular irresistível. Produzidas às pencas, elas são capazes de atrair multidões de espectadores ávidos de produções que dialogam com suas próprias vidas, na medida em que tratam de relacionamentos e podem ser tudo aquilo que se quer ver e ouvir, não exatamente do que se precisa. Amor a toda prova (Crazy, stupid love, 2011) não se enquadra exatamente nos comentários tecidos anteriormente, por sutis diferenças em sua estrutura que a tornam um tanto singular em meio a tantas tramas isomórficas que o cinema hollywoodiano lança quase toda semana. Suas qualidades são várias, e cada uma delas vale ser assinalada para convencer o espectador que duvida da capacidade do cinema de oferecer emoção, acalento e sinceridade na abordagem dos conflitos e enigmas do coração.

O fio condutor da narrativa é a história de Cal (Steve Carrel) e Emily (Julianne Moore), um casal que já começa o filme em vias de se desfazer. A sequência de abertura já evidencia a sintonia que paira sobre eles. Em um restaurante ao mesmo tempo chique e descolado, vários casais efetivos ou em potencial acariciam os pés um dos outros, e são sempre belos pés. Até que a câmera chega à mesa dos nossos protagonistas, e então vemos o despojamento antirromântico de Cal, que usa tênis surrados e não aproxima seus pés da esposa. Ali mesmo, sem meios termos, ela dispara que quer o divórcio, e logo se descobre que Emily está tendo um caso com David (Kevin Bacon). Essas duas notícias juntas respondem pela perda de rumo de Cal, que se vê impotente diante da decisão de sua esposa. O rompimento repentino do casal, entretanto, é apenas uma das faces do polígono de relações desenhado de Glenn Ficarra e John Requa, a dupla de diretores cujo trabalho anterior é O golpista do ano (I love you, Philip Morris, 2010), que torna esse novo trabalho improvável para ambos.

Entretanto, fica provado ao longo do desenvolvimento de Amor a toda prova que o trabalho é um grande acerto na carreira da dupla, que sabe dosar sarcasmo e ternura para narrar os descaminhos misteriosos de um sentimento que pode pregar peças em qualquer um. Uma vez separado de Emily, Cal tem seu caminho cruzado com o de Jacob Palmer (Ryan Gosling), o arquétipo do garanhão que o incita a rever seus conceitos e seu estilo pessoal. Extremamente desenvolto no trato com o sexo feminino, ele ajuda Cal a dar uma importante guinada em sua vida com seus conselhos. Sim, a relação que se estabelece entre os personagens é a de tutor e discípulo, e entre eles surge logo uma notável cumplicidade. Como se perceberá mais adiante, todavia, ambos estão vulneráveis às armadilhas do coração, denotando que mesmo o mais calejado dos homens pode sucumbir a elas. É bem verdade que existem alguns clichês no filme, mas eles são tão bem administrados e desenvolvidos que se tornam irresistíveis. Amor a toda prova flerta com a gramática tradicional dos filmes do gênero, e não tem vergonha de se assumir como um filme de amor, mas essa é apenas a sua superfície. Há muito mais a se descobrir acompanhando a jornada algo desastrosa de seus protagonistas.



Um dos grandes defeitos do filme, porém, é seu título brasileiro. Por que transformar um título original tão honesto eficiente como Crazy, stupid love em uma bobagem tremenda como o é Amor a toda prova? Além do que, trata-se de uma repetição picareta, pois P.J. Hogan havia dirigido Unconditional love em 2002, que recebeu o mesmo título em solo nacional. A proposta por trás dessa escolha não é de todo incoerente, mas soa irritante e tautológica diante de uma outra possibilidade muito mais cheia de relevância. Vale comentar que tanto Steve Carrel quanto Ryan Gosling estão no elenco de outros filmes com títulos deploráveis no Brasil: Eu, meu irmão e nossa namorada (Dan in real life, 2008) e Namorados para sempre (Blue valentine, 2010), respectivamente. A despeito dos títulos, contudo, os dois também são ótimos filmes, e Amor a toda prova vem se filiar a uma tradição recente de nomenclaturas equivocadas para histórias bem contadas e cheias de grandes momentos.

Feito esse grande parênteses, volta-se a comentar um filme que apresenta um outro diferencial interessante: aqui, as grandes vítimas do amor são os homens. Cal e Jacob, cada um a seu tempo, sofrem por seus objetos de desejo e amor, e precisam lidar com a “coita amorosa” da maneira mais otimista possível. Antes de Amor a toda prova, apenas (500) dias com ela ((500) days of Summer, 2009) havia apostado em se dedicar ao outro lado das relações amorosas, colocando um protagonista masculino com dor de cotovelo. As mulheres aqui são cruéis e voluptuosas. Julianne Moore – uma das atrizes mais estupendas que o cinema já conheceu – também entra nessa onda; Sua Emily é um tanto volátil no que se refere ao amor, e parte o coração do (ex-) marido sem dó nem piedade, esfregando a verdade sobre seu caso extraconjugal quase sadicamente. Hannah não fica atrás, e é a grande responsável pela degringolada dos sucessos consecutivos de Jacob com a ala feminina. Por meio desse casal está representado aquele velho chavão da mulher difícil que atrai a atenção do homem e o instiga pelo desafio da conquista. O jovem galanteador compra o desafio assim como faz Dan (Jude Law) em Closer – Perto demais (Closer, 2004), sempre tentado a ter Anna (Julia Roberts) toda para si.

A maneira como Ficarra e Requa conduzem o enredo do longa-metragem é bastante eficiente, e faz perceber que o cinema também se faz de pequenas histórias. A dupla consegue extrair atuações precisas (termo um tanto estranho para uma arte tão subjetiva, aqui empregado com certo ressabiamento) de seu elenco e filmar um roteiro redondo, cuja autoria cabe a Dan Fogelman, pródigo em escritas de animações infantis (!), como Bolt – Supercão (Bolt, 2008) e Enrolados (Tangled, 2010). O texto elaborado por ele soa sempre sincero e verossímil, o que vale muito dentro do terreno das comédias românticas. Ademais, a maneira como os subenredos se encontram perto do final do filme trazem um charme todo especial à narrativa, que é muito bem pensada e se revela verdadeiramente surpreendente sem ser mirabolante. Sua apresentação nos faz lembrar o quanto a vida real pode repleta de ciclos e acasos, e que o coração parece não se preocupar em obedecer regras impostas pela razão. Para além de qualquer teoria, Amor a toda prova permanece depois do fim da sessão e garante boas risadas, um clima de descontração e uma trama irresistível, porque o banal com um bom acabamento pode se tornar delicioso.

24 de out. de 2011

A desconstrução com tempero cômico ou Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo e tinha medo de perguntar

O cinema praticado por Woody Allen na década de 70 é notadamente distinto do que ele tem feito em seus últimos filmes. Se desde 2005 ele tem passeado por capitais europeias para brindar o público com obras de valor inestimável que perseguem seus temas favoritos, em seus primeiros trabalhos nota-se a primazia da comédia física, com muitos traços do pastelão. Esse é, por vários momentos, o caso de Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo e tinha medo de perguntar (Everything you always wanted to know about sex * but were afraid to ask, 1972), uma galhofa e tanto com um tema que se presta a abordagens piadísticas com notável conveniência. O filme é composto de sete segmentos que se propõem a “desvendar” alguns mitos e questões relativos ao sexo, e se vale de um arsenal de piadas elaboradas no roteiro escrito pelo próprio Allen. A base para a sua elaboração foi o livro de David Reuben, que foi concebido como um manual para sanar dúvidas diversas em um campo tão marcado por tabus. Entretanto, como se percebe desde o primeiro segmento, a abordagem do diretor é puramente cômica.



Ele não está interessado em fazer uma mera transposição do texto original para o cinema, mas em apresentar uma releitura com fartas doses de seu humor típico por meio de situações que dialogam com a bizarrice em certa medida. Para isso, recrutou a si mesmo e a um time de atores que se saem muito bem em papéis um tanto improváveis. Entre as dúvidas que o filme se presta a “sanar” estão as seguintes: os afrodisíacos funcionam?, o que é sodomia?, o que acontece com o corpo durante uma relação sexual? Essas e as demais recebem um tratamento sempre assinalado pelo humor corrosivo, e afastam qualquer possibilidade de didatismo para a narrativa. Logo no primeiro segmento, Allen aparece como um bobo da corte que não é mais capaz de fazer o seu rei rir, e acaba se envolvendo em uma trama divertida envolvendo a rainha, a quem ele oferece uma poção que desperta sua libido quase instantaneamente, para depois não conseguir se esconder a tempo de um rei que acorda antes do previsto. Por meio dessa primeira história, nota-se que Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo e tinha medo de perguntar percorre sua duração apostando em frouxos de riso e em um conteúdo que não se leva a sério.

Voltando aos atores, vale comentar as presenças agradáveis de Louise Lasser em cena, repetindo com o diretor a parceria de Bananas (idem, 1971), filmado no ano anterior, e de Gene Wilder e Burt Reynolds. Este aparece no último segmento, como um dos chefes de operação do corpo humano que ajuda a administrar o frenesi derivado do êxtase sexual, e aquele interpreta um médico que se vê perdidamente apaixonado por uma ovelha. Sua participação se dá no segundo segmento, em que se levanta a questão da sodomia. Tudo com uma leveza e um coloquialismo que Allen sabe colocar muito bem em sua obra, embora este segundo elemento não seja propriamente o mais notável em seus trabalhos. A impressão que se tem diante desse filme é a de se ouvir alguém dando suas opiniões extravagantes sobre assuntos diversos ligados à área sexual, em um contexto de conversa de bar. Mesmo que muitas situações não cheguem a ser risíveis, é factual a observação de que Allen consegue ser provocativo, e que ele já sinaliza uma série de características que já estavam se delineando como recorrentes em seus longas-metragens.



Estão presentes no filme, de alguma maneira, a dificuldade em se delimitar o papel do artista no mundo e o sexo como frustração pessoal. Nenhum dos vários personagens do filme é bem-resolvido com essa questão, e demonstra essa dificuldade de inúmeras formas. Seria possível citar uma penca de trabalhos seus que abordam essas temáticas, como Noivo neurótico, noiva nervosa (Annie Hall, 1977) e Dirigindo no escuro (Hollywood ending, 2002), só para citar um exemplo de cada. Com relação a outros temas, também se pode observar a questão da ênfase da palavra, com personagens que mais falam sobre sexo do que propriamente o praticam. Os diálogos são típicos da obra alleniana, e ajudam a compor um quadro cômico que não se pauta (quase nunca) pela piada fácil ou de mau gosto. Ainda que a informalidade atravesse as tramas alinhavadas pelo diretor, ela não torna o filme uma sucessão de grosserias ou meras obscenidades. O que se tem é uma associação entre bom humor e algumas sutilezas, configurando uma mistura entre gargalhadas afrouxantes e sorrisos laterais.

A estruturação do filme em episódios é uma grande justificativa para apontá-lo, a priori, como irregular. Entretanto, o que dá unidade a cada uma das histórias apresentadas pelo diretor é seu eixo temático. Em comum, todas elas elas também têm a maneira um tanto desengonçada de fazer referência aos temas e às situações propostas. É interessante notar que, diferentemente de tantos outros diretores que recorrem com frequência à passionalidade, Allen oferece uma abordagem que foge da sensualidade e sublinha o tempo inteiro o humor. Ainda que, muitas vezes, esse humor seja uma cobertura para uma certa dose de desespero de inabilidade diante de situações diversas. O filme é desengonçado como Todos dizem eu te amo (Everyone says I love you, 1996), a incursão do diretor no musical. No caso do filme analisado, há que se lembrar ainda que se trata de uma obra totalmente de seu tempo, que apela para a comédia rasgada e não tem papas na língua ao falar do assunto que se presta a apresentar. É bem verdade que algumas concepções são muito mais do diretor que propriamente do senso comum, o que não deixa de ser muito divertido e curioso. Certamente, não é dos grandes trabalhos de sua carreira, mas vale como uma alegre experiência que atesta que sua obra só se depura com o tempo e, aqui, ainda tateava seus primeiros indicadores de identidade estética, para se tornar cada vez mais perene.

15 de out. de 2011

Melancolia e o encontro com o desespero da alma



É ponto pacífico entre os componentes da comunidade cinéfila que Lars Von Trier é um diretor provocativo. Há quem diga, ainda, que ele seja uma grande fraude. Outros, que haja um forte traço de genialidade em seus trabalhos. Seja como for, Melancolia (Melancholia, 2011) merece ser conferido. O filme é um tratado dolorido da impossibilidade do ser humano de lidar razoavelmente com seus temores, e do quanto eles podem devorar a alma de quem os sente. Justine (Kirsten Dunst) é a prova cabal de que essa extrema dificuldade existe. Sua depressão está em uma fase crítica, da qual nem mesmo seu casamento com um homem muito amoroso parece ser capaz de tirar. Ela é uma mulhere consumida pelo tédio, pela monotonia e pela descrença em que tudo possa mudar, e seu desespero irradia por seus poros e para suas atitudes. Sua irmã, Claire (Charlotte Gainsbroug) está a seu lado para ajudá-la incondicionalmente, mas não há quem possa tirá-la de seu marasmo.

No começo do filme, somos apresentados a Justine, que domina toda a ação da narrativa em sua primeira metade, quando Claire assume o posto de protagonista. Melancolia segue essa divisão clara proposta por Von Trier e, antes disso, um belo plano de abertura funciona como vaticínio para o que o desenrolar da trama reserva. E o sentimento que intitula o filme também é o nome de um planeta que se encontra em rota de colisão com a Terra, podendo gerar o fim da humanidade a qualquer momento. Eis a grande metáfora pensada pelo realizador dinamarquês, que trafega por recônditos sombrios da alma com este novo trabalho, de uma forma diferente da que tinha feito em Anticristo (Antichrist, 2009), em que foi capaz de gerar ojeriza com as fartas doses de violência e masoquismo. Não significa dizer, entretanto, que Melancolia seja mais leve. Muito pelo contrário. Trata-se de um filme grave, intenso e desconcertante, que toca em feridas ardidas, que desesperam ao serem revolvidas. O tal plano de abertura se apresenta ao som de Wagner, numa composição que acompanhará todo o longa-metragem, sendo um dos índices de sua capacidade de embevecer e atordoar.

O diretor aposta em um clima de constante asfixia, resultante da escolha de uma trilha sonora que desperta agudeza de sentimentos, além de uma câmera trôpega que filma cores frias e uma luz pálida que dimensiona o público para um ambiente em que nada está bem. Portanto, estamos diante de um drama na acepção mais estrita do termo, sem qualquer brecha para o alívio. Melancolia confronta o tempo todo e levanta a questão da sensação de falta de sentido da vida. O questionamento de Justine ecoa por toda parte: por que estou aqui? Entretanto, ela não parece buscar respostas, e se encontra resignada com a proximidade cada vez maior do planeta da órbita terrestre. Não existe consolo para ela. Não existe consolo para ninguém. Sua depressão está crítica, e nem mesmo o bolo de carne de que ela tanto gostava a satisfazem. Claire chega a prepará-los para a irmã, mas ela diz que eles têm gosto de cinzas. De certa forma, essa é a condição de Justine: despedaçada, decomposta, decantada. Por outro lado, Claire demonstra ser um rochedo, mas essa força acaba por ruir em determinado momento. Na segunda parte do filme, é a vez de Claire sucumbir ao desespero.



Melancolia é um filme incômodo por uma série de fatores, do tema que aborda ao tratamento que lhe é dispensado, passado pela excelente montagem que ajuda a compor um quadro de lamento profundo. Ao mesmo tempo, é um filme lindíssimo, que tem sua importância pela abertura da possibilidade de encontro do ser humano consigo mesmo. À medida em que as personagens vão chorando suas mazelas, vai ficando claro para o espectador o quanto aquele movimento pode ser uma grande catarse também para ele. Esse efeito especular espetacular faz o filme crescer como cinema e o eleva patamar de arte genuína, se se adotar a perspectiva de que a arte o é quando fala do homem em sua acepção universal. O sofrimento que atravessa as duas irmãs pode ser lido para além de fronteiras geográficas ou linguísticas, pois todos estamos passíveis de experimentá-lo. Além disso, existe uma lógica e uma verdade que atravessa todo o filme e que aponta para um mundo desesperançado, em que a descrença do ser humano em uma fonte de acalento chegou ao seu apogeu. Por tantos motivos, o longa alcança as linhas do zênite cinematográfico e inscreve seu nome no rol de grandes produções que mantêm a fé na sétima arte, e que emergem com baixa frequência. Pode-se dizer que Von Trier tenha erigido um monumento ao desconsolo, que aponta para a necessidade de revisão de passos e de rearranjo de perspectivas no campo da forma sobre como se pode encarar a vida.

A associação do termo que designa profunda tristeza com um planete de potência destruidora é mais do que acertada, e abre terreno para uma narrativa que também se beneficia de grandes atores. Kirsten Dunst está magnífica como Justine, e prova que também é capaz de oferecer ótimos desempenhos quando não sucumbe às comédias de apelo sensual que empesteiam as salas de cinema. Seu prêmio de melhor atriz no festival de Cannes de 2011 está em boas mãos, e coroa uma trajetória de franca evolução. A tristeza está de tal forma impregnada em sua personagem que nada parece aplacar sua afasia. Até mesmo sua irmã mais velha, que parecia tão segura de si e capaz de ampará-la, também vê sua establidade desmoronar. Melancolia nos prova, assim, que estamos todos vulneráveis. Não há quem não tenha enfrentado a tristeza e, se ainda não a enfrentou, esse dia certamene chegará. Por sua coragem em dissecar esse mal, o filme demonstra correlação possível com Reencontrando a felicidade (Rabbit hole, 2010), que também discorre sobre a falência da alegria naqueles que se encontram com a dor. Dunst dá conta de captar essa intensidade dramática a cada cena que lhe foi dada, e ainda destila sua beleza angélica em lindos fotogramas. A cena em que sua personagem se banha à luz do luar é tão fugaz quanto encantadora.

Charlotte Gainsbourg é outra que dá sinais claros de competência na pele de Claire, e trafega por uma linha tênue entre o conformismo, a omissão e o desalento. Sua personagem começa o filme como uma grande tábua de apoio para a irmã, mas acaba sendo atravessada por um desespero tão grande – ou talvez maior – quanto o de Justine, que a segunda parte de Melancolia dá conta de mostrar. A estrutura episódica é um recurso caro a Von Trier, que já o havia utilizado em Dogville (idem, 2003), Manderlay (idem, 2005) e Anticristo. No filme em questão, a estrutura é típica, composta de um prólogo, e dois capítulos cujos títulos são Justine e Claire. Ambas as atrizes têm chance de demonstrar toda a sua diligência, e Gainsbourg demonstra certa intimidade com o universo de Von Trier, por ser esta a segunda vez consecutiva em que é dirigida por ele. Não se pode negar que haja traços de misoginia na condução do percurso feito pelas duas irmãs. Como já havia feito antes, o cineasta coloca as mulheres da vez em situações extremas, em que suas forças são colocadas à prova por uma série de acontecimentos extenuantes. É como se ele exercitasse novamente seu sadismo para temperar com requintes de crueldade a vida de duas mulheres em tensão crescente, cuja certeza do fim fere de morte e leva a atitudes descabidas e disparatadas. Tudo isso envolto em aspectos técnicos e cênicos que constituem uma coreografia bem articulada da dança mortal e faiscante que é viver e estar de pé.

11 de out. de 2011

O casamento de Rachel: o colapso familiar revisitado

O título engana à primeira vista. O casamento de Rachel (Rachel getting married, 2008) é, na verdade, um filme sobre o drama familiar detonado por Kym (Anne Hathaway), uma jovem que acaba de ser liberada de uma clínica de reabilitação e que foi convidada para ser madrinha de casamento de sua irmã, cujo nome está presente no tal título. É através de sua presença que Jonathan Demme, mais conhecido por O silêncio dos inocentes (The silence of the lambs, 1991) e Filadélfia (Philadelphia, 1993) espia as lutas inglórias que se travam no seio de um ajuntamento familiar, calcando-se numa espécie de subgênero cinematográfico que é pródigo em conflitos. Como de hábito em produções sobre o tema, a reunião do clã de Connecticut é a ocasião perfeita para a emersão de antigas mágoas e ressentimentos, e de como pode ser trabalhoso lidar com as incongruências que, ora distanciam, ora aproximam parentes.



A festa é o cenário onde transcorre a maior parte do filme, cujo diretor se vale de uma estética um tanto “poluída” para a concepção de uma radiografia dolorida das mazelas que cada um dos convidados daquela comemoração apresenta. A narrativa transporta o público diretamente para a tal festa, sem que se possa acompanhar a cerimônia religiosa ocorrida alguns minutos antes. Então, o desfile de personagens começa, e é quase certo que cada espectador se identifique com algum deles. Aqui, Demme é feliz em colocar na tela pessoas que fogem à classificação esquemática de “tipos”, e valoriza o que há de mais humano e universal em cada um, desde a mãe extremosa até a irmã que não está tão segura de si assim, passando pelo noivo e por outros agregados que contribuem para o andamento da história. É interessante notar que a tal estética mencionada confere um aspecto quase documental a O casamento de Rachel, que tem sua grande força atrelada à atuação de Anne Hathaway, que merece o parágrafo seguinte.

A atriz, uma das mais requisitadas de sua geração atualmente, consegue demonstrar grande força e vivacidade na pele daquela que é a verdadeira protagonista da história. Normalmente anêmica e irrelevante em seus papéis, como em O segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain, 2005), ela exibe autenticidade e entusiasmo interpretando uma jovem com um histórico de desentendimentos com a família, cuja presença é a dinamite que faz eclodir uma série de engasgos que saem das gargantas dos convivas do matrimônio que movimenta o filme. Antes de sua Kym, seu papel mais apreciável talvez tenha sido um só: a Andrea de O diabo veste Prada (The devil wears Prada, 2006), em que desempenhou uma grande dobradinha com Meryl Streep. No filme de Demme, como bem definiu um crítico, Hathaway está tensa, arisca e linda, magnetizando as atenções para si e comprovando que está em franca evolução. Ela escapa dos tiques mais óbvios de quem tem o papel de uma (ex-) dependente química nas mãos, e oferece uma composição honesta e admirável, que ganha força com seus parceiros de cena.



O roteiro tem um dado curioso a ser comentado: ele foi escrito em apenas sete semanas e, apesar de ser o quinto da carreira de Jenny Lumet, foi o primeiro a ser rodado. Feliz escolha de Demme a de levar para as telas tal texto, já que sua sinceridade é um de seus pontos fortes, e ajuda a pinçar o filme de uma extensa seara de títulos que trazem reuniões familiares que se tornam lavagens de roupas sujas. A aproximação do roteiro e da montagem de O casamento de Rachel é muito mais de Festa de família (Festen, 1998), o grande marco do movimento Dogma 95, que de Tudo em família (The family Stone, 2005), um compêndio de lugares comuns sobre o tema. A maneira como a câmera se posiciona em algumas sequências, exercitando um certo voyeurismo, assemelha-se ao comportamento de intrusa silenciosa da lente de Vinterberg, que passeia pelos espaços como quem conhece cada recanto ali apresentado. Nesse sentido, ambos os filmes, cada qual com sua intensidade, traz para o foco a discussão sobre uma família disfuncional. O filão, como já se disse, é bastante profícuo no cinema de um modo geral, mas os acertos talvez sejam maiores que os erros.

O casamento de Rachel não é um daqueles dramas cuja força se assemelha a de um petardo, mas há que se notar que muitos de seus aspectos permanecem majoritariamente por um motivo : todos têm uma família, e a identificação virá em maior ou menor grau. Os encontros e desencontros que atravessam a narrativa demonstram seu caráter permansivo, pois onde há família, há incongruência e dissensões. Cabe comentar também a envolvente trilha sonora assinada por Donald Harrison Jr. e Zefer Tawil. Em uma das sequências mais musicais do filme, os convidados da festa se entregam a uma espécie de embriaguez na qual deixam fluir seu comportamento hedonista e despreocupado. Essa é uma das cenas mais interessantes apresentadas e, embora soe um tanto deslocada do decorrer da ação, confere um ar divagante a tudo o que vem acontecendo até então. É também um dos índices de personalidade do filme, algo tão urgente e necessário em um ambiente cinematográfico de isomorfismos preocupantes e submissão a fórmulas e esquemas descarados.

Em O casamento de Rachel, não existe espaço para culpados ou inocentes. Cada personagem é revelado em sua amplitude e em sua complexidade, o que caracteriza a obra como um passo adiante em meio a produções que retratam personagens chapados e sem grandes fragmentações. Kym talvez seja a síntese da grande contradição que atravessa a condição humana, com seus rompantes de verdade, suas tiradas agridoces e sua capacidade de continuar demonstrando afeto pela família em meio a calorosas discussões. A comemoração é sempre entrecortada por momentos de colocação de opiniões não muito agradáveis, que vão sucedendo um após o outro. Ao final da sessão, sobra a certeza de que, em família, não há terreno para o cultivo de meios-termos, e é preciso se desapegar de máscaras e capas para que o outro saiba com quem está lidando. Ainda assim, muitas vezes prevalecem os vernizes que embelezam aritificialmente as relações familiares, nossas primeiras relações com outros seres humanos, e apresentam pessoas que são como sepulcros caiados.

4 de out. de 2011

Cinema Paradiso e o amor explícito à sétima arte

O imaginário cinéfilo coletivo, de tempos em tempos, acolhe filmes que se inscrevem em uma espécie de panteão que os leva à lembrança franca e recorrente. Com Cinema Paradiso (Nuovo cinema Paradiso, 1988) aconteceu exatamente esse processo. Sua inscrição no rol dos inesquecíveis se deu quase concomitantemente ao seu lançamento, e fez dele um ícone de uma geração de apaixonados pelo fazer cinematográfico e pela nobreza da experiência de estar diante de uma tela acompanhando uma boa história. À base de alguns clichês que podem ser abstraídos, Giuseppe Tornatore ofereceu ao público uma emocionante e sincera abordagem de filmes dentro de um filme, e nos outorgou uma bela carta de amor ao cinema.



No centro da trama se encontra Salvatore (Jacques Perrin, na fase adulta), um homem que está afastado do contato familiar há algum tempo. Sua mãe tenta restabelecer comunicação com ele para avisar da morte do padre da pequena cidade onde ele viveu, e a notícia aciona uma grande caixa de recordações que estavam adormecidas naquele que agora é um cineasta bem-sucedido. Então, somos transportados para uma clássica narrativa em flashback, o primeiro dos clichês irresistíveis empregados por Tornatore para trazer encanto ao seu conto. E o personagem principal passa a ser interpretado por Salvatore Cascio, um adorável garotinho que conduz uma bela jornada por uma vida simples e algo dolorida, cabível dentro uma conjuntura de conflito, como o era a Segunda Guerra Mundial. Ali, envoltos por uma série de limitações de ordem financeira, os habitantes não tem grandes esperanças, e o cinema surge como uma grande possibilidade de mergulho em uma outra dimensão, capaz de fazer as pessoas esquecerem suas mazelas por aproximadamente duas horas.

O grande impacto, porém, surge para Salvatore, graciosamente apelidado de Totò pela família e, por tabela, pela comunidade local. O menino desenvolve uma relação de amizade sublime com Alfredo (Philippe Noiret), o projecionista do Cinema Paradiso, uma modesta sala que apresenta filmes não tão recentes e se torna uma das raras alternativas de entretenimento para os moradores da região. Em meio às suas travessuras de criança, Totò faz constantes visitas a Alfredo, e esse contato contínuo faz brotar no coração dele um amor imenso pelo ofício exercido pelo amigo. Não por acaso, ele faz do cinema a sua profissão, como indica o roteiro nos primeiros minutos de filme. Para o personagem, a sétima arte é uma grande porta de entrada para mundos inimagináveis, romances avassaladores, espetáculos grandiosos e uma fuga voluntária e algo saudável de uma realidade tão perversa. O menino não sabe sequer se seu pai, distante por causa da guerra, retornará para casa, e resta a ele entretecer sonhos mirabolantes proporcionados pela sala de projeção de sua cidade, que ganha cada vez mais freqüentadores. Os filmes, porém, têm de passar pelo crivo do padre, que se escandaliza com todas as cenas de romance e as censura, incitando o imaginário dos meninos da idade de Totò.

A amizade do garoto com Alfredo é o outro grande encanto do filme. O projecionista, um pobre homem que não se vê em outra profissão senão aquela, é dado a alguns rompantes, no melhor estilo italiano – é preciso cuidar para não ter uma concepção enviesada por estereótipos -, causados pela presença insistente de Totò em seu local de trabalho. O menino é arguto em suas negociações com Alfredo, e consegue obter definitivamente a disposição em ensiná-lo a lidar com as projeções depois de ajudá-lo em uma árdua tarefa: um exame escolar. Daí em diante, Totò aprenderá todos os procedimentos necessários para transformar os rolos em imagens, o que o levará, posteriormente, a espalhar o seu encanto com uma multidão de espectadores. Nesse sentido, Cinema Paradiso se revela como um ensaio poético sobre o poder da imagem e suas reverberações na vida de um espectador. A paixão pelo cinema move a vida inteira do protagonista, e ajuda a alinhavar suas lembranças, como quem está o tempo inteiro vivendo uma sequência de fotogramas. Nas entrelinhas, Tornatore sustenta que a vida é cinematográfica, e oferece um painel rico de possibilidades para cada um, que é o mais importante de sua própria história.



Interessante é observar que, quando estava filmando o longa, o cineasta o concebera como uma espécie de epitáfio para o próprio cinema, que, já àquela época, sucumbia à crescente industrialização perpetrada por tantos nomes que se atrelam a ele unicamente por razões comerciais e pecuniárias, bem como buscara apontá-lo como um signo da resistência das salas tradicionais, cada vez mais suplantadas pela proliferação dos multiplexes que arrebanham tertúlias de espectadores que privilegiam ação desenfreada e pouca emoção. Essa ideia acabou sendo deixada de lado diante do sucesso alcançado pelo filme. Pelo menos, o diretor nunca mais tocou no assunto, o que parece indicar o abandono da defesa dessa bandeira. Aqui também cabe a citação de A rosa púpura do Cairo (The purple rose of Cairo, 1985), filmado alguns anos antes a também lembrado como um tratado sobre o fascínio exercido pela sétima arte.A verdade é que o filme italiano se abre em muitas portas e permite debater qual a relação que cada espectador tem com o cinema. Há quem o enxergue como fonte de fruição e plataforma para a reflexão sobre questões profundas. Há quem o conceba como um espaço para risadas desatadas, diante de uma vida tão hostil que, por si só, já é dramática. A despeito de qual seja a maneira com que se encara o cinema, é indiscutível o apelo que ele exerce sobre o público, especialmente em uma sociedade tão imagética e adepta de tecnologias que se desenvolvem em progressão geométrica como essa contemporânea.

Não se pode esquecer de se comentar a bela trilha sonora assinada por Andrea e Ennio Morricone para o filme, também sempre lembrada quando se menciona Cinema Paradiso. As canções pulsam a cada cena, e traduzem uma realidade de desalento e o apego ao cinema como uma válvula de escape para uma vida um pouco menos ordinária. O compositor selou uma parceria recorrente com Tornatore, em títulos subsequentes como A desconhecida (La sconosciuta, 2006) e o recente Baaría – A porta do vento (Baaría, 2009). No filme analisado, a música é um dos grandes trunfos de que a narrativa dispõe para conferir grandiosidade e emotividade à trajetória de Totò. Esse aspecto do filme leva a uma citação a Ezra Pound, teórico da literatura que postulou que a linguagem poética é carregada de energia graças a à conjunção de três elementos: melopeia, fanopeia, e logopeia. Os termos têm origem grega e definem, respectivamente, o poder de criação da música, da imagem e da palavra. Esses termos podem ter seu uso alargado e pensado para a linguagem cinematográfica, carregada de impacto e capacidade mobilizadora. A doce melopeia de Cinema Paradiso salta aos ouvidos como um canto mavioso e sensível, que envolve os sentimentos, evidenciando um filme que não tem a menor vergonha de ser um filme para se sentir.

Seus intérpretes também contribuem para a fluidez e comoção interna, sobretudo o menino Salvatore Cascio, que ganhou o papel depois de ser testado como tantas outras crianças do lugar em que se deram as filmagens. Na vida real, ele tem o mesmo nome e o mesmo apelido do personagem escrito por Tornatore, o que chamou a atenção do diretor. Entretanto, o que levou-o a eleger Cascio como Totò foi a grande habilidade do garoto em memorizar as falas e marcações de uma cena durante os testes de elenco. Que pessoa com um pingo de sentimento e emoção resiste ao encanto do personagem? Sempre envolvido em pequenas encrencas, mas também uma criança amorosa e compassiva, ele ganha o público quase à primeira vista, que começa a partilhar de seu enternecimento diante de um desfile de imagens filmadas. Com todos os fatores agrupados e uma sinceridade e eficiência no uso de alguns lugares comuns para os dramas, Cinema Paradiso atesta sua beleza em sua arquitetura cênica que nos leva a pensar no quão idílicos podem ser a infância e o cinema, levando à velha constatação emoldurada por uma memória edulcorante de que “éramos todos felizes e não sabíamos”.