29 de mar. de 2010

"Adaptação", uma jogada de um mestre da metalinguagem

Quando se fala em Charlie Kaufman logo se pensa em histórias mirabolantes, pouco compromissadas com a lógica e a verossimilhança. Seus desvarios sempre são dignos de reações diversificadas: uns amam, outros não entendem, alguns detestam, outros simplesmente ainda não conhecem tão bem. Nenhuma das opiniões acima, porém, pode ser obstáculo para que se assista a "Adaptação", um grande filme roteirizado por esse que é um dos melhores profissionais de sua área em atividade. Uma viagem insana está garantida aos seus espectadores, a começar pelo seu protagonista, vivido por um inspirado Nicolas Cage, num de seus melhores papéis em anos.

Ele é Charlie Kaufman, ninguém menos que o próprio roteirista do filme, o que até pode ser interpretado como um eficiente exercício de egolatria. É típico de alguém tão idiossincrático como ele, mas não vem exatamente ao caso. A missão de Charlie é adaptar um livro sobre orquídeas, da escritora Susan Orlean, magistralmente defendida por Meryl Streep. Mas isso não é nada simples, já que ele tem que lidar com uma série de frustrações que o acompanham há tempos. Uma delas é seu irmão gêmeo Donald, que morre de inveja dele e quer ocupar a função que ele vem tentando desempenhar a duras penas. Charlie também está enfrentando problemas de ordem sexual, o que significa dizer que ele está lidando com sua impotência. Vale ressaltar que não é o principal tentar descobrir se há algm teor autobiográfico na descrição desse protagonista. Até porque Kaufman cria uma grande brincadeira com a metalinguagem.
E essa brincadeira se dá através de um jogo complexo e intrincado que ele propõe ao espectador, que vai ficando cada vez mais interessante exatamente à medida em que sua profundidade vai aumentando. Traduzir tudo o que surge no filme é estragar muitas supresas que estão reservadas para quem assistir a ele, já que há espaço para vários acontecimentos. Há até mesmo um filme dentro do filme. A bem da verdade, o discurso metalinguístico funciona como um mannacial eterno para a escassez de ideias. Parte-se da questão da ausência do que dizer, para começar a dizer algo. É um recusro presente na literatura, e que o cinema incorporou muito bem. Grandes diretores, numa espécie de desrto criativo, recorreram a esse expediente muito eficaz. Federico Fellini, ao dirigir o legendário "8 1/2", enveredou por esse caminho, e o filme é hoje um dos melhores de sua carreira. Woody Allen, mais de uma vez, seguiu trilha semelhante, como quando dirigiu "A rosa púrpura do Cairo", e mais
tarde, ao entregar "Dirigindo no escuro". O resultado de ambos foi excelente. E há apenas dois anos, por ocasião do aniversário de 60 anos do festival de Cannes, um time de diretores magníficos foi responsável pelo engenhoso "Cada um com seu cinema", um poema coletivo de apreço à sétima arte.
Voltando a "Adaptação", a maneira com que o filme é conduzido é sua grande qualidade. Essa também é a segunda parceria entre Kaufman e o diretor Spike Jonze, depois do não menos inusitado "Quero ser John Malkovich". A sintonia entre os dois já parece consolidada, pois se percebe que Jonze está plenamente inserido nos devaneios perpretados pelo roteirista. A junção entre eles representa o tráfego pelos delírios da mente humana e por um cinema que não está ancorado numa realidade convencional, mas numa quase verdade muito mais inventiva e atraente. Kaufman é o narrador de histórias maravilhosas, para as quais o público é convidado sem qualque cerimônia, e que dificilmente causa arrependimento a quem embarca nelas. O horizonte de expectativas de quem vê um filme escrito por ele deve ser o mais amplo possível, já que nada é tão óbvio quanto possa insinuar que seja.
Quanto ao livro a ser adaptado por Kaufman - o personagem de Cage -, ele se chama "O ladrão de orquídeas", e o escritor tem a chance de se encontrar com sua autora. É a chance de os espectador ver uma Meryl Streep muito diferente daquela a que está acostmado, já que a atriz se despe de sua aura de sofisticada para encarnar uma personagem que se permite todo tipo de prática, como fumar maconha. Pelo papel, a Academia a indicou ao Oscar de atriz coadjuvante, mas ela perdeu. Seu companheiro de cena, Chris Cooper, em atuação igualmente inspirada, também foi indicado, e acabou levando a estatueta em sua categoria. Por tudo isso, "Adaptação" vale ser visto. É o tipo de filme que fala por si só, necessitando de pouquíssimas palavras para que seja legitimado.

26 de mar. de 2010

"Não estou lá", o caleidoscópio de uma lenda viva

O subgênero da cinebiografia ganhou um novo exemplar quando Todd Haynes decidiu dirigir "Não estou lá". É uma obra que se debruça sobre a vida de ninguém menos que Bob Dylan, uma importante figura do mundo musical, que merece todo o respeito e consideração por suas contribuições para esse ambiente. Multifacetado, o artista impingiu no diretor uma necessidade de retratá-lo da maneira mais múltipla possível, o que se verifica desde o início de seu filme. Com isso, Hanynes transformou a experiência de seu "Não estou lá" numa viagem maravilhosa pela vida e pela obra desse homem tão fascinante.

A começar pela forma com que o elenco vive as várias fases de Dylan, o longa tem características que o tornam pouco comum entre os demais de seu tempo e de seu gênero. Para personificar as épocas distintas de sua trajetória, o diretor recrutou nada menos do que seis atores, que representam não exatamente a pessoa Bob Dylan, mas a essência de cada momento de sua carreira brilhante e profícua. Entre os nomes que se encarregam da função nada simples de dar vida e corpo ao artista estão Richard Gere, capaz de mostrar um talento muito maior que na interpretação de outros personagens. Também dá vida a ele o excelente Heath Ledger, perfeito em sua composição detalhista do cantor. E o que dizer de Cate Blanchett, que entrega uma das mais emblemáticas atuações de toda a sua carreira? Por mais lugar-comum que seja, a constatação de que ela desaparece no personagem é altamente válida. Desde que ela surge em cena, não é possível se lembrar que se trata de uma mulher dando vida a um homem.

Mas "Não estou lá" ainda tem outros elementos louváveis ao longo de suas duas horas de duração. A jornada pela vida de Bob Dylan é contada de forma não linear, o que permite que suas idas e vindas no tempo não mantenham o espectador ancorado numa visão única a respeito do artista. Haynes se utiliza muito bem desse recurso, e imprime vitalidade a um filme que não resvala para a mera rasgação de seda diante de um ídolo. São mostradas algumas passagens negativas da vida dele também. Há também uma leva mescla de ficção com documentário, em sequências nas quais nomes como Julianne Moore dão vida a personalidades importantes que tiveram contato direto com a figura inquietante do cantor. A participação da atriz no filme é quase afetiva, já que ela surge na tela como um foguete. Moore vem de parcerias anteriores com Todd Haynes, nos filmes "A salvo" e "Longe do paraíso". A oportunidade de desfrutar de seu talento é fugaz, por isso deve ser vivida intensamente nesse longa.
Aspectos fundamentais da vida de Bob são mostrados aqui, como seu autodidatismo para aprender piano e guitarra, primeiras provas de seu grande talento para a música. Seu encantamento pela folk music também é registrado, reflexo da profunda admiração que desenvolveu por Woody Guthrie, um importante nome desse movimento. A década de 60 foi a época mais intensa na carreira de Bob Dylan, já que foi quando se deram as suas maiores metamorfoses. Tudo começou mesmo em 1962, quando ele lançou o primeiro de mais de 45 álbuns, o que o levaria mais tarde a ser eleito pela revista "Rolling stone" o segundo melhor artista de todos os tempos, atrás apenas dos Beatles. Ao longo de todos esses anos, Dylan já recebeu todo tipo de rótulo, mas sempre acabou
escapando deles, de uma forma ou de outra. Isso diz bastante a respeito de sua personalidade, sempre desconstruída para dar início a mais uma fase.
Haynes filma a maior parte de "Não estou lá" usando uma paleta de cores muito diversificada, mas também a abandona em certa altura, quando entra a versão de Cate Blanchett para o artista. Na verdade, cada ator que tem a função de viver Bob Dylan expressa um momento distinto de sua longa caminhada. Além disso, cada um tem um outro personagem para interpretar, o que faz do filme um constante jogo de quebra-cabeças. A linguagem é fragmentária, o que pode desagradar aos mais conservadores. Mas todas essas peculiaridades de que Haynes lança mão são absolutamente condizentes com a figura singular desse homem extraordinário. Cada fotograma da produção se assemelha a um caleidoscópio gigante, aqueles brinquedinho a que somos apresentados na infância e que nos entretém tanto com sua diversidade imagética. A metáfora se aplica com eficiência ao longa, que não se propõe uma lição de casa sobre Bob Dylan. Pelo contrário. O roteiro um tanto dotado de hermetismos passa longe da abordagem didática. Mesmo assim, para quem conhece pouco ou nada da obra de artista, é possível ter uma dimensão de sua representatividade para o âmbito musical, e também para além dele, já que sua influência se estende inclusive para a política e para o mundo das artes em geral. Essa é uma das principais características de sua obra, o diálogo com inúmeras frentes, o que a mantém com um senso de atualidade frequente e a potencializa para além de qualquer fronteira com a qual se queira delimitá-la. Por isso Haynes é tão feliz ao não optar pela unilateralidade. Depois de um filme tão sensível e delicado como "Longe do paraíso", é surpreendente ver o diretor no comando de uma obra tão desobrável, o que só assegura sua versatilidade e talento.
Distante de parecer uma colcha de retalhos, o filme só ganha em qualidade também com sua trilha sonora fabulosa. Como não poderia deixar de ser, aliás. O músico tem uma série de canções memoráveis, que não ficaram de fora desse filme. Pode soar como pretensão uma ou outra alternativa adotada na abordagem de Todd Haynes para "Não estou lá", mas essa é uma impressão que desaparece quando se assiste a sua visão plural desse artista tão completo. Com muita categoria, Dylan exprime um sentimento que é flagrante na modernidade, o de que somos muitos dentro de um só. Seu desdobramento em numerosas personalidades só reafirma o que, já em Fernando Pessoa se mostrava com grande veemência. Assim como o português lançou mão de seus heterônimos, numa tentativa de dar conta de seu mimetismo e de sua multiplicidade, Dylan trafega por estradas de muitas bifurcações para estabelecer pontes com vários ambientes, estações, ideias e ações.

A verborragia reinante de "Pauline na praia"

Palavras, palavras, palavras... é através delas que Eric Rohmer enreda seu espectador em "Pauline na praia". Na verdade, essa é uma tendência de seu cinema compo um todo, praticado há tempos, desde o final da década de 50. Egresso de um time de ouro que exercia a crítica cinematográfica na legendária "Cahiers du cinéma", Rohmer privilegia os diálogos em seus filmes, de maneira que a ação é quase mínima na maioria deles. Isso ocorre também com "Pauline na praia", que ele filmou em 1983. Essa é a grande qualidade do longa, que lida com as questões mais banais da vida com muita propriedade.

A trama que se desenrola ao longo de pouco mais de uma hora e meia é muito comum também: durante alguns dias, uma adolescente esperta fica numa casa de veraneio com sua prima mais velha. Ela acaba conhecendo um garoto que a atrai, e se deixa envolver por ele, ao mesmo tempo em que descobre que o namorado de ocasião de sua prima a está enganando, mantendo um romance paralelo com outra mulher bem debaixo de seus olhos. A narrativa do filme se resume praticamente a esses elementos, que acabam servindo apenas como pano de fundo para uma série de discussões a respeito da efemeridade da vida, da inconsistência dos sentimentos humanos e do mistério que é tentar entender os próprios desejos e os desejos do outro. E Rohmer consegue levar essa discussão adiante por meio de diálogos envolventes e criativos, que aguçam o pensamento do espectador acerca desses assuntos tão pertinentes para qualquer um.
A paisagem idílica eleita pelo cineasta para rodar essa obra também diz bastante sobre a condição do homem: mesmo em meio a toda a belez que houver, sua insatisfação dará mostras de que se mantém viva. E a ideia de colocar uma jovem e uma mulher mais velha vivendo seus amores lado a lado evidencia uma questão interessante. Nas atitudes tomadas por uma e outra, nota-se que há sempre uma certa dose de imaturidade do indivíduo diante do amor. Pauline é muito inteligente e já tem noção do que espera de uma rapaz, mas muitas vezes escorrega na maneira como busca o que quer. O mesmo acaba valendo para sua prima que, mesmo se dizendo muito entendida na área não se dá conta de que está sendo passada para trás.

Assistir a "Pauline na praia" exige do público uma certa dose de paciência, já que Rohmer não está preocupado em levar a cabo suas discussões tão rapidamente. Um filme do diretor se pauta mormente no exercício da contemplação, que afugenta boa parte dos espectadores, incluindo certas classes de cinéfilos. O mergulho nas diferentes visões que o diretor apresenta a cada filme é o mais interessante que ele tem a oferecer. Ele é daquela estirpe de realizadores que consegue navegar pelas mesmas águas quase sempre, porém encontrando novos ângulos de observação onde já se sente tão à vontade. Não é uma caractarística que se possa atribuir a qualquer cineasta. De talento semelhante, só alguns poucos, como Woody Allen, Pedro Almodóvar e François Ozon. Esses importantes nomes não têm compromisso direto com a originalidade, mas com a busca constante de analisar e entender a inquietude do ser humano sob vários aspectos. Não significa dizer que sempre são felizes em suas abordagens, afinal, os mais geniais também cometem seus deslizes vez por outra. Mas isso não desmerece suas obras em nenhum centímetro.
O cineasta pertenceu a uma geração que filmava à moda antiga, da qual existem hoje poucos representantes vivos. Os enquadramentos da câmera são muito pontuais, e ele se utiliza dela para dissecar os interiores de seus personagens com muita perícia. Não se trata de um cinema factual, mas sim de uma produção voltada para dentro. Essa peculiaridade pode ser uma das razões mais fortes para que ele nunca tenha sido uma unanimidade, tanto entre o público como para a crítica. Mas ele sempre pareceu pouco atento a esse detalhe, e tinha plena consciência do que estava fazendo. Já exercera o ofício da crítica antes de enveredar pelo caminho da direção. Na vida pessoal, Rohmer sempre adotou uma postura discreta, o que permitiu que sua obra aparecesse mais que sua personalidade. Mas mesmo que autor e obra não se confundam, é possível que se pense que um pouco de seus ideais estejam presentes em seus filmes. Partindo dessa premissa, pode-se dizer que Rohmer não é do tipo que emita opiniõess hipócritas sobre os sentimentos, e que sua sentença para o ser humano é a de que exista nele uma grande necessidade de eterno aprendizado

22 de mar. de 2010

"Igual a tudo na vida" e o peso das pequenas coisas

Com um carreira que já contabiliza 41 filmes, Woody Allen não precisa mais provar nada a ninguém. O diretor sempre trabalha com os atores que quer, e acaba sempre dando um jeito de supreender nas abordagens dos temas que lhe são caros. "Igual a tudo na vida" não foge à regra, embora seja um dos filmes menos inspirados desta década em seu cinema. Não importa. Allen nunca deixa de ter relevância, mesmo quando passa por instantes de brilho mediano.

Quando dirigiu este "Anything else" (no original), ele já estava quase septuagenário, e muitos dizem que esse filme se trata de um "Noivo neurótico, noiva nervosa" revisitado. Não é uma afirmação totalmente sem sentido, já que "Igual a tudo na vida" guarda mesmo algumas semelhanças com a obra mais famosa do cineasta. Como no filme de 1977, aqui também há uma mulher que leva um homem à beira de loucura, e armadilhas que envenenam a relação a dois surgindo uma após a outra, sem que ambos se deem conta de que o fim da paixão está para chegar. Ela tem uma grande volubilidade, enquanto ele se esforça o quanto pode para entendê-la e satisfazê-la. Entretanto, sintetizar esse longa como uma cópia do outro é extremamente limitador. Afinal, "Igual a tudo na vida" também tem seus méritos próprios.
A começar por seu título em português, o filme é sincero em se demonstrar como uma visão de banalidades que acontecem a toda hora com qualquer pessoa. Foi um escolha feliz batizá-lo assim. Desde seu nome, a história não engana ninguém. Tem-se aqui a vida de Jerry Falk (Jason Biggs), um escritor que vive uma crise sem precedentes, e precisa fazer as pazes consigo mesmo. Só na sucinta descrição do protagnista, percebe-se que Allen apresentará algumas gags sobre um tema que já dissecara antes. Em "Desconstruindo Harry", ele era um escritor que comprava brigas com todos à sua volta pela sua visão provocadora de amigos e parentes. Em outros filmes ele também entrava por esse caminho. Por isso, além de igual a tudo na vida, o filme também é igual, mas não totalmente, a outras obras allenianas. Isso não chega a ser um demérito, pois Woody Allen consegue manter o interesse no espectador. É possívek assistir ao filme movido pela seguinte interrogação: como será que ele vai falardas neuroses individuais e coletivas dessa vez? Essa simples questão já funciona como uma boa justificativa para que se descubra o que ele tem a dizer.

Voltando à sinopse, um dos grandes problemas enfrentados por Jerry é sua relação intempestiva com Amanda (Christina Ricci), uma mulher tão linda quanto escorregadia. Ela nunca parece estar inteiramente ao alcance do rapaz, que se vê desconsolado com sua distância constantee progressiva. A paixão de Jeey por Amanda foi à primeira vista. Mas logo vem Allen com sua lente de aumento e maximiza as pequenas loucuras desse casal, despertando risadas que vêm acompanhadas de uma dose de identificação, algo que o cinema do diretor sempre consegue gerar, de uma maneira ou de outra. Ele abriu mão do papel de protagonista, preferindo escalar Jason Biggs para o posto. Mas não deixa de aparecer em cena, dessa vez como David Dobel, um escritor veterano que dá alguns conselhos insanos para o jovem e ainda inexperiente Jerry. A escolha de Biggs para o personagem é um tanto questionável, já que sua filomgrafia pregressa exibia pérolas de gosto duvidoso, como a série "American pie". Ainda assim, parece que Allen quis dar um voto de confiança para o ator, e até que não fez mal de todo. Como de costume, um ator que fica com o papel que seria do diretor incorpora seus trejeitos, e eleva à potência máxima a insegurança quanto às mulheres, o questionamento da vida em todos os ses aspectos, uma cota de mau humor que o leva a reclamar muito, entre outras características. Por isso, mais do que Jerry Falk, Jason Biggs tem a responsabilidade de encarnar o alter ego de Woody Allen. De um modo geral, ele consegue dar conta do recado, embora fique aquém do desempenho de outros atores que desempenharam essa mesma função, como Kenneth Branagh em "Celebridades". A comparação também se torna inevitável porque desta vez o próprio Allen também está em cena, o que evidencia alguma discrepância na atuação dos dois. Sim, porque o diretor também sabe atuar muito bem, e tem grande domínio do timing cômico nas mãos. A trama, como já se disse, é absolutamente simples, e acaba servindo para que ele debara sobre questões diárias com eficácia, mais uma vez. Ainda estão presentes no elencos ótimos coadjuvantes, como Danny DeVito, muito bem na pele do agente de Jerry, e Stockard Channing, que arrasa interpretando Paula. As tiradas geniais, grande trunfo de Allen, também aparecem com veemência. Na conversa de Jerry com um taxista, tem-se uma discussão interessante sobre a existência, uma preocupação constante do diretor. E o jazz, outra paixão declarada dele, novamente tem seu espaço, numa agradável sequência em que Diana Krall é citada por causa de uma apresentação sua num piano bar. "Igual a tudo na vida" é isso. Um filme que não é melhor nem pior que tantas outras comédias, apenas mais consistente e instigante que a visão de diretores menos experimentados e parcos de conteúdo. Com uma simples ideia, Allen construiu praticamente toda a sua filmografia, sem esgotar as possibilidades de diálogos sobre tudo o que mexe com a cabeça e o coração dos homens. Ao começo da exibição dos créditos finais, fica a sensação de que se teve mais uma conversa proveitosa com um velho conhecido que expõe sua visão contributiva sobre as pequenezas que têm grande peso.

Emoção, força e docilidade em "As chaves de casa"

Delicadeza é a principal carcterística e também a maior qualidade de "As chaves de casa", do italiano Gianni Amelio. O cineasta é responsável por levar a plateia às lágrimas sem lançar mão de um pingo de sentimentalismo. Ele conta apenas com a emoção que, por si só, a história que deseja contar desperta. O longa acompanha uma jornada dolorida de um homem (Kim Rossi Stuart), que decide finalmente se aproximar do filho de 15 anos, com quem nunca teve muito contato. Acontece que o garoto tem uma deficiência que faz com que ele tenha que ir, anualmente, até Berlim, onde faz sua terapia.

Essa acaba sendo a deixa para que o pai estreite seus laços com o menino, já que ele decide acompanhá-lo na sua próxima viagem à capital alemã. Está dada a premissa de um drama forte, que é muito mais impactante do que sua breve sinpose possa fazer parecer. Amelio tem uma ótima mão para conduzir as interpretações e desviá-las da pieguice. Ele se utiliza de muita ternura para extrair de todo o elenco uma sinceridade comovente. Kim Rossi Stuart demonstra todo o seu talento na pele de um pai culpado que passa a experimentar as dores e as delícias de se ter um filho. No caso de seu personagem, as dores são muito maiores que as delícias, já que ele tem de lidar com constantes avanços e reveses vividos pelo jovem Paolo.
Depois que chega ao hospital no qual o filho passa pelo tratamento, Gianni, o pai conhece Nicole, uma mulher que tem um filha também deficiente. Em alguns minutos de conversa com ela, é confrontado com a dura verdade que permeia a vida de quem precisa acompanhar a rotina de um eterno paciente em suas limitações. A mãe resignada e incansável é defendida com propriedade pela talentosa Charlotte Rampling, atriz dotada de uma versatilidade admirável. Ela transita muito bem entre o italiano, o francês e o alemão através de sua personagem, que ab funcionando como uma ponte para a entrada de um pai hesitante num universo desconhecido e inesperado. Ele vai aprendendo dia após dia a vencer muitas etapas importantes, sem ter a certeza de que amanhã será melhor do que hoje.

É nessa abordagem que se equilibra bem entre o emocional e o prático que reside a relevância de "As chaves de casa". O diretor nunca permite qe Paolo desperte o sentimento de comiseração no espectador. Ele tem, sim, um grande problema, mas consegue trazer alegria a Gianni a cada nova conquista, e se mostra muito mais ciente do mundo ao seu redor do que faz seu pai imaginar. Isso também conta a favor de Amelio, porque faz com que seu filme não soe panfletário. Antes de tudo, trata-se de um conto sobre as infinitas possibilidades da vida, e sobre a necessidade que todos temos de ajudar e ser ajudados pelas pessoas que estão à nossa volta. Gianni, em sua decisão de ficar mais perto de Paolo, percebe a importância de se reinventar, adequando-se à nova situação que começa a viver. A transformação do personagem em prol do filho é tocante, e leva reflexões intensas acerca das relações paternais. Mais do que isso, remete ao pensamento sobre como os seres humanos estão se relacionando uns com os outros atualmente. Num mundo cujo contato pessoal está cada vez mais escasso, e todos estão cada dia mais virtualizados e cibernéticos, uma discussão a respeito do tema tem relevância máxima. Por todas essas características, "As chaves de casa" não é um filme que se deva deixar passar despercebido. Ele prova que o cinema italiano ainda rende exclentes histórias, e faz com que lindas experiências possam ser compartilhadas.

20 de mar. de 2010

A investigação do nascimento de um mal em "A fita branca"

Nos filmes de Michael Haneke, nota-se que o diretor não parece preocupado em responder a todas as questões que levanta. Como um investigador que está atrás de evidências para comprovar sua teoria, ele imerge em águas por vezes turvas, na tentativa de entender o mal do mundo. Mas seu entendimento não necessariamente coincide com o olhar do espectador. Em "Caché", sua câmera observadora se voltou para o cotidiano de um casal parisiense que tinha a paz abalada pelo envio sistemático de estranhos vídeos que mostravam sua rotina. A partir desse argumento, Haneke falava sobre feridas que carregamos sem nem sempre nos darmos conta, além de demonstrar que a desconfiança pode acometer até as mais sólidas relações, quando menos se espera. Entretanto, sua perscrutação chegava a um suposto fim sem todas as perguntas respondidas.

Esse também é o caso de "A fita branca", mais uma produção que não se importa em dar todas as resoluções de bandeja para o público. Sair com um ponto de interrogação ao final da exibição do filme é quase certo. Para contar uma história que se presta a tentar encontrar as raízes do "mal" na Alemanha, ele usa o preto e branco, resultando numa fotografia belíssima. A trama começa com a narração de um homem cuja voz denuncia sua velhice. Ele conta sobre estranhos acontecimentos que se deram em um vilarejo no começo do século XX, onde habitava. Cenas de que ouviu falar e que guardou na memória, mas das quais ele não tem absoluta certeza. É assim, já envolto em uma névoa de mistério, que o filme prossegue. O ritmo das cenas é lento, adequado à vida de uma comunidade rural de quase cem anos atrás. Tudo acontece vagarosamente, gerando uma prolixidade não em palavras, mas em duração. São mais de duas horas nas quais o público vê expostos pensamentos e atitudes com as quais nem sempre irá concordar.
O narrador dos acontecimentos era o maestro do coral de crianças da localidade e, aos poucos, vai dando sua visão do que se deu por ali. Uma visão que parece pouco tendenciosa, pelo menos à primeira vista. Ali, uma armadilha é colocada para derrubar o médico que vem montado em seu cavalo, um celeiro é incendiado sem explicação aparente e duas crianças passam por tortura depois de terem sido sequestradas. Cada fato parece ser independente um do outro, mas logo eles parecem formar uma unidade, que quem assiste o filme pode encontrar ou não. A maneira quase cientificista com que Haneke apresenta sua história pode soar chocante em alguns momentos, mas isso não é novidade na carreira do diretor. Afinal, ele polemizou com seu "A professora de piano", um de seus filmes mais controversos, e em vários outros, como "Violância gratuita", que ganhou recentemente um refilmagem no sentido mais literal da palavra. Trata-se de um diretor que não busca o meio-termo, o que faz dele mais que um mero contador de histórias. Seu cinema é feito de instigantes convites à reflexão, pautados pela ideia de que há muitas verdades, para a maioria dos fatos ou das suposições, sendo uma questão de ângulo acreditar em uma ou em outra.

A ausência de cores do filme não impede que se note a lividez das crianças, sempre muito resignadas em suas atitudes. Uma cena em especial evidencia essa visão conformista da vida que elas compartilham. A filha do barão local, ao ser perguntada pelo irmão mais novo se a pai deles morrerá, responde que sim, que um dia ele morrerá. O menino prossegue, e pergunta se isso acontecerá também à irmã, ao que ela responde também positivamente. Ele ainda insiste, e pergunta se todos um dia morrerão, e a confirmação da menina o deixa num misto de desolação e desesperança. Muito já se disse a respeito desse comportamento passivo desses personagens, inclusive que aquela seria a geração que apoiaria o nazismo décadas mais tarde, com a ascenção de Hitler ao poder. Mas essa é apenas uma questão, e há muitas outras interpretações possíveis para as atitudes daqueles meninos e meninas.
Haneke não se utiliza de grandes invenções narrativas, preferindo conduzir seu enredo com parcimônia, o que revela um filme muito mais simples do que se possa supor. O foco é na investigação do mal, que parece estar para nascer naquela região. O diretor leva sua câmera a um estágio de observação que se parece muito com a estética naturalista, que descreve a realidade sem fazer grandes julgamentos. Os fatos estão ali, para quem quiser ver e tirar suas próprias conclusões. O maestro, que toma para si a missão de descobrir o que está por trás daqueles acontecimentos sinistros. Ele está certo de que existe uma verdade aterradora escondida naquele vilarejo. Seus alunos, sempre contidos e de poucas falas, parecem carregar culpa pelos atos que cometem. É por causa de um desses atos que o barão decide castigar seus filhos, impondo-lhes o uso de uma fita branca, com o intuito de lhes evocar a necessidade de se preservar a pureza e a inocência. Daí o título da obra ser exatamente esse em bom alemão: "Das weisse band" (A fita branca).
No geral, esse é um filme destinado a pequenas plateias. O discurso de Haneke não é eloquente, a violência apresentada não resvala para a mera espetacularização e não há cenas que buscam a comoção do público a todo custo. O diretor é favorável a dizer muitas coisas com o mínimo possível. A longa duração de "A fita branca" contrasta com sua economia em diálogos e ações, que se traduzem num tipo específico de concisão, para além do que as imagens possam traduzir. Aliás, é nas imagens que reside a grande força do longa, que não demonstra uma intenção de causar impacto. Se acompanhado apenas sob um olhar contemplativo, também despertará muita inquietação e dúvida. Porque ninguém tem as respostas prontas para tudo o que há no mundo. Tudo tem uma esfera de insondável.

18 de mar. de 2010

"Viagem a Darjeeling", uma nova loucura de um grande diretor

A filmografia excelente de Wes Anderson ganhou um novo exemplar em 2007, quando ele rodou "Viagem a Darjeeling". O longa é mais uma comédia inusitada protagonizada por tipos estranhos, com os quais o espectador vai se habituando aos poucos. Se em "Os excêntricos Tenembaums" ele falava de laços familiares sob uma perspectiva algo bizarra, e em "A vida marinha com Steve Zissou" trouxe um olhar diferenciado para um filme de viagem, neste mais recente longa ele volta a exercitar sua visão aquilina para flagrar pequenezas que põem em xeque a normalidade de seus personagens, sempre apenas uma aparência.

Para contar essa nova história, ele reúne Jason Schwartzman, Adrien Brody e Owen Wilson para personificar três irmãos que estão vivendo uma relação deteriorada pelo tempo e pelo afastamento. Eles não se veem dsde que o pai foi enterrado, um ano antes dev seu reencontro. Cada um com seu rumo tomado, eles se dão conta de que não podem mais se manter distantes. Na verdade, a iniciativa parte de Francis (Wilson), que logo no início do filme aparece com o rosto envolto em curativos, resultado de um acidente de moto. Aliás, especulou-se nos bastidores, na época do filme, que Wilson teria tentado se matar na vida real e, portanto, seus curtivos não eram ficção. Verdade ou não, é um assunto que não cabe para determinar a análise do longa. Francis convoca seus dois irmãos, Peter (Brody) e Jack (Schwartzman) para uma jornada espiritual, na qual eles terão um encontro consigo mesmos. A proposta de Francis, em si, já é o primeiro passo para uma série de dados insólitos que acompanharão a trajetória desse trio.
As marcas de Anderson, como seu modo oblíquo de narrar a trama que apresenta, estão evidentes, o que deixa claro logo de cara que não se trata de um filme comum. O tom cômico aparece em várias sequências, mas sempre envolto em uma atmosfera surrealista. Os elementos que evocam esse aspecto incluem a fotografia, que é marcada pelas cores um tanto berrantes, o que revela um quê de Almodóvar. Mas aqui ela parece traduzir uma crítica a artificialidade da vida, um pouco como faz Alain Resnais em seus filmes. A caracterização dos três irmãos também ajuda a mergulhar no clima um tanto soturno que os acompanha na viagem ao lugar do título.

Francis, o autor da ideia da viagem, não é o único com problemas. Peter passa por uma certa crise existencial depois de descobrir a gravidez de sua mulher, e Jack ainda não se refez do fora que levou da namorada, e quer tê-la de volta a todo custo. O rompimento dos dois é mostrado em "Hotel Chevalier", um curta que precede "Viagem a Darjeeling". Ali, o espectador tem a chance de acompanhar as últimas palavras ditas por eles antes do fim da relação. A expressão turbada de Jack resume seu desconsolo pelo fato. A sequência de 13 minutos traz Natalie Portman num esplendor de beleza e frivolidade. Sua personagem sequer é nomeada, é apenas a "namorada de Jack". "Hotel Chevalier" serve como um prólogo para que se comece a assistir aos descaminhos de Francis, Peter e Jack, entendendo-se um pouco melhor como estão suas vidas pouco antes de voltarem a se ver. Ao final da viagem empreendida por eles, chagarão a uma espécie dev retiro espiritual onde se encontra a mãe deles, da qual se perderam pouco a pouco.
O caminho é percorrido dentro do expresso Darjeeling, um trem simpático e pitoresco no qual eles conversam, divagam, discutem, sofrem, lembram-se e se apoiam. Naquela louca jornada, eles só têm um ao outro. Alguns itens incomuns estão presentes na bagagem dos irmãos, como um spray de pimenta que será empregado na hora certa, e uma máquina plastificadora, que parece não ter utilidade alguma naquele périplo. A viagem a Darjeeling é feita de momentos hilariantes, que trazem consigo um teor de reflexão muito interessante. Pode parecer um filme como tantos outros, mas este não é mais um sobre viagem. Anderson tem sempre algo mais a oferecer, com filmes que nunca se contentam apenas com a superfície. Eles sempre vão além disso, do óbvio ululante que reina em nossos dias. Aqui não há fórmular prontas, diálogos débeis e a previsibilidade passa longe do enredo. O diretor se usa de uma premissa banal para falar de dificuldades inerentes a qualquer ser humano. Os problemas de comunicação, que assolam qualquer tipo de relacionamento, não são evitados aqui. Os três irmãos não se odeiam, mas também não morrem de amores um pelo outro e têm problemas em expor o que realmente está se passando com eles.
Há também espaço para que se critique os mundo místico, que a toda hora lança sua novidades e atrai legiões de crédulos. Na busca dos três para um encontro consigo memsmos, eles são confrontados com a validade dos métodos que lhes apresentam diante dos olhos. Até onde não se trata de uma estetização, um embelezamento que torna todos mais plastificados e autocentrados? Em dado momento da história, surge um negociador que lhes faz uma oferta curiosa, que só quem ver o filme saberá qual é. Ele é vivido por Bill Murray, colaborador habitual nas produções de Anderson desde "Três é demais". O ator já parece bastante à vontade no universo particular do cineasta, assim como Owen Wilson, que já escreveu roteiros em parceria com ele, e aqui faz seu terceiro trabalho sob a batuta de Anderson. No fundo, o realizador se debruça sobre os mesmos temas de seus filmes anteriores, mas não se esgota pela repetição. Ele sempre acaba encontrando uma maneira nova de discorrer sobre assuntos que interessam a gregos e troianos, ainda que seu resultado final não goze de uma apreciação unânime.
"Viagem a Darjeeling" chega ao seu fim trazendo a certeza de que escolher um caminho que se desvencilhe do lugar-comum ainda é possível no cinema atual. Essa arte precisa sempre de novas ideias e de novas linguagens para se debater temas recorrentes, ou de novos temas que venham a ser trabalhados com igual originalidade, a fim de que seu fôlego sempre exista. Nesse filme mais recente, Wes Anderson propõe uma viagem no sentido mais amplo da palavra, enveredando por caminhos improváveis e interessantes. Acaba por importar mais o caminho em si do que chegar ao destino final. E é triste ter que se despedir de companheiros de viagem que pareciam tão reais, tamanha a identificação que despertam.

16 de mar. de 2010

A tragédia humana de "Ensaio sobre a cegueira"

Nas lentes de Fernando Meirelles, o livro de José Saramago ganhou uma adaptação fantástica, em todos os sentidos. "Ensaio sobre a ceggueira", mais recente trabalho do diretor brasileiro, é daqueles filmes capazes de arrebatar a plateia indo a fundo em suas consciências, através de uma mensagem urgente. Capitaneado por um elenco que está em perfeita simbiose dramática, ele apresenta uma investigação, assim como acontece no livro, a respeito de uma inexplicável epidemia de cegueira branca que assola uma cidade que nunca é nomeada.

Logo no início da trama, um homem não consegue mais dirigir seu automóvel, pois tudo o que vê é um líquido leitoso, que bloqueia toda a sua capacidade de enxergar, e o faz abandonar o veículo. Dali a pouco, vários outros habitantes da grande metrópole estarão contaminados pelo mesmo mal, sem que se saiba ao certo a razão daquilo. A sensação que se instaura sobre a população é de pânico total, por não saberem como lidar com um problema que não sabem de onde vem e nem como podem solucionar. Aos poucos, os protagonistas, termo um tanto impróprio para designar os papeis defendidos por Mark Ruffalo e Julianne Moore, vão começando suas buscas para entender o que realmente está acontecendo. Assim como a cidade onde se dá a tragédia, os personagens dessa espécie de conto moral não recebem nome. Ruffalo dá vida ao Médico, ao passo que Moore personifica a Mulher do Médico.

Essa ausência de identidade presente tanto no cenário onde se passa a história quanto em seus personagens contribuem para que a realidade apresentada na tela seja interpretada como universal. Qualquer grande cidade e quaisquer pessoas poderiam estar naquela situação escabrosa que surge sem aviso prévio. Um aspecto interessante do filme é que há várias perspectivas mostradas em sua duração. O olhar que nos guia pode ser o de um cego, ou pode ser a visão da única mulher ainda capaz de enxergar. Somente a Mulher do Médico permanece vendo todo o caos que se faz ao seu redor, e sua condição de única que enxerga acaba sendo para ela um grande fardo. Resta a ela acompanhar e ajudar o marido, que tenta encontras a resposta para o mistério que tomou conta não só da cidade onde se passa o filme, mas também do mundo inteiro. O espectador passa a compartilhar da agonia dessa mulher em ver as pessoas dando vazão ao seu instintos mais primitivos, comportando-se como animais em busca de abrigo e comida. O pior do ser humano se aflora, de maneira a nos confrontar com nossa realidade perversa, sempre mascarada por convenções sociais coecirtivas, que garantem o bom funcionamento da vida em estado gregário.
Outros personagens vão sendo apresentados, como uma bela jovem que tenta encontrar um caminho para sua sobrevivência, vivida por um correta Alice Braga. A atriz vem consolidando sua carreira com bastante talento, aparecendo ao lado de outros ótimos atores, e mesmo com sua participação pequena, demonstra segurança e domínio de seu papel. Outro que também acerta em sua composição é Danny Glover. O veterano ator vive o Velho com Venda nos Olhos, e transmite o desalento com o mergulho no abismo da falta de visão. Sua presença no elenco enobrece ainda mais a produção de Fernando Meirelles. Até mesmo Mark Ruffalo, habitué de filmes bobos como "Voando alto" e "De repente 30", transparece maturidade na pele do Médico, servindo de comprovação para a excelente direção de atores de Meirelles. Em sua incapacidade de ver, ele mostra desespero e despreparo para lidar com uma condição que pode ser irreversível. Seu tlento artístico já havia aparecido em outras obras, como é o caso do delicado "Minha vida sem mim", mas parece que somente com "Ensaio sobre a cegueira" ele ganhou mais que notoriedade. Tornou-se um ator mais digno de crédito.

Quando foi exibido em Cannes, o longa causou uma reação um tanto fria na imprensa e nos demais presentes em sua sessão. Esse foi o filme eleito para abrir a 61ª edição do festival, e apesar de certa frieza da parte da alguns, em outros o filme despertou a certeza de que aquela era uma das melhores obras que dava início aos trabalhos na Croisette em muitos anos. O fato é que trata-se de uma obra ante a qual é difícil ficar impassível, tamanha a contundência com a qual os acontecimentos são retratados na tela. Algumas sequências são bastante incômodas, como o momento em que várias pessoas, incluindo a Mulher do Médico, que se finge de cega, estão confinadas em um hospital já sem qualquer condição de higiene, disputando alimento como cães famintos que sequer sabem o que estão comendo. É desolador ver a progressiva transformação de pessoas antes civilizadas(?) em seres sem qualquer senso de humanidade. Eles estão ali abandonados à própria sorte pelo governo, que já não sabe mais o que fazer para conter a epidemia. O personagem de Gael García Bernal reforça esse aspecto doentio do homem, na pele de alguém que não se importa em praticar todo tipo de violência para defender sua porção. Quando exige que as mulheres que estão do outro lado do local de confinamento sejam levadas até ele e aos outros homens dali para que sejam estupradas em troca de comida, o asco é inevitável.
A fotografia em tons esbranquiçados é outro elemento que configura uma importante ferramenta para a potência narrativa do filme de Meirelles. Ela auxilia a enxergar a situação tão difícil que se alastra por toda a população, dando uma sensação forte de não poder fazer absolutamente nada. "Ensaio sobre a cegueira" funciona brilhantemente como um painel da crueldade humana em meio aos tempos hodiernos, em que a compaixão e a generosidade estão diminuindo cada vez mais, sem que muitos se deem conta. A perda da capacidade de enxergar pode refletir isso, tanto física quanto psicologicamente. É uma perda de crédito no homem e em sua sensibilidade. Ao chegar ao seu final, o filme ainda traz uma mensagem de esperança, mas deixa a pergunta no ar: nossa caminhada rumo à própria destruição ainda tem volta?

15 de mar. de 2010

A desconstrução do amor em "(500) dias com ela"

Ano após ano, o amor é objeto central de inúmeros filmes, de nacionalidades diversas. A cada nova aparição, assume um nova (ou renovada) faceta, mas nem sempre dissecada com a devida habilidade. No filme de Marc Webb, contudo, o resultado é bastante acima do satisfatório. Trata-se de uma comédia de tintas dramáticas - ou seria ou drama de tintas cômicas? - sobre as infinitas possibilidades de se viver um amor. Sentimento que muitos hoje condenam a evanescência, é ele que move o cotidiano de Tom (Joseph Gordon-Levitt) a partir do dia em que conhece Summer (Zooey Deschanel), uma garota que vira sua cabeça rapidamente. O nome da jovem é um trocadilho perfeito com a estação mais solar do ano, que simboliza a chegada da luz e da cor para todos. Mas não é bem assim que acontece para Tom.

Em pouco tempo, o rapaz se vê perdidamente apaixonado pela garota, enquanto ela nem pensa em assumir compromisso sério com ninguém nessa vida. Tom acha que essa concepção de Summer sobre relacionamentos pode mudar a qualquer momento, mas não tem coragem de assumir logo a paixão que sente. O filme conta toda a história de amor (?) entre os dois de maneira retroativa, mostrando ao espectador que todo o imbróglio vivido pelo protagonista se arrastou por quinhentos dias, como também informa o título. Mas nada é mostrado dentro a ordem cronológica, o que acaba se tornando um doas grandes achados da trama, que acompanha todas as alterções sofridas por Tom desde o dia em que conhece Summer. Em uma cena, pode-se estar vendo o 287º dia do relacionamento deles, e na sequência seguinte surge o 63º dia, no qual eles ainda não são mais do que bons amigos. É um recurso que injeta dinamismo na história e dá várias rasteiras na obviedade, já que nunca se sabe de qual momento da vida em comum que eles passam a ter Tom se lembrará. Aliás, tudo o que se vê na tela são as lembranças do rapaz a respeito dela, sendo vistas sob a sua perspectiva. Não por acaso, o espectador acaba logo se tornando cúmplice do portagonista, e enxergando as situações apresentadas como ele.

"(500) dias com ela" ainda tem outros diferenciais em relação à maioria das comédias românticas que aportam nos cinemas ano a ano. O próprio rótulo de comédia romântica é limitador, pois Webb vai muito além de qualquer fórmula, apresentando uma história completamente verossímel e a milhas de distância de qualquer chavão presente em outros exemplares do gênero. A escalação de Joseph Gordon-Levitt é um exemplo. O ator não é um modelo de beleza do qual se alimentam as comédias, o que o faz de seu T
om um garoto que pode ser qualquer um de nós. E Summer, apesar de linda, parece-se com qualquer garota de coração gélido que nos despedaça por sua inatingibilidade quando ainda somos meninos sonhadores. Sua convicção prática sobre as relações amorosas são baldes de água fria que ela joga o tempo todo no pobre Tom. Mas, antes que se pense que Webb se utiliza de misoginia, o retrato de Summer é bastante gracioso. Cruéis são suas atitudes.

Outro detalhe curioso o longa é a sequência em que Tom vai a uma festa para a qual Summer o convidou. Na hora em que ele chega ao apartamento dela, a tela é dividida em dois. De um lado, estão as expectativas dele em relação a um encontro tão importante. Do outro, a dura realidade que se lhe apresenta na ocasião. Os acontecimentos de sua expectativa são muito mais interessantes que aqueles que a realidade lhe oferece, e a noite termina da pior maneira possível. Esse truque de justapor dois ângulos opostos de uma mesma situação é verdadeiramente mais uma bela sacada dos roteiristas. A visão de Tom muda também de um dia para o outro. Se primeiro ele enxerga Summer como uma mulher perfeita e ideal, tempos depois ele se irrita com tudo que antes admirava nela. Bastante parecido com a fúria que toma conta de alguns ex-amantes. Até mesmo uma pinta, que ele primeiro vê como um sinal charmoso na garota, depois passa a ser como un incômodo carrapato, tamanho seu despeito por não tê-la. Ou seria uma certa raiva de si mesmo por não conseguir deixar de amá-la? O juízo fica a cargo do público.
A trilha sonora encantadora é outra ótima razão para se assistir a "(500) dias com ela". Repleta de canções que versam sobre o amor, cada uma à sua maneira, elas são o arremate perfeito para uma trama muito bem construída, com suas idas e vindas, fruto de uma narrativa que acompanha a mente, nem sempre tão ordenada em suas lembranças. Esse filme vem se somar a outras excelentes produções contemporâneas que retratam o amor para além de maniqueísmos, como é o caso de "Amor em cinco tempos", "Brilho eterno de uma mente sem lembranças" e "Canções de amor". Todos eles, e mais alguns outros, trouxeram belas contribuições para que se descubram novos olhares sobre esse tema tão pertinente que é o amor. Os diretores desses longas apresentam um amor que se vive no dia a dia, longe das idealizações e dos previsíveis finais felizes que pertencem a uma realidade paralela, só encontrada nas telas do cinema. Marc Webb vem se juntar a essa estirpe de realizadores com muito mais a dizer, calcados num conteúdo trabalhado com maior elaboração. Essa elaboração vem do acerto no ritmo, nas atuações, nos diálogos e em tantos outros fatores que fazem de "(500) dias com ela" uma pequena obra-prima.

12 de mar. de 2010

"Manhattan" ou a celebração do cotidiano

A simplicidade com que Woody Allen conduz "Manhattan" é um dos grandes atrativos do filme, mas não o único. Aqui, leveza e fluidez se conjugam numa história que atravessa o dia-a-dia de um homem comum, que enxerga a vida de uma forma um tanto pitoresca. Elementos quase sintomáticos de sua filmografia, que, a cada novo item, torna-se mais preciosa. O longa veio apenas dois anos depois do primeiro grande êxito do diretor com o público e a crítica, "Noivo neurótico, noiva nervosa", que levou várias indicações ao Oscar. Entre esse último e "Manhattan", Allen ainda rodou "Interiores", onde buscou lançar mão de sua paixão por Bergman, numa trama soturna.

Para rodar "Manhattan", o cineasta recrutou novamente Diane Keaton, parceira dos dois filmes anteriores, com quem ele foi casado na vida real. É ela quem dá vida a mulher que perturba o sossego de Isaac Davis, vivido pelo próprio Allen. Acostumado a levar uma vida um tanto banal, ele é sacudido pela presença luminosa de Mary Wilkie (Keaton), que vem a ser a namorada de seu grande amigo. A saia justa está formada, mas ela não é a única questão importante a ser retratada no filme. Isaac tem vários outros focos na vida, alguns bem mais preocupantes. O maior dele talvez seja saber que a ex-mulher se revelou lésbica, e pretende, através de um livro biográfico, expor a intimidade dos dois para quem quiser ler. A ex é interpretada com propriedade por Meryl Streep, que nunca faz um trabalho menos do que ótimo. Isaac também detesta a namorada que tem, de apenas 17 anos, e não sabe como terminar o relacionameto com a garota. Seu emprego também não é dos melhores, o que o leva a encarar a vida com certa amargura.

"Manhattan" aperfeiçoa o que Allen já vinha procurando fazer desde seus primeiros filmes: entender o que estamos fazendo aqui e questionar a humanidade de diversas maneiras. O ano ainda era 1979, mas até hoje ele segue, de certa forma, batendo nas mesmas teclas, ainda que busque diferentes mecanismos para levantar essas questões recorrentes. Sua principal alternância é entre o drama e a comédia. O caso de "Manhattan" é o segundo. Ele também aproveita para fazer mais uma vez uma homenagem à cidade que tanto ama, a bela Nova York, colocando-a como muito mais do que um pano de fundo. A cidade é também uma personagem do filme, uma espécie de coadjuvante de luxo para uma trama que arranca risadas graças à habilidade de Allen como contador de histórias. Mesmo em meio a situações que poderiam soar como dramáticas no longa, ele dá um jeito de lê-las sob o prisma do cômico.

Um punhado de referências eruditas aparecem ao longo do enredo, e o espectador não precisa se sentir na obrigação de entender e acompanhar todas elas. O jazz, estilo musical do qual o diretor é amante, está ali também, permeando cada passo dado por seu Isaac, mesmo aqueles em falso. O personagem já não é mais um garoto, passou por fases de muitas dúvidas, mas ainda tem grandes incertezas sobre bastante coisa na vida. É inevitável perceber que, como outras obras allenianas, essa tem um quê autobiográfico. Recentemente, em uma entrevista, o diretor disse que, agora que está mais velho, notou que acumulou muitas vivências e experiências, mas pouca sabedoria. É uma questão com a qual Issac se vê confrontado em "Manhattan", já há três décadas.
Aqui o cineasta também abre mão das cores, como voltaria a fazer em "Memórias", "Zelig", "Celebridades" e outros. A ausência de uma paleta colorida indica um exercício de estilo nos dias de hoje, mas parece que já era o que diretor se propunha a fazer desde então. Para olhares pouco habituados, pode ser incômodo, ainda mais em dias tão tecnológicos, em que filmes como "Avatar" explodem um diversas tonalidades. Mas, com o passar de alguns minutos, essa característica passa a ser mero detalhe, e a concentração fica toda na história. O roteiro do filme, aliás, é perfeitamente elaborado, com vários momentos cruciais em que pequenas fatias de humor corrosivo são colocadas com perícia. Afinal, trata-se de um mestre do humor, arma que serve para desarmar com elegância, se bem utilizada, pode funcionar muito melhor que o drama, assim como ocorre em "Manhattan". Trata-se de um filme que exalta as pequenas coisas, que eleva a instâncias superiores, como o simples ato de conversar em uma mesa de bar. Ali, qualquer assunto pode ganhar uma dimensão enorme, e ser a questão de vida ou morte dos interlocutores. Bebericar qualquer coisa, elogiar a beleza da mulher que passa pela outra calçada, reclamar do governo, gabar-se por uma nova conquista, amorosa ou não... enfim, amenidades que não fazem mal a ninguém.
O discurso de Allen abarca uma série de tópicos, e assistir a eles em forma de filme é saborear um delicioso prato preferido, feito pelas mãos mais hábeis que há. "Manhattan" prova que viver é passar por um dia de cada vez, com a consciência de que nenhum é igual a outro, porque nós mesmos mudamos dia após dia, sem nem mesmo notarmos. E a velha tese de que o extraordinário é o fato de estar vivo ganha reforço, já que nem só de grandes acontecimentos é feita a vida. Uma certa dosagem de acaso, misturada a uma pitada de obstinação, também podem contribuir significamente para dar novos rumos ao curso do rio que é a vida.

10 de mar. de 2010

"Tudo sobre minha mãe", uma declaração de amor à mulher

Nos filmes de Pedro Almodóvar, o sexo feminino tem sempre um lugar cativo, muito mais privilegiado que o masculino. Os homens almodovarianos quase sempre são apagados ou vítimas da força descomunal vinda delas. A exceção até agora tem sido "Má educação", em que ele dá voz a eles. Mas o foco dessa resenha é "Tudo sobre minha mãe", pérola rodada pelo diretor no já distante ano de 1999. Com seu talento inigualável para contar boas histórias, o diretor leva o público a mergulhar numa jornada difícil e densa, guiada pela força de uma protagonista firme e decidida, e por caodjuvantes igualmente destemidas.

Trata-se da vida de Manuela (Cecilia Roth, magnífica), uma mulher madura e atraente que tem um filho de 17 anos, o jovem escritor Esteban (Eloy Azorín), que nunca conheceu o pai. No dia de seu aniversário, seu maior desejo é assistir à apresentação da montagem espanhola de "Um bonde chamado desejo", famosa peça de Tennessee Williams. A protagonista é a renomada atriz Huma Rojo (Marisa Paredes), de quem Esteban sempre ouve maravilhas. Manuela decide atender o pedido do filho, mas aquela noite mudará definitivamente o rumo da sua vida. Tudo devido a um acontecimento tão trágico quanto inesperado. Quando tenta conseguir um autógrafo de Huma, após o espetáculo, Esteban acaba sendo atropelado, e a atriz sequer o vê, partindo velozmente.
Diante do fato, a decisão tomada por Manuela é retomar suas raízes, e tornar a Barcelona, de onde saíra tempos atrás desejosa de jamais voltar. Sua intenção é dar a notícia do falecimento de Esteban para o pai do menino, que se tornou travesti. É uma situação dificultosa, mas que ela decide encarar. A chegada de Manuela à cidade acaba por desencadear uma série de novos conflitos, já que ela reencontra váriso personagens de sua trajetória com os quais não tinha mais contato há muito, e alguns outros que ela vê pela primeira vez. A galeria de tipos de Almodóvar se mostra claramente a partir daí, com seres icônicos e surpreendentes em sua simplicidade e ousadia. O espaço para a polêmica também é aberto, caracaterística que permeia os longas do diretor. Através da jornada de Manuela, o espectador embarca em uma viagem na qual há muito o que se ver e aprender.
Manuela conhece Rosa, uma freira que se descobriu portadora do vírus da AIDS. O papel da jovem é defendido com garra por uma Penélope Cruz ainda anterior ao estrelato e à consagração de hoje, mas já em sua segunda parceria com Almodóvar. Sua freira é uma grande provocação à Igreja Católica, instituição criticada pelo diretor nesse filme e ainda mais ferozmente em "Má educação". Como é possível uma relgiosa como ela estar infectada com o vírus? A indagação surge como um grito de surpresa.
No caminho de Manuela também surge Agrado (Javier Cámara), um transexual que passou a usar seu nome porque sempre tentou agradar a todos que passam pela sua vida, assim como começa a fazer com Manuela, tornando-se um dos seus grandes parceiros. A cena em que ele tenta animar uma plateia depois que Huma não pode apresentar sua peça é uma das mais inesquecíveis de todo o filme, corrosivamente irônica. Como se vê, a presença masculina é praticamente nula. Os poucos homens que existem na trama não assumem sua verdadeira condição, preferindo igualar-se às mulheres. É uma forma de admiração tão grande por um ser, que a ideia é se transformar naquele ser, como fazem esses personagens. Mais uma vez, Almodóvar homenageia o sexo feminino, declarando seu amor a todas elas, de inúmeras formas, inclusive por meio da metalinguagem. Na pele de Huma Rojo, por exemplo, Marisa Paredes é a representação da mulher de talento, que galgou degraus e chegou ao reconhecimento máximo. A homenagem também parte dessa personagem, que dá vida a uma outra personagem, num mecanismo de representação da representação, uma ode às grandes mulheres retratadas pelo cinema e pelo teatro. Logo no início do filme, Esteban e Manuela assistem na televisão ao filme "A malvada", clássico com Bette Davis, cuja tradução do título original é "Tudo sobre Eve". Com a exibição dos créditos iniciais do filme de Almodóvar nesse momento, fica a ideia de que o título do filme foi decalcado dessa obra, o que constitui mais uma homenagem muito bem costurada pelo diretor.
É com essa eficiência que o filme flui, apoiado num roteiro perfeitamente escrito, a cargo do próprio diretor. Ele levou, inclusive, o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2000, coroando a realização de um profissional que sabe como poucos contar uma história forte e comovente. As obsessões de Almodóvar, como o apreço enorme pelas mulheres, e sua paixão incurável pelo cinema, reverberam a cada minuto de projeção, dando à plateia a chance de ser arrebatada por belos entrechos e por uma narrativa exemplar, que envolve e fica por muito tempo na memória.

8 de mar. de 2010

"Chega de saudade", uma obra com ternura e delicadeza

Dona de uma curta carreira, Laís Bodansky já vem mostrando que é uma diretora de muita competência. Sua obra é formada por apenas dois filmes: o contundente "Bicho de sete cabeças" e o doce "Chega de saudade", sendo que, entre o primeiro e o segundo passaram-se sete anos. Mas a espera durante tamanho hiato foi recompensada.
A diretora entrega ao público uma história maravilhosa, com personagens extremamente carismáticos, e transmite sua mensagem com muita delicadeza. No centro dos acontecimentos, está um simpático salão de baile da terceira idade, onde se passam traições, desencontros, descobertas, memórias, tristezas e alegrias, todas musicadas com lindas canções que caem perfeitamente ao desenrolar das ações.
Toda a trama do filme se passa em um único dia, estratégia narrativa que permite à cineasta condensar uma série de momentos em um só, resultando numa obra concisa, mas mesmo assim com muito a dizer. Tudo começa à luz do dia, com os preparativos para mais um dia de muita música e dança no baile. Chegam ao local dois jovens namorados, que estão ali para animar a noite. Ela não gosta muito daquele ambiente, e ele está ali muito mais pelo pagamento que receberá. Aquele é um mundo que não lhes pertence, mas, de alguma forma, eles serão inseridos naquela atmosfera de nostalgia e certo desalento. A princípio relutante, Bel, como se chama a jovem interpretada com graça por Maria Flor, vai se deixando levar pelo que vê e ouve naquela espécie de microcosmos dos desejos universais, de todo ser humano. Como seu namorado, são deslocados num ambiente dominado pelos mais velhos, mas com muito a aprender com eles. Sem nenhum didatismo, Laís conta com um elenco de veteranos, conhecidos das telenovelas, o que não é motivo para tornar seu filme depreciável. Todos estão igualmente impecáveis, dando a sua contribuição para um filme que se revela um painel da eterna busca do homem pela sua felicidade e pelo ideal de completude, tão soterrado em meio à vida fragmentária da contemporaneidade, mas ainda desejável.
Ali se encontram uma mulher que se lamenta a noite inteira por não ser tirada para dançar, e que se sente preterida por isso, uma dama de meia-idade que sofre por
sentir que o homem que ama é atraído pelo frescor jovem de Bel, uma outra mulher que ainda mantém sua libido, mesmo já tendo passado dos 40, e um casal que está junto a vida inteira, e mergulha nas recordações do tempo em que reinavam absolutos na pista de dança do lugar. Hoje, a saúde dos dois já não é mais a mesma, e eles precisam se contentar em assistir ao desempenho de outros dançarinos bem diante de seus olhos. Seus intérpretes, Tonia Carrero e Leonardo Vilar, são a cereja do bolo delicioso que é "Chega de saudade", cujo título é claramente um empréstimo da bela canção da bossa nova. Alice, personagem da grande atriz, vem sendo acometida de falta de memória, o que a torna um tanto tristonha. O marido, por sua vez, está amargo como nunca, sofrendo por não ser mais o pé-de-valsa de antes. A velhice é seu grande fardo, com o qual ele parece não saber lidar bem. O mesmo não se pode dizer de Leonardo Vilar, que defende seu papel com enorme vitalidade. É um prazer inenarrável ver tanta gente boa em cena, formando uma ciranda de pares que gravita lado a lado para formar um belo mosaico dos corações enamorados. A metáfora da dança cabe perfeitamente aqui, já que a diretora conduz seu elenco num ritmo harmonioso, dando espaço para que todos os integrantes do corpo de baile brilhem, cada qual a seu tempo e a seu modo. O resultado final não poderia ser mais inspirador e agradável que esse. "Chega de saudade pode ser visto como um convite a viver plenamente a vida. Mesmo que seja errando, o importante é ter a consciência de buscar acertar sempre, e estar sempre recomeçando.
O lirismo e o carinho com que trata de seu enredo também são acertos de Laís, que sabe dosar corretamente o sentimental, de forma a não torná-lo piegas, uma fronteira muito fácil de ser cruzada. Os personagens reagem aos acontecimentos com muita dignidade, procurando o melhor da vida sempre. A presença de Elza Soares como uma crooner também dá charme ao filme, já que as músicas cantadas pela sua personagem vão pontuando a trajetória de cada um naquela noite. O espectador acaba na posição de observador das ações. Nada muito súbito, não tão contido, mas tudo numa velocidade compatível com a do cotidiano. Com esses ingredientes, fica irresistível de acompanhar os passos dados pelos homens e mulheres que desfilam na tela com sua leveza e suadvidade, perfeitamente sincronizados e filmados por uma câmera paciente. Em tempos de produções cada vez mais focadas em tiros, explosões e voos pelos ares, um filme que fala baixinho ao coração é um regaço para espectadores sedentos de uma história bem contada.

5 de mar. de 2010

Uma possibilidade de futuro em "Código 46"

Considerado por muitos como um cineasta experimentalista, Michael Winterbottom é dono de uma filmografia marcadamente heterogênea. Não faz filmes para grandes públicos, o que pode explicar um certo desconhecimento à simples citação de títulos como "Desejo você", "Neste mundo" e "A festa nunca termina". Há, só nesses três filmes, um exemplar de romance, um de drama e um quase musical. O desconhecimento também é o caso de "Código 46", uma fábula intimista sobre um futuro próximo e suas características. É a incursão do diretor no terreno da ficção científica. E ele se sai muito bem na empreitada.

O filme narra a história de William (Tim Robbins), um funcionário do governo que leva uma vida comum para o seu tempo, como a de milhares de outros homens. Mas, para entender seus dilemas e sua mente, é preciso entender o ambiente que o cerca. Daqui a alguns anos, numa data não determinada, é impossível o deslocamento de uma cidade ou de de um país para o outro sem a apresentação do papelle. Trata-se de uma espécie de salvo-conduto que a assegura o direito de qualquer cidadão se locomover para um destino específico. Quando ocorre um caso de falsificação na emissão dos papelles, logo William é recrutado para solucionar o crime, tarefa na qual ele não encontra muitas dificuldades, já que logo desvenda a culpada. Ela é Maria, uma mulher que desperta nele um fascínio que evolui para uma paixão, e acarreta a vontade de William de protegê-la. Está aí o dilema do protagonista, a ser superado.
A trama de "Código 46" não é muito inovadora e, por si só, não motiva a se assistir ao filme. Mas Winterbottom tem mais a oferecer ao seu espectador. Mesmo transitando pela ficção científica, o diretor não se vale de efeitos visuais para contar sua história. Ele investe no drama interior de seus protagonistas, e apresenta um olhar algo pessimista sobre o futuro. Em seu diagnóstico, prevê níveis elevadíssimos de globalização, que irão resultar numa língua híbrida de inglês, português e espanhol, mas quase ininteligível para os seres humanos de hoje. A paisagem fora dos grandes centros urbanos é desértica, bastante desalentadora. Como Alfonso Cuarón em "Filhos da esperança", Winterbottom parece acreditar que dias piores virão. Nada de carros voadores ou outras altas tecnologias para turvar a visão dos personagens centrais.
Interessa enxergar o lado humano de William e Maria, que se mostram como camaleões adaptados as circunstâncias que a vida lhes impôs.
O título é uma menção ao código que os personagens violam, tanto Maria, que comete a fraude, quanto William, que decide acobertá-la. Uma lei inventada no roteiro do filme, que expressa parte de sua dose de criatividade. O destaque do longa é Samantha Morton, uma atriz ainda a ser descoberta pela maior parte da crítica e das plateias. Ela já apareceu em pequenos papéis, em filmes como "Minority report - A nova lei" (curiosamente, também uma ficção científica), além de já ter sido dirigida pela lenda Woody Allen em "Poucas e boas". Seu trabalho de composição é notável, e ela passa a dimensão exata dos conflitos vividos por sua Maria ao longo da projeção. A aparência andrógina da personagem a torna enigmática e instigante, não apenas para William. Vale lembrar que o enredo de "Código 46" se desenvolve em enxutos 92 minutos, demonstrando a economia narrativa de Winterbottom.
O mérito do diretor é apresentar um olhar diferente e dolorido sobre um tema já tão batido, e que assumiu há tempos feições descaradamente comerciais, impulsionadas por Spielbergs, Schummachers e afins. O resultado final está mais para o Godard de "Alphaville" que para diretores menos experimentais do grande circuito. Pode não ser uma grande obra-prima, mas tem qualidades para ser não ser mais apenas mais um filme sobre o futuro.

"Foi apenas um sonho": incongruências no viver lado a lado

Com um curta carreira no cinema, Sam Mendes mostrou logo a que veio. Sua estreia, com "Beleza americana", arremessou-o ao Oscar em pouco tempo, tornando-o um dos nomes mais promissores do cinema do final do século XX. A filmografia do diretor prosseguiu com "Estrada para a perdição", em que sua câmera focou os dilemas de um homem de vida dupla diante do filho pequeno. Em seguida, lanço se olhar sobre a segunda Guerra do Golfo no mediano "Soldado anônimo".

Um de seus filmes mais recentes, "Foi apenas um sonho", parece marcar um retorno de Mendes às origens. Como na primeira obra, seu olhar se volta para o cotidiano de um casal comum, e enxerga além do óbvio a partir de uma dissecação dos conflitos que se superpõem em sua vida, a cada novo passo que tentam dar. A trama é baseada no romance de Richard Yates (Revolutionary road, mesmo título original do filme), e é um tratado profundo sobre as progressivas desconexões que vão minando um casamento, mas que pode ser estendido para outras relações amorosas.
Passada nos glamourosos anos 50, já espiados por nomes como Todd Haynes (no recente "Longe do paraíso"), a história do casal que tenta levar uma vida digna, apesar dos intemperismos de ordens diversas que se abatem sobre seu relacionamento é tocante em mais de uma instância. Nos papéis centrais, Kate Winslet e Leonardo DiCaprio, parceiros de cena onze anos antes no já legendário "Titanic". Se no filme de James Cameron eles eram o arquétipo do par romântico que se interrompe por uma tragédia da natureza, aqui eles reeditam a praceria para falar de uma outra tragédia, dessa vez particular e quase silenciosa e igualmente letal, que vai se desenhando a pequenos passos no cotidiano a dois.
Os atores dão vida a Frank e April Wheeler, dois apaixonados com ambições que têm plena certeza de que serão alcançadas em pouco tempo. Eles não encontram a completude naquilo que fazem, e na maneira como o fazem. Enquanto ela deseja se tornar uma atriz de renome, ele odeia ferozmente o emprego burocrático no qual trabalha e do qual depende para viver. Empenham-se para sair da mesmice, e de comodismo não podem ser acusados. Mas a rotina, por si só, já é uma espécie de catalisadora de suas discódias. Ela surge como uma entidade implacável, que cobra um alto preço para ser suplantada. E na expressão facial de Winslet e DiCaprio fica transparente o descontentamento com o que ambos se tornaram com o decorrer do tempo.

Nesse âmbito, Sam Mendes acerta em cheio, dirigindo a esposa e DiCaprio com maestria, arrancando interpretações memoráveis da dupla de atores. "Foi apenas um sonho" é um filme difícil, que escava as emoções mais contidas de um ser humano, camufladas pela coerção de toda a sorte de convencionalismo. Mas os intérpretes demonstram pleno domínio da dosagem certa de emoção e conflito que perpassa seus personagens. Tanto ele quanto ela estão no auge de sua maturidade profissional. DiCaprio vem colecionando papéis ótimos em filmes igualmente bons, principalmente os realizados sob a direção de Martin Scorsese, com quem já rodou quatro produções até agora. Winslet, por sua vez, já provou que é uma atriz completa, algo que o Oscar ignorava até 2009, quando lhe concedeu a estatueta de melhor atriz por seu desempenho em "O leitor", filme igualmente maravilhoso no qual ela se despe de grande parte de sua vaidade, atitude que é sempre louvada pela Academia (vide Charlize Theron e sua vitória por "Monster - Desejo assassino", em que estava inegavelmente horrenda). Mas sua performance como April merecia ser igualmente laureada, o que não aconteceu. O filme como um todo, aliás, foi posto de lado pelo Oscar, recebendo apenas 3 indicações. Ao menos o Globo de Ouro foi endereçado à atriz, semanas antes, com justiça.
Correndo por fora, surge o papel defendido com talento por Michael Shannon, ator desconhecido do grande público, que faz uma pequena e decisiva participação no longa como um jovem emocionalmente instável, que lança verdades na cara de Frank e April sem a menor cerimômia. É uma única sequência, mas com diálogos fortes o bastante para se tornar antológica.
Em resumo, Sam Mendes revela mais uma vez seu olhar aguçado para as mazelas humanas interiores, na figura do casal de protagonistas. Em sua necessidade de avanço, eles sentem que o mundo tem muito mais a oferecer, e essa disparidade se refleta num afastamento cada vez maior entre o casal. É impressionante observar como dois amantes que parecem almas gêmeas tornam-se, com o passar do tempo, inimigos íntimos. Nuances que são captadas com argúcia pela visão certeira do diretor.

4 de mar. de 2010

Alegrias e dissabores em "Canções de amor"

O tema amor é novamente revisitado no recente "Canções de amor", filme dirigido por Christophe Honoré, considerado como um dos mais importantes do cinema francês atual. De fato, seus longas têm um grau considerável de relevância, dada a forma como buscam apresentar as tramas, já que o conteúdo, em si, não é uma grande novidade.
Falar sobre o que muitos já se propuseram a discorrer é uma jogada um tanto arriscada, já que implica uma necessidade de inovação, mínima que seja. É preciso que se traga alguma novidade, alguma contribuição ao gênero. E a cada novo filme sobre o amor, essa responsabilidade aumenta. Ainda assim, Honoré parece não se intimidar, e lança seu olhar sobre o sentimento mais corriqueiro e passível de identificação imdediata entre homens e mulheres.

No caso de "Canções de amor", que é um drama musical sobre as venturas e desencatamentos proporcionados pelo amor, as canções surgiram antes do filme. Elas vieram de um material preexistente, sobre o qual o diretor escreveu o roteiro. O que se vê na tela, a partir dessas músicas, é uma filmagem poética sobre alguns encontros, dois desenlaces e um novo começo, temperados com rodelas de melodrama, e algumas pequenas doses de comédia. Talvez seja um prototípico caso de filme "ame-o ou deixe-o". Não é uma trama que agrade integralmente a todos. Mas unanimidades não podem ser parâmetro para medir a qualidade de um filme. Por isso, esse é digno de grande atenção.
Contar seu enredo também dá a falsa impressão de que é mais uma história dentre tantas outras. Na verdade, é isso mesmo. Mas é uma história muito bem contada, com personagens vividos com grande precisão por seus respectivos intérpretes. Estrelando o longa está Louis Garrel, um dos atores mais requisitados do cinema francês da atualidade. Na pele de Ismaël, ele é o centro de uma relação triádica levada a contento por todas as partes envolvidas. Sim, ele namora duas jovens ao mesmo tempo, essa situação é perfeitamente natural para os três. Aí já começa o discurso sobre a validade de outras formas de amar além das mais convencionais. Mas algo fará com que esse trio não vá à frente. Circunstâncias que escapam à sua vontade, e os arrastam para um fim inexorável.
Desde o começo, as canções que embalam esse delicioso filme se mostram exatamente encaixadas à narrativa, dando todo o sentido às ações dos personagens, embora elas não sejam lá muito coerentes. Mas quem se guia pela coerência diante do amor? Quando scometidos por esse sentimento, sabe-se bem, somos capazes de flertar com a mais completa ausência de lógica, movidos por um sentimento potencialmente bestificador. e
Nas tentativas mal-ajambradas do trio central de encontrar a felicidade plena por meio do amor, essa tese parece ser corroborada. Na primeira meia hora, o espectador já tem vontade de cantarolar as estrofes de "Des bonnes raisons pour te aimer", uma música sobre o comportamento evasivo dos amantes, e que se propõe a tratar, de maneira racional (será possível?) dos motivos que levam o amor por alguém a nascer em uma pessoa. É um assunto que se presta às mais variadas teorias, mesmo as que não vão chegar a lugar algum. Afinal, esse é um dos mistérios da vida. E, enquanto não se encontra a resposta definitiva para essa questão pertinente, parece bastante interessante ir buuscando por diversos meios, assim como Honoré faz. Sua pescrutação, no entanto, não é inteiramente nova. O cineasta trava um diálogo, ainda que involuntário, com o Shakespeare de "Sonho de uma noite de verão", que narra uma ciranda de encontros e desencontros amorosos para falar da instabilidade e da finitude do amor. A cada momento, o que se sente por alguém pode se transformar, e essa mutabilidade permanente é sempre fonte geradora de conflitos e dissabores.
À diferença de Shakespeare, porém, Honoré parece um pouco mais pessimista, quando, antes da metade do filme, mata um dos personagens, levando a um rearranjo na relação que Ismaël mantinha. "Canções de amor" passa a versar sobre os novos rumos tomados pelo protagonista em sua jornada à procura da pessoa amada. E, a partir do encontro que o personagem tem, a tese sobre a multiplicidade de facetas do amor se reforça. No fundo, o longa pode até ser definido como mais do mesmo. Não é uma tese totalmente refutável, mas também não constitui um demérito. Pode apenas ser um discurso com o qual se concorda ou ao qual se tem oposição. Subjetividades, como tudo o que se refere ao apreço e ao desdém no universo amplo da arte.

2 de mar. de 2010

As regras de Hollywood em "Dirigindo no escuro"

Os exercícios de metalinguagem propostos por Woody Allen são sempre, no mínimo, instigantes e dignos de alguma atenção. Com "Dirigindo no escuro" não é diferente. O diretor volta a falar do cinema dentro do cinema, como fizera brilhantemente na década de 80 em "A rosa púrpura do Cairo" nesse filme rodado em 2002, e lançado com atraso de um ano em terras brasileiras, como de hábito com as suas produções.

Se em "A rosa púrpura..." Allen tratava do fascínio que o cinema exerce na vida de uma pessoa comum com maestria indiscutível, em "Dirigindo no escuro" ele trata com cinismo das "regras" que fazem de Hollywood um terreno fértil para filmes que não primam tanto pela transmissão de um conteúdo, mas sim por ignorar a inteligência do espectador com tramas mirabolantes e imbecis. Seu discurso contra essa prática casa vez mais usual é calcado no humor, área que domina há tempos. Para fazer sua crítica com consistência, ele assume novamente o papel de protagonista, personificando Val Waxman, um diretor famoso que já produziu uma série de ótimos filmes, tendo sido muitas vezes aclamado pelo público e pelos especialistas. Mas já faz tempo desde que sua última obra foi lançada e, desde então, ele sente muitas dificuldades em conseguir um novo emprego.

A chance do retorno aparece na figura de sua ex-mulher Ellie (Téa Leoni, um tanto histriônica), que atualmente está casada com um poderoso dono de um estúdio cinematográfico, e lhe oferecer a oportunidade de dirigir um longa com o orçamento de 60 milhões de dólares. Parece ser a solução de seu problema de ego ferido e desejo de novo reconhecimento, e, de fato, o é. Mas ele logo trata de encontrar outro contratempo. Sua ansiedade de voltar a fazer o que ama o leva a adquirir cxegueira psicológica, exatamente às vésperas de recomeçar. Eis aí a grande sacada de Allen, que torna o filme ainda mais interessante. Não só o filme em si (Dirigindo no escuro), mas também o filme dentro do filme. Decidido a não deixar essa chance passar, Val esconde de todos sua cegueira, e se lança ao desafio de comandar os atores mesmo sem enxergar um palmo à frente de seu nariz. Asituação insólita, enquanto dura, rende as melhores cenas do filme, garantindo um equilíbrio perfeito no binômio diversão e reflexão.
Por meio dessa ideia simples, Woody Allen dá sua visão (sem trocadilhos) a respeito do que vem se transformando a indústria do cinema na atualidade. A cegueira do personagem pode ser lida tanto como literal quanto como metafórica, já que muitas produções lançadas recentemente, vindas diretamente da "fábrica de sonhos", parecem realizadas por comandantes destituídos da capacidade de enxergar o que é um bom filme. E em "Dirigindo no escuro" essa crítica é feita com muita argúcia e um roteiro muito bem escrito, com as pontas bem amarradinhas, e elementos que já são reconhecidos de longe na filmografia alleniana. A cidade de Nova York, que pode ser considerada uma personagem da história, aparece em graça e esplendor, em cenários belos e abertos, apesar de não exatamente inéditos. Mas nem so de ineditismos deve viver um bom filme, mas também de um talento notório para a condução do enredo que foi selecionado. Aqui, tudo é tratado com um misto de sofisticação e leveza, temperados pelo jazz, outra presença marcante e recorrente nas trilhas sonoras de seus filmes.

O longa de Allen também é uma bela homenagem a uma era de Hollywood que já não existe mais. O diretor evoca um tempo de astros que tinham muito mais que uma fina estampa, e exibindo dotes de ator que convenciam e encantavam, assim como muitas atrizes. Hoje, mistura-se a nomes competentes uma quantidade quase igual de supostos intérpretes, que se sustentam por exercer nas plateias um outro tipo de apelo, que não o de sede de arte genuína, conceito esse que também é passível de controvérsias, e que mereceria vários parágrafos e páginas. O fato é que "Dirigindo no escuro" levanta a questão da crise do cinema, que é diagnosticada de tempos em tempos por aí, como muita inteligência. Allen sabe muito bem do que está falando e, embora possa parecer, não está brincando em serviço. Sua arma é o riso, capaz de desarmar o alvo com muito mais eficácia que uma palavra ofensiva em sua aparência.
O diretor também aproveita para filosofar mais um pouco, como faz a cada filme. Entre os vácuos propositais na narrativa, ele discursa sobre o nada, sobre a frivolidade do cotidiano, as as agruras de envelhecer e outros assuntos que, de tão corriqueiros, acabam sendo bastante pertinentes. Principalmente porque são debatidos em diálogos hilários, sempre presentes nas comédias deliciosas desse veterano da sétima arte. Como se vê, é em um pouco menos de duas horas que o diretor se utiliza com propriedade de um veículo do qual entende muito, o que traduz um estilo enxuto em sua verborragia, por mais paradoxal que a afirmativa venha soar. É válida sua proposta, que deve ser estudada com acuidade.