29 de ago. de 2010

"Cinema, aspirinas e urubus": uma ode à simplicidade

Quem menospreza o cinema nacional corre o sério risco de perder um grande filme como "Cinema, aspirinas e urubus". Aliás, a ojeriza à cinematografia de qualquer nação é completamente infundada, pois em qualquer lugar do mundo existem bons e maus diretores, bons e maus filmes. Cabe a cada espectador vasculhar no amplo universo de produções aquelas que mais lhe aprazem. Sempre haverá algum filme que agrade a algum gosto pessoal. No caso de "Cinema, aspirinas e urubus", o título um tanto estranho encobre uma obra em que a sensibilidade reina absoluta, através de diálogos, cenas e caracterização de personagens.

Quando de seu lançamento, em 2005, o longa atraiu tanto o público quanto a crítica, que rapidamente comprou a história de Johann (Peter Ketnath) e Ranulpho (João Miguel), dois homens em estado bruto que têm suas trajetórias ordinárias confrontadas em pleno sertão brasileiro. Cada qual por seu motivo, eles se unem para percorrer lugares áridos, marcados pela desesperança de seus habitantes, que encontram nas sessões de cinema do remédio vendido por Johann um regaço para suas almas cansadas de sofrimento. Suas longas viagens incluem no roteiro visitas a comunidades de gente simples, para quem o alívio chega sob a forma de pequenos comprimidos, a aspirina do título.
A época em que vivem é o início do século XX, durante a Segunda Guerra Mundial, período nebuloso da história ocidental recente, que justifica a vinda de Johann para o Brasil. Afinal, ele é um alemão, que acaba radicado em nosso país, por uma questão de sobrevivência. Como Ranulpho, ele não tem raízes fincadas em lugar algum, e deseja apenas ter para si o pão diário, através do qual vai sobrevivendo. Ambos apresentam outros pontos de convergência, como a simplicidade com que enxergam a vida, que nem sempre é vista como uma dádiva, mas como um fardo pesado que se deve carregar diligentemente. Juntos, eles sofrem baques, vivenciam experiências inesquecíveis diante da miserabilidade dos indivíduos para quem oferecem o medicamento, e buscam se adequar ao que as circunstâncias lhes apresentam.

A grande eficência do filme está, entre outras coisas, na direção segura de Marcelo Gomes, que reforça o tempo todo uma estética da simplicidade com os diálogos econômicos dos personagens centrais do longa. Cada fotograma é marcado pelo lirismo em seu sentido adjetivo, no qual assume o significado de expositor das impressões pessoais de um eu. Longe de qualquer ambição de análise teórica de "Cinema, aspirinas e urubus", essas linhas funcionam muito mais como uma impressão afetiva sobre uma história que tem brilho próprio. Tanto Peter Ketnath quanto João Miguel foram escolhas bastante acertadas para dar vida a Johann e a Ranulpho. Ao observá-los na tela, tem-se a nítida ideia de que eles nasceram para os papeis, e fica até mesmo a dúvida se eles estão mesmo interpretando.
A câmera de Gomes também é uma parceira eficaz. Sua observação do desenrolar dos acontecimentós é discreta, como a de uma fiel testemunha que apenas espia ao redor, isenta de qualquer sentença contra ou a favor do objeto de observação. O cineasta despe seus personagens de qualquer maquiagem, e não faz deles meras vítimas da vida, rejeitando a hipótese, remota que seja, de lhes imprimir uma aura de desvalidos e pobres de espírito. Pelo contrário, eles crescem com a longa jornada em que se inscrevem, colhendo fatos e situações para os quais não veem solução, mas que lhes servem de fonte de encantamento ou indignação. Extraem daquilo que vivem lições preciosas, e buscam obter vitórias em meio à limitação. Sombras discretas de um otimismo pairam em seu caminho, demonstrando que eles se conformam apenas com centelhas de um porvir mais positivo que os dias hodiernos.
Com "Cinema, aspirinas e urubus", Marcelo Gomes prova que a cinematografia brasileira pode ser bastante fecunda, apresentando títulos que dialogam com uma macrorrealidade, para além das fronteiras do nosso país. Àqueles que insistem em encerrar a produção brasileira a uma masmorra obscura, dentro da qual cabe somente o retrato violento de favelas - o que nem é um demérito, por razões de ordens diversas - a lição de que um bom cinema também pode abdicar dessa premissa é urgente e necessária. Depois da assistir ao filme, certamente a sensação que ficará é a de estar diante de um talento indiscutível de alguém que consegue radiografar as mazelas de uam sociedade doente, cujos problemas apresentados há décadas ainda não encontraram uma solução eficiente.
E tudo isso assinalado por um ritmo, uma montagem e uma edição que deixam o melhor para o espectador, sem fazê-lo tropeçar em concessões óbvias. Gomes faz a opção por uma drama de contornos naturaliastas, apresentando a realidade da qual fez um recorte em tom quase documental, espargindo progressivamente a tênue fronteira entre real e fictício. Não por acaso, a empatia é gerada no espectador sem grandes esforços, pois aquilo que está diante de seus olhos é uma realidade patente, isenta de vernizes filosóficos. E a paisagem é revelada através de um meticuloso estudo de cores contrastantes, jamais edulcorados por qualquer fagulha de idealização. Por meio de uma fotografia excelente, que demarca a solidão daqueles indivíduos que são dois entre tantos outros por que passam dia após dia, o filme cumpre um papel de porta para a reflexão sobre o cotidiano de seres que defendem honestamente seus víveres. E, mais do que isso, o papel de plataforma para o pensamento crítico a respeito da condição humana.

19 de ago. de 2010

O absurdo do dia a dia narrado em "Ervas daninhas"

O veterano Alain Resnais tem lugar cativo no imaginário cinéfilo há muito tempo, desde que dirigiu os estimados Hiroshima, meu amor (1959) e, posteriormente, Ano passado em Marienbad (1961). Com essa obras icônicas, o realizador francês pavimentou sua carreira, sendo o único entre os que praticam o chamado "cinema de autor" a não escrever os seus próprios roteiros. Seus 55 anos de estrada constituem um mosaico amplo a respeito da fragilidade humana, somado à angústia pela passagem do tempo e ao baú de recordações de que é formada a memória. E essa espécie de perseguição ao tipos humanos em sua incursões pelas entrelinhas do próprio pensamento mais uma vez é a tônica de um trabalho seu. Especificamente "Ervas daninhas" (2008), exibido no Festival de Cannes de 2009.
Trata-se de mais uma formidável caminhada pelo terreno fértil da inquietude dos homens por conta daquilo que não são capazes de dominar: a reação do outro às suas palavras, o peso de suas escolhas frustradas, além da inserção do absurdo no cotidiano. Tudo isso auxiliado por uma fotografia primorosa, marcada pelas tonalidades berrantes que, em primeira instância, denunciam a artificialidade das relações humanas na contemporaneidade. Em tempos de politicamente correto, Resnais se atreve a questionar os protocolos estabelecidos entre os indivíduos, quando precisam entrar em contato uns com os outros.
O estopim para essa discussão é o desaparecimento da bolsa de uma dentista, Marguerite (Sabine Azéma), que continha todo os seus documentos, fruto de um roubo quando ela está saindo de uma loja. Logo na abertura do filme, durante a exibição dos créditos iniciais - é sempre bom quando o filme apresenta créditos iniciais -, o espectador percebe que Marguerite é uma personagem algo inusitada. Com a ajuda de um narrador onisciente, vai-se descobrindo um pouco de sua personalidade anticonvencional, que se traduz, entre outras coisas, em uma certa compulsão pela compra de sapatos. Seus visual também traz elementos interessantes, do ponto de vista do fora do comum, já que ela adota cabelos ondulados, ruivos e desgrenhados.

Sua trajetória se cruza com a de um homem e sua vida absolutamente banal: Georges (André Dussolier), casado e pai de dois filhos já adultos, que desenvolve uma estranha obsessão por Marguerite. Aos poucos, Resnais vai alinhavando a estrutura de seu filme para conjugar o bom roteiro de Alex Reval e Laurent Herbiet, uma adaptação do romance de Christian Gailly, à atuação precisa e sem retoques de Azéma e Dussolier. Aliás, Azéma é uma habitual colaboradora do cineasta, tendo estado presente em filmes como "Amores parisienses" (1997), "Beijo na boca, não! (2003) e "Medos privados em lugares públicos" (2006). Nesse último, o realizador já dava indícios de que pretendia trabalhar a questão da dificuldade de relacionamento entre as pessoas, também se utilizando das cores estouradas.
Portanto, em "Ervas daninhas" essa preocupação, por assim dizer, ganha terreno mais uma vez, sendo o humor negro um grande aliado dos personagens. De uma maneira ou de outra, todos parecem estar perdidos nas escolhas que fazem, sem ter muita certeza daquilo que estão fazendo. Em meio a esse cenário de inusitado, surge um personagem enigmático como o de Mathieu Amalric, um dos atores mais assíduos do cinema francês contemporâneo, ao lado de Daniel Auteuil. É com ele uma das melhores cenas de todo o filme, quando Marguerite vai até a delegacia onde seu personagem trabalha, a fim de reaver a sua bolsa roubada, que lá é entregue por Georges. Uma vez presente no local, Marguerite desenvolve um diálogo inacreditável com o policial, que tem atitudes muito anticonvencionais em sua abordagem à cidadã.
O grande achado do longa é exatamente esse: lidar com o óbvio e o bizarro que permeiam as relações humanas o tempo todo. Resnais fabula sobre as nossas manias, esquisitices e da grande incomunicabilidade que paira, latente, sobre tudo o que tentamos dizer aos outros, com palavras, gestos, olhares e atitudes. No título original, as ervas são loucas, e não daninhas. Porém, de uma forma ou de outra, elas parecem traduzir a mesma ideia: para o ser humano, um simples acontecimento pode ser o bastante para desenvolver nele um pensamento corrosivo, que o leva a cometer extravagâncias em nome desse pensamento. Uma obsessão que não soa distante de uma realidade compartilhada por ser feita sob a costura perfeita de um mestre naquilo que se propõe a fazer. Resnais não está, nem de longe, preocupado em explicar a vida, mas em enternecer nossos corações com seu mergulho no que há de mais íngreme na ladeira de loucuras de que somos feitos. E, quando a vemos resplandecendo nos outros, no fundo, sentimo-nos menos sozinhos, ainda que a nossa loucura seja sempre diferente.

5 de ago. de 2010

Mágica, mistério e humor afiado em "Scoop - O grande furo"


A crítica costuma chamar despretensiosos os filmes que são produzidos sem o aval de cifras milionárias, sem elencos muito famosos, sem uma narrativa grandiloquente, sem cenas mirabolantes, sem grandes viradas de roteiro, entre outros fatores. Pois esse é o termo que melhor se encaixa numa qualificação rasteira de “Scoop – O grande furo”, a incursão de Woody Allen no cinema do ano de 2006. Todos os elementos que o cineasta deixara adormecido na década de 70 retornaram com grande força nessa produção, que, para além de ser uma trama divertida em sua despretensão, é uma joia que seduz fãs mais ardorosos, resistentes à ideia de apontar defeitos na obra de seu objeto de adoração – inclui-se, aqui, o autor dessa crítica – e aos menos entusiásticos do universo todo particular de Allen.
A força do longa está, como de hábito na filmografia do realizador vetusto, em diálogos muito bem escritos, proferidos, aqui, mais uma vez pelos belos e libidinosos lábios de Scarlett Johansson – que Ryan Reynolds não saiba ler português. São eles que movem as ações de uma protagonista atrapalhada em suas tentativas de acertar, mas vítima de sua própria ingenuidade. Sondra Pransky (Johansson) é uma estudante de jornalismo neófita atrás do furo de reportagem de sua vida, o que já é a razão de ser do título da obra. Na busca por uma notícia que seja a maior novidade, ela se envolve em uma trama de magia e vigarice, no melhor espírito das comédias setentistas.
Essa é a segunda colaboração de Johansson com Allen, que chegou a ser apontada como a musa desta década do diretor. Mas cada uma das parcerias traz uma faceta distinta da atriz. Se em “Ponto final” (2005) ela era o próprio retrato da sensualidade, elevada à sua máxima potência pela câmera do cineasta, em “Scoop – O grande furo”, sua Sondra é incrivelmente inocente, metendo os pés pelas mãos a cada novo passo que tenta dar. Com isso, fica evidente a aproximação da atriz com a persona criada por Allen para habitar dez entre dez filmes seus. Ela absorve trejeitos de diretor, mimetizando-se com grande talento à narrativa do filme. O curioso é que Allen costuma lançar mão de um alter ego apenas quando não está em cena. Entretanto, aqui, ele também aparece em frente às câmeras, o que se justifica pela paternidade (arranjada) entre seu personagem e Sondra. Um detalhe que chama a atenção é que, no fundo, existe uma semelhança física entre Johansson e Mia Farrow, musa de outrora do diretor. A caracterização de Sondra lembra bastante a de Halley Reed, personagem de Farrow em “Crimes e pecados” (1989). De certa forma, é como se Allen visse em Johansson uma versão mais jovem, e igualmente talentosa de Farrow.
Nas desventuras vividas por Sondra, surgem duas figuras carismáticas para interpelá-la, cada qual à sua maneira. Primeiro, é Sid Waterman (Allen), um mágico cheio de truques duvidosos que promete auxiliá-la em sua procura pela matéria perfeita. E tem ainda Peter Lyman (Hugh Jackman, mostrando mais que músculos e cara de mau), um charmoso aristocrata que tira a jovem do sério com seu jogo de sedução. Para os mais curiosos, o tal furo pelo qual Sondra procura diz respeito a Peter, que pode ser um terrível serial killer em busca de uma nova vítima. A deixa é dada por Joe Strombel (Ian McShane), uma espécie de oráculo que revela à jovem a existência desses crimes.

O longa também é o segundo de Allen rodado em Londres, depois de tantas obras centradas na sua Nova York natal. A troca de cidade fez bem à sua filmografia, e mostrou que a atmosfera londrina pode render não só um drama dostoievskiano, mas também uma singela comédia, como é o caso desse “Scoop” (no original). Tudo na trama é conduzido com uma leveza admirável, que resgata a mão de Allen para os enredos mais “inocentes”, por assim dizer. Entre os exemplares recentes de sua produção, apenas “O escorpião de jade” (2001) se aproxima desse clima de humor á moda antiga no qual o realizador é especialista. Não faltam, portanto, autorreferências feitas com muita habilidade.
Por conta de sua fluidez, o filme não apresenta grandes novidades em relação ao que Allen já produziu até hoje. As neuroses de um indivíduo, tão comuns em sua obra, mais uma vez são dissecadas aqui, de maneira minimalista, refletindo-se especialmente na figura de Sondra, que não sabe se se entrega de uma vez aos encantos de Peter, ou se deixa a voz da razão a conduzir ao final de sua investigação. Nesse delicioso mistério, a essa voz é ninguém menos que Sid, que a leva a algumas das situações mais hilárias do filme, que se define muito bem com uma excelente comédia de erros. Mais uma vez, por fim, Allen prova que não é preciso inovar o tempo todo para cativar a atenção de um espectador interessado em uma história simples. Alguns lugares-comuns, se bem administrados, podem render pequenas pérolas. E “Scoop – O grande furo” está aí para provar exatamente isso.

2 de ago. de 2010

"Na cama": o enredamento pelas palavras


Por meio de um longo diálogo, Matías Bize convida seu espectador a estar "Na cama". O longa do diretor chileno tem um título absolutamente convidativo, mas engana aos que pensam se tratar de uma obra de sexo vulgarizante. Para começar, as cenas ousadas são muito menos abundantes do que se pode supor, em se tratando de um filme assim intitulado. Logo na abertura, a câmera flagra um casal em pleno ato, focalizando nas carícias atrevidas e nos sutis gemidos de prazer. Com o passar de alguns minutos, o homem e a mulher que começaram a ser expostos diante do olhar do público têm a chance de começar a se mostrar por dentro.
É então que o filme se revela um vigoroso tratado das relações amorosas da contemporaneidade, cumprindo muito mais uma função reflexiva que excitante, malgrado a carga erótica que percorre cada fotograma de seus enxutos 80 minutos. A ação de "Na cama" trancorre totalmente em um único cenário: um quarto de motel onde seus protagonistas, e únicos personagens, fazem sexo e conversam, conversam e conversam. Seus nomes são ditos somente algum tempo depois do começo da trama. Eles se chamam Daniela (Blanca Lewin) e Bruno (Gonzalo Valenzuela), e não se sab muito bem de onde eles vêm ou para onde vão. A única certeza que transparece na conversa entre os dois é a de que aquela está sendo a primeira e a última noite deles. E, como não poderia deixar de ser, o teor do diálogo é, também, sobre como seria um possível relacionamento dos dois.
Nada é tão explicativo no que se refere ao casal. Aos poucos, o roteiro muito bem escrito de Julio Rojas deixa entrever que Bruno e Daniela se encontraram em uma noitada, e estão naquele motel para praticar sexo casual. Como mais um entre tantos casais, eles não estão à procura de compromisso sério, mas acabam esbarrando na possibilidade de viver algo mais que uma única noite. Nesse sentido, Bize acertou, pois apostou em uma composição minimalista, em que os diálogos são um rio caudaloso que dá contornos impressionantes aos sentimentos vertidos por seus personagens. Muito mais do que despi-los por fora, o cineasta os apresenta por dentro, com suas almas expostas, apesar de muitas reservas no início.
Naquele ambiente tão impessoal, Daniela e Bruno conversam, se beijam, se excitam, dançam, comem e bebem, e vão enredando o espectador para um espiral de desejo e incongruências conduzida com muita habilidade. Para espectadores menos afeitos a um blá blá blá, a experiência de assistir a "Na cama" também é válida, pois o texto proferido por seus personagens é de arrasar, não caindo em momento algum na vala do cansativo. De alguma maneira, eles resumem a essência da vaidade que acomete os indivíduos nos dias de hoje, ensoberbecidos de tal forma que amam muito mais sua independência e seu desapego a uma outra pessoa do que prezam a companhia perene do outro. Num mundo em que as relações se mostram cada vez mais voláteis, acompanhar a curta trajetória de envolvimento e posterior desenlace de Bruno e Daniela é se colocar diante de um espelho - côncavo ou convexo, a depender da distância a que se está do alvo.

O diretor Matías Bize despontou com "Na cama" no Festival do Rio de 2006, e conquistou muitos espectadores com sua verborragia. Durante o tempo que passam juntos, os personagens praticam o sexo verbal, muito mais do que qualquer outra modalidade de sexo. Com isso, o filme de Bize se assemelha aos de outros diretores que também decidiram calcar suas obras nas palavras. Um deles é Richard Linklater, que compôs dois singelos retratos do amor dos tempos atuais: "Antes do amanhecer" (1996) e "Antes do pôr-do-sol" (2004), em que os diálogos são a força motriz da ação. Uma ação quase inexistente, na verdade. Assim também acontece com o cinema de Eric Rohmer, que fez várias séries de filmes em que quase nada acontece, mas as falas dos personagens desenrolam uma infinidade de sentimentos e anseios. A quadrilogia dos contos das quatro estações é um magnífico exemplo desse cinema dialogal. O longa posterior de Bize, "O bom de chorar" (2007), jamais viu o escurinho das salas de cinema brasileiras, tendo sido exibido também no Festival do Rio. Nesse longa, em vez de um casal que ensaia o começo de um relacionamento, está um casal em vias de se separar, discutindo a relação numa caminhada noturna pelas ruas de Barcelona.
A estrutura de "Na cama" também acabou rendendo uma obra "genérica", filmada aqui no Brasil. Seu nome, inclusive, é muito semelhante ao do longa chileno: "Entre lençóis". Seus protagonistas, rostos conhecidos das novelas globais: Reynaldo Gianecchini e Paola Oliveira. Confesso que ainda não assisti a ele, em grande parte por um receio enorme de que não passe de um cópia piorada do longa "original". Por outro lado, é interessante notar que "Na cama" acabou fazendo escola por aqui. Há muitas qualidades, como já foi dito, que engrandecem o filme. Particularmente, não sou de acordo com o sexo eventual, como o praticado pelos personagens, e me prendo muito mais nos interessantes diálogos travados por Daniela e Bruno, que trazem muito de angústia existencial. Incapazes de lidar sequer consigo mesmos, eles tentam estabelecer uma conexão com o parceiro, na busca por uma sensação de completude que não se realiza nem mesmo depois de longos anos na companhia de outrem. No fim das contas, "Na cama" se revela como um longa sobre o abismo invisível que reina em qualquer relação humana.