Os exercícios de metalinguagem propostos por Woody Allen são sempre, no mínimo, instigantes e dignos de alguma atenção. Com "Dirigindo no escuro" não é diferente. O diretor volta a falar do cinema dentro do cinema, como fizera brilhantemente na década de 80 em "A rosa púrpura do Cairo" nesse filme rodado em 2002, e lançado com atraso de um ano em terras brasileiras, como de hábito com as suas produções.
Se em "A rosa púrpura..." Allen tratava do fascínio que o cinema exerce na vida de uma pessoa comum com maestria indiscutível, em "Dirigindo no escuro" ele trata com cinismo das "regras" que fazem de Hollywood um terreno fértil para filmes que não primam tanto pela transmissão de um conteúdo, mas sim por ignorar a inteligência do espectador com tramas mirabolantes e imbecis. Seu discurso contra essa prática casa vez mais usual é calcado no humor, área que domina há tempos. Para fazer sua crítica com consistência, ele assume novamente o papel de protagonista, personificando Val Waxman, um diretor famoso que já produziu uma série de ótimos filmes, tendo sido muitas vezes aclamado pelo público e pelos especialistas. Mas já faz tempo desde que sua última obra foi lançada e, desde então, ele sente muitas dificuldades em conseguir um novo emprego.
A chance do retorno aparece na figura de sua ex-mulher Ellie (Téa Leoni, um tanto histriônica), que atualmente está casada com um poderoso dono de um estúdio cinematográfico, e lhe oferecer a oportunidade de dirigir um longa com o orçamento de 60 milhões de dólares. Parece ser a solução de seu problema de ego ferido e desejo de novo reconhecimento, e, de fato, o é. Mas ele logo trata de encontrar outro contratempo. Sua ansiedade de voltar a fazer o que ama o leva a adquirir cxegueira psicológica, exatamente às vésperas de recomeçar. Eis aí a grande sacada de Allen, que torna o filme ainda mais interessante. Não só o filme em si (Dirigindo no escuro), mas também o filme dentro do filme. Decidido a não deixar essa chance passar, Val esconde de todos sua cegueira, e se lança ao desafio de comandar os atores mesmo sem enxergar um palmo à frente de seu nariz. Asituação insólita, enquanto dura, rende as melhores cenas do filme, garantindo um equilíbrio perfeito no binômio diversão e reflexão.
Por meio dessa ideia simples, Woody Allen dá sua visão (sem trocadilhos) a respeito do que vem se transformando a indústria do cinema na atualidade. A cegueira do personagem pode ser lida tanto como literal quanto como metafórica, já que muitas produções lançadas recentemente, vindas diretamente da "fábrica de sonhos", parecem realizadas por comandantes destituídos da capacidade de enxergar o que é um bom filme. E em "Dirigindo no escuro" essa crítica é feita com muita argúcia e um roteiro muito bem escrito, com as pontas bem amarradinhas, e elementos que já são reconhecidos de longe na filmografia alleniana. A cidade de Nova York, que pode ser considerada uma personagem da história, aparece em graça e esplendor, em cenários belos e abertos, apesar de não exatamente inéditos. Mas nem so de ineditismos deve viver um bom filme, mas também de um talento notório para a condução do enredo que foi selecionado. Aqui, tudo é tratado com um misto de sofisticação e leveza, temperados pelo jazz, outra presença marcante e recorrente nas trilhas sonoras de seus filmes.
O longa de Allen também é uma bela homenagem a uma era de Hollywood que já não existe mais. O diretor evoca um tempo de astros que tinham muito mais que uma fina estampa, e exibindo dotes de ator que convenciam e encantavam, assim como muitas atrizes. Hoje, mistura-se a nomes competentes uma quantidade quase igual de supostos intérpretes, que se sustentam por exercer nas plateias um outro tipo de apelo, que não o de sede de arte genuína, conceito esse que também é passível de controvérsias, e que mereceria vários parágrafos e páginas. O fato é que "Dirigindo no escuro" levanta a questão da crise do cinema, que é diagnosticada de tempos em tempos por aí, como muita inteligência. Allen sabe muito bem do que está falando e, embora possa parecer, não está brincando em serviço. Sua arma é o riso, capaz de desarmar o alvo com muito mais eficácia que uma palavra ofensiva em sua aparência.
O diretor também aproveita para filosofar mais um pouco, como faz a cada filme. Entre os vácuos propositais na narrativa, ele discursa sobre o nada, sobre a frivolidade do cotidiano, as as agruras de envelhecer e outros assuntos que, de tão corriqueiros, acabam sendo bastante pertinentes. Principalmente porque são debatidos em diálogos hilários, sempre presentes nas comédias deliciosas desse veterano da sétima arte. Como se vê, é em um pouco menos de duas horas que o diretor se utiliza com propriedade de um veículo do qual entende muito, o que traduz um estilo enxuto em sua verborragia, por mais paradoxal que a afirmativa venha soar. É válida sua proposta, que deve ser estudada com acuidade.
2 de mar. de 2010
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