26 de abr. de 2012

A vida que tem de ser seguida em Os descendentes

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Simplicidade e minimalismo dão o tom de Os descendentes (The descendants, 2011), mais um longa-metragem de Alexander Payne depois de um hiato de nada menos do que sete anos. Dessa vez, George Clooney interpreta Matt King, um sujeito boa praça que tem sua vida sacudida em decorrência de um trágico acidente com sua esposa. Eles andavam meio afastados por conta do trabalho de Matt, que também não tinha muito tempo para estar perto das filhas. Obrigado a passar mais tempo em casa, ele se vê desafiado a colocar ordem em tudo, e os pequenos problemas do cotidiano, somados, ganham a dimensão de imbróglios. Fora as questões emimentemente familiares, Matt tem que lidar com os negócios envolvendo terras pertencentes a todos, e isso atiça o interesse de uma penca de primos desinteressantes. O golpe de misericóridia em seu dia a dia outrora pacífico chega com uma de suas filhas, quando ela lhe conta que a mãe o estava traindo. A partir de então, Matt quer saber o que o amante tem e se a esposa ainda nutria algum tipo de sentimento por ele.

A soma desses ingredientes faz de Os descendentes um filme de contornos despretensiosos, que quase beiram a preguiça. Payne parece ter estado tranquilíssimo e relaxado quando o dirigiu, incorporando ao máximo o estereótipo havaiano. Sua câmera percorre as paisagens do mais “tropical” dos estados pertencentes aos EUA com paciência, e essa rotação mais calma foca em personagens e expressões, por vezes, no automático. De qualquer modo, essa constatação não chega a ser um demérito propriamente dito para o filme. Afinal, há pessoas um tanto apáticas na vida real também. Por outro lado, inclui-lo entre os indicados ao Oscar principal em 2012 é um franco exagero, de intensidade semelhante à que gerou a indicação de O homem que mudou o jogo (Moneyball, 2011). Os descendentes não tem força e relevância suficientes para tanto, configurando-se como uma produção de mescla de razoabilidade com picos de elevação qualitativa. Numa rápida comparação com Sideways – Entre umas e outras (Sideways, 2004), ele sai vitorioso, mas basta ser emparelhado com alguns de seus concorrentes na categoria, como A invenção de Hugo Cabret (Hugo, 2011) e A árvore da vida (The tree of life, 2011) para perder em capacidade de interessar, guardadas as devidas proporções dessa comparação, uma vez que as intenções dos realizadores foram as mais díspares possíveis.

Os pontos positivos da obra são o seu olhar carinhoso para os personagens, sempre muito humanos e plausíveis. Clooney injeta sensibilidade e veracidade a Matt, podendo despertar centelhas de identificação por parte do público. Habitualmente correlacionado a glamour e a mulheres charmosas em sua companhia, ele se despe dessa sua persona pública para ser um homem banal, à volta com a dúvida sobre a mulher que ele cria amá-lo e com responsabilidades práticas envolvendo as filhas. Ambas as atrizes que as interpretam também estão ótimas, o que deixa claro que a direção de atores de Payne é bastante eficiente. O carisma das meninas é quase irresistível, ainda que a mais velha, típica garota-problema, tenha um comportamento intragável a maior parte do tempo, além de trazer a tiracolo um namorado capaz de irritar a qualquer um, como bem demonstra o avô das meninas. E essa aura de verossimilhança que os atravessa é capaz de nos colocar em torcida por um desfecho benévolo para todos, ainda que saibamos que o jogo da vida tem sempre uma prorrogação, já que não cabe em pouco menos de duas horas.


O roteiro simples é uma adaptação do livro homônimo de Kaui Hart Hemmings, que, no Brasil, foi lançado juntamente com sua versão cinematográfica. A julgar pelo que se vê na tela, a obra corrobora, em certa medida, a visão arguta de Payne sobre o mundo e as pessoas, que ele já vinha exercitando em seus trabalhos pregressos, sendo As confissões de Schmidt (About Schmidt, 2002) o mais celebrado. De qualquer forma, nota-se uma leve contenção em seu olhar em Os descendentes, o que leva a crer que ele se apaixonou pelos personagens a ponto de preservá-los de muitos julgamentos morais, apesar de nenhum deles ser exatamente um poço de virtudes. Matt, por exemplo, é o retrato de um homem inábil com as filhas e a esposa que precisa aprender a lidar com sua nova realidade. A narrativa trata basicamente desses percalços e nos leva a pensar que cada dia é um novo problema que vem as nossas mãos para ser solucionado como melhor convier. Clooney, aliás, realizou o seu desejo de ser dirigido por Payne com esse filme. Ele gostaria de ter trabalhado com o cineasta em Sideways – Entre umas e outras, mas o papel que seria dele, Jack, acabou nas mãos de Thomas Haden Church, visto que o Payne queria alguém menos conhecido na pele do personagem.

Apostando numa composição de texto, atores e direção de filigranas rarefeitas, Os descendentes passa longe de ser um filme memorável, mas tem lá seus momentos que justificam a sessão, conforme se apontou. Mas a trama tem lá a suas gorduras sobejantes, por mais paradoxal que seja essa afirmativa diante do apontamento de seu minimalismo. E esses pequenos excessos o tornam um tanto arrastado: são laivos de prolixidade que despojam-no de certo teor qualitativo, e indicam que Payne poderia ter acumulado mais acertos ao longo da narrativa. Para brasileiros, acostumados a uma tradição novelesca, o filme pode apresentar ares de déjà vu, um grande empecilho para sua apreciação. Em termos avaliativos, contudo, é possível entender o filme como muito bom, o que já é o suficiente para livrá-lo da vala comum das películas indigentes, cujo aporte interpretativo de seu elenco é, na verdade, o grande trunfo.

19 de abr. de 2012

Mulheres à beira de um ataque de nervos: tudo ao mesmo tempo agora


A famigerada opulência cromática almodovariana também está inserida em Mulheres à beira de um ataque de nervos (Mujeres al borde de um ataque de nervios, 1988), que rendeu ao realizador espanhol uma indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro no ano seguinte à sua concepção. Mas essa característica badalada de seus filmes não é a única a comparecer aqui. Almodóvar também coroa o longa de toda uma passionalidade, narrando, por meio de um roteiro de sua própria autoria, um dia de peripécias na vida de Pepa Marcos (Carmen Maura). Ela é uma atriz que se encontra em colapso por causa do término de um longo relacionamento com um homem casado. O fato afeta diretamente o seu desempenho na função que desempenha ultimamente, que é a de dubladora de filmes de gosto duvidoso, uma inserção cômica muito benvinda à história, embora pouco explorada.

Na verdade, Pepa é somente uma das mulheres que se encontra no estado declarado pelos títulos original e em português do filme. A ela se juntam ainda Candela (María Barranco), uma grande amiga sua que se encontra envolvida com um terrorista, Marisa (Rossy de Palma), a namorada de Carlos (Antonio Banderas), o filho de seu amante, e Lucía (Julieta Serrano), a esposa traída que anda mais descompensada que todas as outras juntas e representa o grande perigo para as demais, por assim dizer. E todas acabam confinadas no apartamento de Pepa, o que é um prato cheio para desdobramentos rocambolescos, como Almodóvar tanto ama e nos diverte tanto. Exatamente nisso está o atrativo de Mulheres à beira de um ataque de nervos: em costurar com diligência uam trama cômica que revela aspectos bizarros das personalidades de seus personagens. Pepa, por exemplo, não quer admitir que seu amante já não a vê com interesse e, por isso, dispensou-a. Lucía, por sua vez, acabou de sair de uma clínica psiquiátrica e nem é capaz de responder pelos próprios atos. Por isso, um revólver em suas mãos pode causar mais estragos que o “normal”.

Ao longo do filme, os acontecimentos vão se superpondo, o que deixa a nítica sensação de que ele dura ainda menos do que seus enxutos 89 minutos. Almodóvar sabe cruzar os destinos dos personagens de modo inteligente e divertido, mantendo a fidelidade à sua gramática particular e, ainda assim, é capaz de surpreender. O filme em questão flerta com a cafonice o tempo todo, e se afasta do estilo europeu de estudo de personagens em tramas introspectivas, mas, na tela, o tal diálogo não se constitui demérito algum. Tudo flui com muita naturalidade e humor na história, e os risos podem ser praticamente inevitáveis. Ademais, há um detalhe que, a depender do espectador, pode corroborar a comicidade do enredo: como se trata de um filme falado em espahol, cada palavra emitida pelos personagens se torna ainda mais engraçada. A língua espanhola, ao menos na visão de quem não a tem como língua materna, carrega consigo um teor divertido. Sem falar que Carmen Maura, por exemplo, sabe ser hilária na pele de uma mulher que ainda arrasta um bonde para o ex-amante, e que mergulha em uma crise existencial patética por conta de sua indiferença.



Por falar em Maura, essa é uma das suas nove parcerias com Almodóvar, que inclui títulos como Maus hábitos (Entre tinieblas, 1983) e A lei do desejo (La ley del deseo, 1987), passando pelo mais recente Volver (idem, 2006), o último encontro entre ambos. Oxalá possam voltar a trabalhar juntos, visto que, quando reunidos, formam uma dobradinha e tanto. Ela se sente plenamente à vontade habitando o universo do diretor, e se soma a outras grandes atrizes que também costumam fazer bonito em suas obras, a saber: Marisa Paredes e Penélope Cruz. Entretanto, Mulheres à beira de um ataque de nervos também traz a exótica Rossy de Palma, cuja personagem cai na grande armadilha preparara por Pepa. Ao tomar um gaspacho que encontra na geladeira da dubladora, ela cai em um sono profundo, já que Pepa havia despejado uma dose cavalar de tranquilizantes na receita, e pretendia entregá-la a Ivan, o tal ex-amante. O tiro sai pela culatra e Ivan segue livre, leve e solto para arrastar suas asinhas para uma outra incauta, com seu espírito de amante de quinta categoria.

Ainda que tenha sido largada por Ivan, porém, Pepa luta para salvar a vida do canastrão, que está sob a mira furiosa de Lucía, esta verdadeiramente revoltada com o abandono do marido. Então, os personagens saem do apartamento onde se dá a maior parte da ação do filme e correm desenfreados pelas ruas da cidade, gerando um clima de perseguição divertidíssimo no filme. E boa parte das cenas é pontuada por uma trilha sonora preciosa, sublinhando os ares cafonas que impregnam o longa como um todo e, surpreendentemente, fazem dele uma obra atraente. O espanhol tem a notável habilidade de converter tramas e personagens que soariam constrangedores em outras mãos em narrativas e tipos capazes de despertar vero interesse. E Mulheres à beira de um ataque de nervos é um filme que não tem vergonha alguma de se assumir como uma comédia rasgada sobre as desventuras de fêmeas que, para matarem o leão de seu dia, não fogem ao combate.

11 de abr. de 2012

Mais estranho que a ficção, uma viagem além do óbvio ululante


Em sua teoria sobre o componente de ficção da literatura, Coleridge afirma que, para que o leitor possa se apropriar mais plenamente de um texto, é necessário comprar a ideia proposta pelo autor, seja ela totalmente ancorada na realidade ou não. A essa disposição em acolher todo elemento que se apresente em um texto ele chamou suspensão da descrença. Em outras palavras, tudo é permitido na literatura. Tomando emprestado esse princípio, é possível pensar em um filme como Mais estranho que a ficção (Stranger than fiction, 2006), o encontro de Marc Forster com a excelência. Por mais que o postulado de Coleridge tenha sido pensado para a literatura, ele pode ser estendido para a arte de uma forma geral. E, uma vez que se compra a ideia do filme, torna-se possível embarcar em sua viagem além do óbvio ululante, termo cunhado por Nelson Rodrigues em seu elogio da heterogeneidade. As bases do roteiro de Zach Helm estão na realidade, mas ele a ultrapassa em certa medida e revela toda uma inventividade capaz de agradar ao espectador apaixonado por premissas originais.

A trama flagra o cotidiano de Harold Crick (Will Ferrell), um homem de vida absolutamente banal que repete suas idiossincrasias diuturnamente, numa sistematicidade que se revela como efeito colateral de uma exposição prolongada à solidão. Subitamente, ele começa a ouvir uma voz narrando os seus passos em terceira pessoa, como se ela ressoasse de um alto-falante, e que só ele é capaz de perceber. A partir daí, inicia-se um maravilhoso jogo metalinguístico, que vai se desenhando à medida que descobrimos que ele é protagonista de uma história escrita por Kay Eiffel (Emma Thompson). A voz que passa a reverberar no dia a dia de Harold pertence a ela, que decidiu matar o personagem que, na verdade, existe. O problema é que a escritora não faz a menor ideia de como conduzir a trama que criou até ao seu desfecho, ou seja, não sabe como causar a morte do protagonista que idealizou. Enquanto isso, Harold tenta encontrá-la o mais rápido possível e impedir a escrita desse fim, uma vez que a morte do personagem é também a sua morte.

Com uma sinopse tão promissora nas mãos, Forster entrega um filme esplêndido em todas as suas possibilidades, convidando seu público a viajar com ele. Na verdade, Mais estranho que a ficção representa a concretização audiovisual de uma atitude que pode ser hábito de alguns. Quem nunca se imaginou personagem de uma história fictícia e se pegou narrando os próprios passos? Para os que já fizeram isso ao menos uma vez na vida, o filme pode ganhar um sabor ainda mais delicioso, e ainda há o bônus de um elenco afiado, dando conta de seus papéis magistralmente, como se cada um deles fosse o único intérprete possível para as pessoas que passam a encarnar. A começar pelo protagonista de Ferrel: o ator costuma ser pouco criterioso em suas escolhas, mas aqui acertou em cheio. Além de ter aceitado um convite irrecusável, ele está magnífico na pele de um homem que sofre uma reviravolta em seu cotidiano a partir do momento em que se dá conta de que não é alguém tão comum quanto pensava. Thompson também está espetacular com ao escritora atormentada com ideias de morte, que sempre recorre à “estratégia” de matar os protagonistas de seus livros. Harold tem tudo para ser o próximo de uma lista relativamente longa de defuntos literários, por assim dizer. Ainda há espaço para um inspirado Dustin Hoffman, que dá vida a Jules, um professor universitário que ouve o relato de Harold com o pé atrás e tenta auxiliá-lo a descobrir de que história ele faz parte. O diálogo entre os dois no qual Jules revela quais livros em que Harold poderia estar que já descartou é uma das várias lufadas de bom humor arguto do filme.



O cotidiano de Harold também é sem graça e repetitivo por conta de sua profissão. Ele é auditor da Receita Federal, e isso inclui um dia inteiro de cálculos e balanços para verificar quem está sonegando impostos, função que lhe rendeu uma excepcional habilidade em resolver contas mentalmente. É por causa de uma de suas auditorias que ele conhece Ana Pascal (Maggie Gylenhaal), a dona de uma padaria que simplesmente se recusa a pagar o percentual de impostos estipulado pelo governo. O primeiro encontro dos dois é desastroso, e ela já balança as suas estruturas com seu jeito ousado e não tão perfeitinho quanto o de Harold. Eles voltam a se encontrar mais vezes para que Harold consiga convencê-la a pagar o que deve, e isso gera um envolvimento entre ambos para além da esfera profissional, representando um renovo benvindo e necessário para o protagonista, que, devemos lembrar, tem toda a sua trajetória escrita por Kay. Ao mesmo tempo em que narra o desenrolar dos caminhos de Harold, ela é sua consciência, e compartilha com o espectador cada detalhe de seu esquadrinhamento contínuo do personagem.

Sem dúvida, Mais estranho que a ficção é daqueles filmes rico em possibilidades, e que não desperdiça nenhuma delas. Helm é feliz em não fazer de seu roteiro algo totalmente didático, e nem se dá ao trabalho, felizmente, de encontrar uma explicação plausível para a criação ficcional de Kay simplesmente exisitir. Desde o começo, somos convidados a mergulhar profundamente em uma trama que flerta com o absurdo, e essa mágica é capaz de conquistar no primeiro olhar. E, ainda que o tom impresso pelo roteiro e pela direção seja de comédia, há passagens de drama reflexivo que podem arrancar discretas lágrimas de encantamento, especialmente em uma de suas sequências finais, quando Harold se conforma em se sacrificar pela qualidade da obra de Kay. É o amor pela arte falando mais alto que vaidades ou fatores pessoais, configurando o longa como uma declaração totalmente apaixonada ao cinema e a ficção como um todo. Depois de uma sessão do filme, o espectador pode ficar se perguntando: por que eu não assisti a ele antes? De fato, é um questionamento pertinente, dada a extrema qualidade da obra, que faz brotar um largo sorriso de satisfação, expressão de quem acabou de deparar com uma das mais fabulosas apropriações do discurso metalinguístico do cinema recente.