Com um curta carreira no cinema, Sam Mendes mostrou logo a que veio. Sua estreia, com "Beleza americana", arremessou-o ao Oscar em pouco tempo, tornando-o um dos nomes mais promissores do cinema do final do século XX. A filmografia do diretor prosseguiu com "Estrada para a perdição", em que sua câmera focou os dilemas de um homem de vida dupla diante do filho pequeno. Em seguida, lanço se olhar sobre a segunda Guerra do Golfo no mediano "Soldado anônimo".
Um de seus filmes mais recentes, "Foi apenas um sonho", parece marcar um retorno de Mendes às origens. Como na primeira obra, seu olhar se volta para o cotidiano de um casal comum, e enxerga além do óbvio a partir de uma dissecação dos conflitos que se superpõem em sua vida, a cada novo passo que tentam dar. A trama é baseada no romance de Richard Yates (Revolutionary road, mesmo título original do filme), e é um tratado profundo sobre as progressivas desconexões que vão minando um casamento, mas que pode ser estendido para outras relações amorosas.
Passada nos glamourosos anos 50, já espiados por nomes como Todd Haynes (no recente "Longe do paraíso"), a história do casal que tenta levar uma vida digna, apesar dos intemperismos de ordens diversas que se abatem sobre seu relacionamento é tocante em mais de uma instância. Nos papéis centrais, Kate Winslet e Leonardo DiCaprio, parceiros de cena onze anos antes no já legendário "Titanic". Se no filme de James Cameron eles eram o arquétipo do par romântico que se interrompe por uma tragédia da natureza, aqui eles reeditam a praceria para falar de uma outra tragédia, dessa vez particular e quase silenciosa e igualmente letal, que vai se desenhando a pequenos passos no cotidiano a dois.
Os atores dão vida a Frank e April Wheeler, dois apaixonados com ambições que têm plena certeza de que serão alcançadas em pouco tempo. Eles não encontram a completude naquilo que fazem, e na maneira como o fazem. Enquanto ela deseja se tornar uma atriz de renome, ele odeia ferozmente o emprego burocrático no qual trabalha e do qual depende para viver. Empenham-se para sair da mesmice, e de comodismo não podem ser acusados. Mas a rotina, por si só, já é uma espécie de catalisadora de suas discódias. Ela surge como uma entidade implacável, que cobra um alto preço para ser suplantada. E na expressão facial de Winslet e DiCaprio fica transparente o descontentamento com o que ambos se tornaram com o decorrer do tempo.
Nesse âmbito, Sam Mendes acerta em cheio, dirigindo a esposa e DiCaprio com maestria, arrancando interpretações memoráveis da dupla de atores. "Foi apenas um sonho" é um filme difícil, que escava as emoções mais contidas de um ser humano, camufladas pela coerção de toda a sorte de convencionalismo. Mas os intérpretes demonstram pleno domínio da dosagem certa de emoção e conflito que perpassa seus personagens. Tanto ele quanto ela estão no auge de sua maturidade profissional. DiCaprio vem colecionando papéis ótimos em filmes igualmente bons, principalmente os realizados sob a direção de Martin Scorsese, com quem já rodou quatro produções até agora. Winslet, por sua vez, já provou que é uma atriz completa, algo que o Oscar ignorava até 2009, quando lhe concedeu a estatueta de melhor atriz por seu desempenho em "O leitor", filme igualmente maravilhoso no qual ela se despe de grande parte de sua vaidade, atitude que é sempre louvada pela Academia (vide Charlize Theron e sua vitória por "Monster - Desejo assassino", em que estava inegavelmente horrenda). Mas sua performance como April merecia ser igualmente laureada, o que não aconteceu. O filme como um todo, aliás, foi posto de lado pelo Oscar, recebendo apenas 3 indicações. Ao menos o Globo de Ouro foi endereçado à atriz, semanas antes, com justiça.
Correndo por fora, surge o papel defendido com talento por Michael Shannon, ator desconhecido do grande público, que faz uma pequena e decisiva participação no longa como um jovem emocionalmente instável, que lança verdades na cara de Frank e April sem a menor cerimômia. É uma única sequência, mas com diálogos fortes o bastante para se tornar antológica.
Em resumo, Sam Mendes revela mais uma vez seu olhar aguçado para as mazelas humanas interiores, na figura do casal de protagonistas. Em sua necessidade de avanço, eles sentem que o mundo tem muito mais a oferecer, e essa disparidade se refleta num afastamento cada vez maior entre o casal. É impressionante observar como dois amantes que parecem almas gêmeas tornam-se, com o passar do tempo, inimigos íntimos. Nuances que são captadas com argúcia pela visão certeira do diretor.
5 de mar. de 2010
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