20 de jun. de 2012

Hair e os delírios musicados de uma geração



Musicais podem ser muito charmosos quando se investe em uma trama consistente nas quais as canções não são meros adornos. Demonstrando consciência dessa premissa, Milos Forman concebeu Hair (idem, 1979), a versão cinematográfica da peça teatral homônima que se tornou o hino de toda uma geração de alternativos. O longa-metragem se baseia no espírito libertário trazido pela década de 70 e, de certa forma, antecipa os excessos que viriam a se tornar imediatamente associáveis à década posterior com um senso de humor aguçadíssimo. Tudo tem início a partir do momento em que Claude (John Savage), um jovem de Oklahoma, é recrutado para fazer parte da tropa de soldados estadunidenses da Guerra do Vietnã. Logo que chega a Nova York, é recebido por um grupo de hippies cheios de conceitos avessos ao status quo, e eles tentam demonstrar para o rapaz o quanto a sociedade convencional está cheia de problemas. Esse encontro é a deixa para a primeira de muitas canções nada politicamente corretas que pontuam a narrativa, com leves pitadas de reflexão e crítica social.

Sem dúvida, muito da força de Hair vem de sua trilha sonora brilhante e envolvente, mas o filme não sobreviveria se essa fosse a sua única qualidade. O elenco também tem méritos, e se mostra afiadíssimo nas cenas e nos diálogos mais saidinhos, por assim dizer. Sem falar nas coreografias muito bem orquestradas e executadas, que transformam o contato com o filme em algo equivalente a uma ida a qualquer evento dançante. A mais icônica das canções talvez seja a que faz menção à Era de Aquário, um conceito propalado pelos hippies para se referir a um novo tempo, pontuado pela fraternidade e pelo prazer particular acima de tudo, que ganhou adeptos com alta velocidade. É difícil não se contagiar pela performance dos personagens ao cantá-la e dançá-la, sendo franca demonstração do campo magnético atrativo emanado por Hair. Essa tribo de “bichos-grilos” é liderada por Berger (Treat Williams), que acaba seduzindo Claude a se juntar a eles e a promover deliciosas arruaças cidade afora.

Cumpre destacar que a peça da Broadway serviu de inspiração, mas não de base, para o filme de Forman. Há uma série de apropriações particulares do diretor aqui, desde as canções entoadas até a maneira com que alguns personagens são retratados, passando pela ordem de execução das músicas. Portanto, é uma versão livre e divertida do musical, cuja atemporalidade é atestada pela possibilidade de identificação que o filme pode despertar. Hair não se importa em ser desbocado, e faz frente a certo conservadorismo vigente em seu tempo, o que se trata, a princípio, de uma constatação, não de uma crítica ou um elogio. Por meio de seus números musicais algo ousados, o filme cospe na cara de uma sociedade cínica e pseudopuritana, arrancando gargalhadas pelo inusitado de suas situações. Uma das mais curiosas delas é, sem dúvida, a que mostra o processo de alistamente de Claude e outros jovens no Exército. Durante os procedimentos padrão, surge mais uma canção, que coloca em xeque a sexualidade de boa parte dos militares presentes na cena. Não se pode negar que é uma sequência dotada de um alto grau de senso de humor que, aliás, é uma das cenas-síntese da verve sarcástica que domina o filme.



A escolha de Forman para a direção também se revelou acertada. Ainda no começo da década de 70, o estúdio pensou em George Lucas para assumir o cargo, mas ele já se ocupara com as filmagens de Loucuras de verão (American Graffiti, 1973) e Hair acabou sendo rodado somente seis anos depois. Quando se confere de perto o trabalho do cineasta tcheco, entende-se que ele o desenvolveu muito bem, colocando sua câmera como observadora de um cenários de múltiplas transformações e exibindo um certo carinho no trato com seus protagonistas, verdadeiros paladinos da contracultura. A essa altura, ele já tinha imigrado para o solo estadunidense, onde já tinha assinado e ainda assinaria obras de grande relevância para o cinema tal como esta, entre as quais se podem citar Um estranho no ninho (One flew over the cuckoo's nest, 1975) e O povo contra Larry Flynt (The people vs. Larry Flynt, 1996). Forman também a evita a caricatura e apresenta as contradições de uma juventude que, antes de qualquer coisa, mostrava-se à procura de um lugar no mundo e de uma ideologia à qual se filiar. Tal qual a geração que lhe é precursora, o que faz de Hair uma espécie de primo de segundo grau de longas como Os sonhadores (The dreamers, 2003) e uma sutil inspiração para Aconteceu em Woodstock (Taking Woodstock, 2009).

Em meio à ode dionisíaca proporcionada por Hair, existe espaço para a descoberta do amor e do desejo, que se reflete no interesse crescente de Claude por Sheila (Beverly D’Angelo), que, mesmo parecendo corresponder aos seus sentimentos, hesita em explicitá-los e o leva a um quase inocente jogo de gato e rato. São temas universais que ganham uma roupagem muito bem-humorada, e que, com leveza, seduzem o público atento às histórias bem contadas com um ritmo contagiante, com o perdão do trocadilho. A fotografia, por outro lado, é menos deslumbrante que a da maioria dos musicais, o que não significa afirmar que é descuidada. Para uma trama que visita o ambiente de preparação para a guerra, a escolha por cliques menos alegóricos é sensata e eficiente, e faz o público prestar atenção nos outros elementos comentados aqui. Aliás, a peleja dos novos amigos de Claude é para impedir que ele faça parte do balé cruento que uma guerra como a que os ianques estavam travando contra os vietcongues representava. E, quando Berger consegue se infiltrar no QG dos soldados e resgatar Claude dessa iminência, o filme se aproxima de seu desfecho e inscreve seu nome na galeria de musicais divertidos, reflexivos e relevantes, exibindo os delírios musicados de uma geração.

15 de jun. de 2012

O curioso registro do nonsense em Durval discos



Despretensão e charme atípico regem Durval discos (idem, 2002), a estreia de Anna Muylaert na direção de longa-metragens. Esse seu primeiro filme é temperado por uma bela dose de humor negro e lascas de nonsense, que o tornam uma alternativa muito interessante em meio a seara nacional. O título remete à simpática e anacrônica loja de LPs do protagonista, encarnado por um inspirado Ary França. Ele se recusa a abdicar de seu negócio ou mesmo a modernizá-lo com a inclusão gradual de CDs ao acervo. Com isso, o lugar fica às moscas a maior parte do tempo, e parece mais que a loja é para ele mesmo do que para clientes em potencial. Durval se sente em casa ali, e não se trata de uma simples metáfora: a loja fica dentro de sua casa mesmo, em que ele mora com a mãe Carmita (Etty Fraser), uma adorável senhora que flerta com um nível um tanto saudável de insanidade.

Muylaert constrói uma atmosfera de inusitado muito bem-vinda em Durval discos. A narrativa transcorre em uma São Paulo modorrenta, de transeuntes lânguidos e personagens pitorescos, a começar pelo protagonista em si. E a soma dessas características incomuns resulta em uma personalidade carismática, capaz de manter o espectador risonho por boa parte da sessão, seja pelos hábitos curiosos desses tipos cuidadosamente pensados, seja pelas tiradas que eles emitem, algumas delas icônicas. O melhor dessa composição é que tudo tem um sabor de cotidiano, por mais que uma ou outra bizarrice cruze a tela. E, acredite, elas realmente surgem, exatamente depois que Durval e sua mãe decidem contratar Célia (Letícia Sabatella), a única empregada doméstica que aceita trabalhar para eles em troca de um salário irrisório. Aquela moça tão subserviente não está ali por acaso, e tudo tem a ver com uma garotinha que ela deixa aos cuidados de Durval e Carmita para, em seguida, desaparecer.

Então, de repente, eles se veem diante da necessidade de tomar conta de Kiki (Isabela Guasco), a tal garotinha, que não tem a menor noção do que está acontecendo. Mesmo sabendo que não pode ficar com a menina, Carmita se apega a ela de tal maneira que é capaz de atender a todos os seus caprichos, sejam eles quais forem. Esse apego leva Durval à loucura, já que ele não se conforma com o sumiço repentino de Célia e sente que existe algo de muito estranho no fato de aquela menina estar ali, uma suspeita que se confirma mais adiante. Além da senilidade da mãe, ele tem que lidar com a curiosidade excessiva de Elizabeth (Marisa Orth), a funcionária da sorveteria ao lado, que o visita regularmente para fumar e se interessa por saber mais a respeito de Kiki, pensando, a princípio, que se trata de uma sobrinha sua. Os diálogos travados entre ela e Durval são o mais banais possível, regando a mistura de Muylaert com um tipo de humor improvisando, que incorpora o ordinário do cotidiano com leveza e um quê de politicamente incorreto.



Nos seus traços psicológicos, Durval é uma espécie de herói da resistência de certa descartabilidade contemporânea, prosseguindo como amante de elementos que a maior parte das pessoas considera circunscrita a uma época específica. Essa sua atitude é demonstrada de forma divertida pelo roteiro, escrito pela própria diretora, e faz o público simpatizar com Durval sem qualquer forçação de barra. E o que dizer de Dona Carmita? Completamente entregue à sua adoração por Kiki, ela oferece os grandes insights de nonsense do filme, pontuando suas cenas por uma interpretação irretocável que alude a muitas avós espalhadas por aí... A sua vitória na categoria de melhor atriz no atual Festival de Recife foi um merecido reconhecimento a um trabalho tão bem executado. O filme também passou por Gramado, de onde saiu com sete Kikitos de Ouro, entre os quais se encontram direção e roteiro, uma prova de que simplicidade pode e deve rimar com qualidade. Ainda sobra espaço para uma participação relâmpago de Rita Lee, como uma cliente excêntrica que, ao que tudo indica, passa a perna em Durval.

O longa também conquista pelo carinho com que retrata seus personagens, constituindo-se como uma simpática homenagem a saudosistas e amantes de antiguidades. É o próprio Durval que sintetiza a relevância do vinil em uma espécie de discurso elucidativo para um cliente que o considera obsoleto: o LP oferece a possibilidade de escolher exatamente o trecho da música que se quer ouvir, além de apresentar lado A e lado B – de um lado, estão as faixas mais comerciais e “estouradas”, de outro, as canções menos badaladas, que só fãs de carteirinha costumam conhecer e apreciar. A defesa apaixonada não convence o comprador potencial, mas representa todo o fascínio de uma tribo por um signo de seu objeto de culto, e se coaduna com o percurso insólito do filme, um inteligente aglomerado de divertidos momentos assinalados por canções para paladares musicais ligados à atemporalidade. É uma terrível pena que, no epílogo do filme, o bunker em que reside essa resistência tenha de ruir: não há espaço para olhar atrás e reter o passado no mundo em que vivemos hoje.

11 de jun. de 2012

Ironias no mundo do teatro e das artes em Tiros na Broadway



O impedimento moral é uma temática extremamente cara a Woody Allen. Vez por outra, ele se debruça sobre o assunto e produz obras de requinte verborrágico como ninguém ou pouquíssimos de seu naipe. Em Tiros na Broadway (Bullets over Broadway, 1994), ele volta a mirar suas lentes sobre um protagonista cujo flerte com o que se convencionou denominar jeitinho brasileiro ou saída pela tangente resulta em reflexões agridoces sobre o impasse derivado da necessidade de escolher. David Shayne (John Cusack), alter ego do diretor dessa vez, é um autor teatral que ainda não conheceu o sucesso de público. Sua peças um tanto herméticas e rebuscadas só encontram respaldo entre seus colegas de métier, mas ele anseia por um alcance maior de sua obra, um reconhecimento ainda em vida. A oportunidade para que seu desejo se concretize, entretanto, surge de modo pouco convencional e agradável.

David consegue o apoio financeiro necessário para levar seu novo texto ao palco, mas isso envolve uma barganha que fere de morte um dos seus princípios artísticos. Ele só obterá a soma de dinheiro caso aquiesça em conceder um papel à namorada de um mafioso, que vem a ser exatamente o homem que lhe está oferecendo a alta quantia. Trata-se de uma ofensa ao que David acredita porque Olive Neal (Jennifer Tilly), a mulher em questão, é terrivelmente ruim para qualquer personagem, algo de que ele se dá conta logo nos primeiros minutos de um encontro com ela. Mas ninguém ali está falando a língua do talento: pelo contrário, interessa a Nick (Joe Viterelli), o tal mafioso, satisfazer o capricho da sua parceira sexual afoita. Está formado, assim, o cenário de indecisão que atormentará David até que ele tome partido de um dos lados. E é com base nessa interessante premissa que Allen vai pontuando uma série de observações sarcásticas sobre o papel do artista no mundo, outra de suas fortes recorrências.

Dito isso, o espectador de Tiros na Broadway pode esperar por um punhado de referências eruditas e metalinguísticas, bem como por tiradas de alto teor cômico. A batalha de David para se conservar imune à mediocridade é inglória e lhe traz uma espécie de culpa. Depois que ele responde à oferta para montar sua peça, uma série de eventos – alguns, pequenas catástrofes – se desenrolam sobre o seu trabalho. Ele quer fazer o melhor possível e, para isso, não abre mão da grande estrela Helen Sinclair (Dianne Wiest, inspiradíssima), uma veterana dos palcos que já interpretou textos de gênios teatrais. Para David, ela representa o farol de inteligência e sensibilidade artística de que seu espetáculo tanto carece. E os encontros entre eles são ocasiões formidáveis para que Allen destile lascas de seu humor arguto, colocando nos lábios de Helen um bordão cuja simplicidade, graça e eficiência são igualmente proporcionais (“Don’t speak!”) e cujo uso está diretamente relacionado a um contexto de paixonite que passa a envolvê-los.




A questão do papel do artista no mundo, mencionada anteriormente, tem grande força em Tiros na Broadway. Não somente porque David se vende para o mafioso, fazendo a vontade de sua namorada, mas também porque ele passa a ouvir os pitacos de Cheech (Chazz Palminteri), o guarda-costas da garota. Diante da obrigação de seguir seus passos por toda parte, o brucutu acaba revelando o seu gosto pela arte de escrever, chegando a funcionar quase como um ghost writter para David, a quem “acusa” de escrever diálogos excessivamente formais e romanceados. A parceria inusitada dos dois é o grande insight de sarcasmo trazido por Allen, que zomba dos grandes artistas e, por conseguinte, de si mesmo. Não é a primeira vez que o diretor aborda o assunto: em Interiores (Interiors, 1978), Renata (Diane Keaton) se questionava sobre a relevância de seu trabalho como escritora, bem como sobre a pregnância de sua obra literária. Contudo, o caso de David é pontuado pela comicidade, o que não deixa de oferecer um percurso reflexivo sobre quem escreve, sejam livros, sejam peças. Ele, um ser fleumático e embaraçado, vê-se diante de um parceiro que, sob a aridez de sentimentos que sua profissão exige, mantém um oásis de sensibilidade. Então, surge a dúvida: até onde um artista como David faz falta ao público?

Não se pode deixar de mencionar o ótimo trabalho de Cusack diante das câmeras. Pela segunda vez, ele foi recrutado por Allen para reunir parte das agruras que permeiam sua filmografia em forma de personagem, como já havia acontecido em Neblina e sombras (Shadows and fog, 1991). Raramente se viu o ator em um desempenho tão inspirado e, por que não dizer, brilhante. O retrato do desespero, da confusão e do remorso está ali diante de nós, impresso sob os olhares e os gestos exacerbados mas não caricato de Cusack, revelando o quanto ele foi uma feliz escolha do diretor que, apesar de ter um certo clube de atores diletos, quase nunca repete parcerias fora desse eixo. Aliás, a direção de atores de Allen não costuma decepcionar, o que faz dele um dos grandes também nesse sentido. O que dizer do esplendor da interpretação de Wiest, merecidamente premiada com o Oscar de coadjuvante? Ela está puro charme como uma atriz de franco talento cuja queda para tipos complicados encontra espaço na atração que causa em David. Tilly é outra que se sai maravilhosamente bem, compondo uma aspirante a diva em um timbre esganiçado adoravelmente enervante, a quem se odeia deliciosamente. Como ela, no quesito tom de voz acutíssimo veio logo em seguida a Linda Ash de Poderosa Afrodite (Mighty Aphrodite, 1995).

Toda essa trama inteligente e sarcástica ainda está envolta na atmosfera algo idílica da década de 20, o que possibilita uma fotografia esplêndida cujo responsável é Carlo Di Palma, velho colaborador de Allen, com quem trabalhou consecutivamente de Simplesmente Alice (Alice, 1990) a Desconstruindo Harry (Deconstructing Harry, 1997), para nunca mais retomar a parceria e morrer em 2004. Com efeito, nota-se uma cuidadosa composição de planos e figurinos deslumbrantes, evidenciando que o visual também faz parte das preocupações do realizador. Sem falar que toda a ação transcorre na sua amada Nova York, cuja roupagem à moda antiga redobra o seu charme. Até hoje, o filme permanece como a última de suas colaborações com Wiest, uma atriz que cai tão bem em seus filmes – particularmente, torço para que esse jejum entre os dois ainda se que quebre. Valeria a pena tê-los juntos ao menos mais uma vez, pois que , juntos, eles já nos trouxeram também, por exemplo, o cinicamente terno Hannah e suas irmãs (Hannah and her sisters, 1984). Para além dos elementos da narrativa levemente citados aqui, Tiros na Broadway ainda reserva ótimas soluções dramáticas até o seu epílogo, resultando em uma obra de deliciosos comentários sarcásticos e satíricos.