29 de dez. de 2010

“O amor é cego”, uma comédia com leveza, diversão e graça

A alquimia perfeita entre um bom texto e boas atuações em uma comédia não é tão simples de acontecer como querem nos fazer acreditar os estúdios hollywoodianos. Por isso, um olhar que dê conta de enxergar sem refrações o talento de diretores para a condução de uma trama cômica deve ser assaz meticuloso. Não por acaso, O amor é cego (Shallow Hal, 2001) é desses filmes que conquistam o público por serem baseados numa despretensão admirável, ainda que se calque em uma mensagem construtiva em seu subtexto.

O filme nos traz Jack Black na pele de Hal, um homem comum e com muitos quilos a mais, que não abre mão de uma bela aparência quando se trata de um relacionamento com o sexo feminino. Essa obsessão por uma fina estampa leva-o a observar com máxima cautela cada detalhe minúsculo da anatomia das mulheres que cruzam seu caminho. E seu melhor amigo não o ajuda nem o pouco a se livrar dessa busca fútil e frívola. Mas esse é apenas o ponto de partida da divertida comédia dirigida pelos irmãos Bobby e Peter Farrelly, mais do que conhecidos por Quem vai ficar com Mary? (There's Something About Mary, 1998). Até hoje a dupla é creditada por esse trabalho, mesmo já tendo feito tantos outros posteriores.
Retornando a O amor é cego, o filme ganha muitos pontos a seu favor quando sua trama começa a se desenvolver: Hal fica preso acidentalmente em um elevador com Tony Robbins (Anthony Robbins), um simpático guru de autoajuda. Ele fica impressionado com a visão reducionista que Hal apresenta sobre as mulheres, e decide aproveitar a ocasião para dar uma pequena ajuda ao seu novo amigo. Durante uma sessão de hipnose, Tony faz com que Hal passe a se importar somente com a beleza interior das mulheres que ele vir dali para frente. O expediente usado pelo guru dá certo, como logo o espectador descobre.

Logo que sai do lugar em que estava com Tony, Hal esbarra em uma mulher monumental, que atrai seu olhar instataneamente. Mal sabe ele que está diante de uma representante do time das feias, e o público também só fica sabendo disso pelo olhar de estranhamento do motorista do táxi que eles dividem quando Hal começa a cortejar a moça. O interessante aqui é perceber que todas as mulheres que vão surgindo na vida do protagonista são vistas pelo público filtradas pelo seu olhar, aparecendo, inicialmente, lindas, para depois serem vistas como realmente são. O melhor amigo de Hal logo nota que ele está muito estranho, pois tem se interessado pelas mulheres mais horrorosas possíveis. E Hal acaba se apaixonando por uma delas: a frágil Rose. A personagem é interpretada por Gwyneth Paltrow, atriz que coleciona detratores, mas que é ótima no que faz. A maioria das pessoas tem bastante má vontade com o seu trabalho, mas não custa nada dar uma chance para ela.
É isso que Hal faz. Ele se encanta pela beleza de Rose – que só existe na sua cabeça – e faz de tudo para iniciar um romance com ela. Uma vez tendo conseguido, o casal nada convencional vai viver situações hilárias. E essas situações colocadas na tela pelos irmãos Farrelly vêm com uma boa dose de
lirismo, ainda que apenas no subtexto. A dupla de cineastas ainda é constantemente associada à escatologia de Quem vai ficar com Mary?, mas em O amor é cego ela está ausente, havendo espaço para diálogos ágeis e divertidos que colocam em xeque o juízo de valor exagerado que todos damos às aparências nos dias atuais. A figura de Hal é bastante resumitiva dessa postura paranoica que muitos adotaram, e desperta graça também, em parte, por um sentimento de identificação do espectador. É o efeito especular do cinema sendo observável até mesmo em uma comédia, que parte do público cinéfilo pode desconsiderar, numa mentalidade aristotélica ao extremo (para que fique bem claro, na Poética, sua obra mais importante, Aristóteles inventariou as particularidades da comédia e da tragédia, e seu apreço tendia ligeiramente para a composição trágica).
Em suma, o que garante o interesse por O amor é cego é o tom piadístico que corre solto pelas veias do longa, fazendo o público embarcar sem reservas em uma história simples, com final edificante, bem ao estilo de Hollywood, que também pode ser tudo o que queremos ver e ouvir em determinado momento. Não há nada de mal em relaxar a mente e conferir um filme despretensioso e comum. Mas esse aqui ainda leva o mérito de conduzir sutilmente a uma reflexão, a qual vem revestida de um ar risório, e se deposita nas mentes dos espectadores com facilidade muito maior.

8 de dez. de 2010

“Horas de verão” e a árdua tarefa de dar um fim às coisas

Carregado de referências ao universo da arte, Horas de verão (2008) é um filme para ser sentido em sua plenitude. Dirigido por Olivier Assayas (de Clean e Traição em Hong Kong), o longa é centrado numa história como a de tantos outros: a de uma família reunida para lavagem eventual de roupa suja. O motivo da reunião também não é inovador: o aniversário de 75 anos da matriarca, Hélène, vivida com propriedade por Edith Scob. Ali, três irmãos que vivem em lugares diferentes do globo irão se reencontrar, para celebrar essa data tão emblemática.

Frédéric (Charles Bering) é o mais velho dos irmãos. Ele é um economista que trabalha como professor universitário, e o único que continua vivendo em Paris. Seu temperamento é prático, em parte um reflexo claro de sua formação em uma ciência exata. Como mais velho, tem reclamada para si a posição de timoneiro do barco que conduz os irmãos, mas não parece demonstrar muita inclinação para essa função. Adrienne (Juliette Binoche) é a irmã do meio, e a única mulher. Ela vive em Nova York há alguns anos, onde desenvolveu uma sólida carreira como designer. É cheia de vida e não tem grande apego ao comportamento tradicionalista da mãe. Sua personalidade solar se delineia, entre outras coisas, por seus cabelos louros e sedosos. Jérémie (Jérémie Renier), o caçula, por sua vez, é um empresário jovem que foi morar na China, e que está perfeitamente estabelecido e satisfeito com a fase da vida em que se encontra. Apesar de ter pouca idade, ele exibe convicção e maturidade para lidar com suas escolhas.
O grande acontecimento da vida dos irmãos, porém, dá-se logo depois da festa de aniversário da mãe. Eles passam dois dias na casa de campo da família para celebrar o aniversário de Hélène, e vão embora de volta para suas rotinas. Mas, subitamente, a matriarca morre, obrigando Adrienne e Jérémie a viajarem de novo para Paris, com a finalidade de enterrar a mãe e cuidar de questões de ordem burocrática, como a partilha dos bens deixados por ela. Hélène era uma grande colecionadora da obra de Paul Berthier, um pintor pouco conhecido fora do contexto de especialistas em arte. A questão que justifica a presença dos irmãos ali é: o que fazer com tantos quadros e pequenas esculturas que foram deixadas pela mãe deles? Nenhum dos três parece muito interessados em se apropriar da obra.Horas de verão (L’heure d’étè, no original) transcorre, então, num ritmo semelhante ao do trabalho de um artista paciente. O filme está debruçado exatamente sobre a dúvida dos três irmãos em lidar com o que, para eles, parece um amontoado de quinquilharias. A lavagem de roupa suja, de que se falou anteriormente, tinha sido muito suave no reencontro deles no aniversário de Hélène, mas agora passa a ser mais feroz, pois cada um empurra para o outro a tarefa de cuidar dos bens da família. Frédéric, pelo fato de morar em Paris, é o mais cotado pelos outros dois irmãos para tomar conta do patrimônio da família, mas ele não se mostra disposto a assumir essa responsabilidade. Adrienne e Jérémie alegam a distância do lugar onde vivem para se eximir da atribuição de dar continuidade à preservação dos bens do clã.

No fundo, a grande preocupação de Assayas é flagrar a importância da memória, que nem sempre é vista positivamente pelo senso comum. Não deveria ser assim. Afinal, a memória é o receptáculo de fatos, pessoas, cores, texturas e sensações, que tornam a visão da realidade de cada indivíduo absolutamente singular. A atmosfera de recordação é assinalada por uma fotografia apaixonante, assinada pelo francês Eric Gautier. Ele é o responsável pelo ótimo trabalho em filmes como Irmãos (Son frère, 2004), Reis e rainha (Rois et reine, 2005), no cenário francês, e também é requisitado para cuidar do visual de filmes de Hollywood, como Santos e demônios (A guide to recognizing your saints, 2006) e Na natureza selvagem (Into the wild, 2007). Gautier também já havia trabalhado antes com Assayas, quando assumiu a fotografia de Clean (idem, 2003). A repetição da perceria permite que o entrosamento entre o diretor e o fotógrafo seja ainda mais produtiva, já que um está familiarizado com o estilo do outro. E a grande qualidade de Horas de verão é exatamente a fotografia criteriosa de Gautier, que confere naturalidade às interpretações dos atores, bem como transmite a sensação de que os espaços frequentados pelos personagens ao longo da história.
Em seus 103 minutos de duração, esse é um filme simples, sobre coisas banais e, ao mesmo tempo, fundamentais. Assayas analisa com certa despretensão o peso que as recordações têm na vida de cada um, e como é possível edulcorar acontecimentos unicamente com o dispositivo da memória. A câmera atenta do diretor percorre ambientes com um olhar perscrutador, como quem procura com afinco vestígios de tempos transcorridos, na esperança de notar aquilo que foi um dia e que, pelo passar dos anos, deixou de ser. Aliada a essa notória disposição para flagrar traços, o realizador conta com um elenco bastante coeso, que colabora para retratar uma relação de irmandade bastante próxima do real. Adrienne, Frédéric e Jérémie são perfeitamente palpáveis, passíveis de serem conhecidos em um mundo verdadeiro. A atriz mais uma vez entrega um desempenho espetacular, uma característica de seu trabalho no cinema. Na pele de Adrienne, sua atuação é minimalista, centrada nas nuances de personalidade da artista plástica que não abre mão de seguir levando sua vida hedonista. Binoche transita muito bem entre o francês e o inglês, o que só reforça sua habilidade em se superar e criar tipos bem distintos entre si. Recentemente, Gérard Dépardieu comentou que não sabe o que as pessoas veem nela para considerarem-na uma ótima atriz. Talvez tenha sido certa dor de cotovelo do ator, que não tem tido a sorte de obter bons papéis no cinema ultimamente. É fato que Dépardieu não sabia o que estava dizendo sobre a atriz.
Jérémie Rénier é outro que se sai muito bem vivendo um personagem que é seu homônimo. O ator é seguro em sua interpretação, e atrai a atenção do público como um jovem adulto para quem toda a parafernália conservada pela mãe ao longo de décadas não tem grande relevância. A ele interessa muito mais seguir galgando degraus em sua carreira como empresário que viver preocupado com a manutenção de peças de arte. Como o mais novo dos irmãos, ele é a evidência mais clara do conflito de gerações que se instaura na família. Renier tem uma carreira com ótimos títulos, e já trabalhou com nomes importantes do cinema francês. Por três vezes, atuou em um filme de Jean-Pierre e Luc Dardenne: A promessa (La promesse, 1996), A criança (L’enfant, 2005) e O silêncio de Lorna (Le silence de Lorna, 2008), além de ter estado em Amantes criminais (Les amants criminels, 1999), de François Ozon e de ter trabalhado com Joachim Lafosse em Propriedade privada (Nue proprieté, 2006).
Em nome de uma observação cautelosa do universo particular de uma família, Assayas acaba por estender suas impressões para um macrocosmos, já que a situação vivida por aqueles membros se estende para a França em geral, funcionando como metáfora para o flagrante cuidado que a sociedade francesa tem com relação ao antigo. O país, como berço de uma série de manifestações artísticas que é, faz frente a um desapego às representações concretas da memória. Como foram morar em outros países, Adrienne e Jérémie se “desnacionalizaram”, e perderam o gosto por salvaguardar o que há de mais precioso na obra do tio-bisavô. Em seus minutos finais, Horas de verão oferece uma bela visão panorâmica da casa onde a família passou vários finais de semana, depois de ser mostrada uma sequência em um museu que evoca Arca russa (Russkiy Kovcheg, 2002), e clarifica ainda mais qual é a sua vocação: apresentar a passagem do tempo comprovada em objetos, pessoas e lugares. O tempo que não retrocede, só avança. O tempo sorrateiro.

7 de dez. de 2010

O baú de mil aventuras de “Ponyo – Uma amizade que veio do mar”


O realizador japonês Hayao Miyazaki tem um apreço bastante notável pelo público infantil. Isso se nota pela sua constante dedicação em fazer obras voltadas para as crianças, que compõem uma filmografia numerosa, da qual constam títulos como O castelo de Cagliostro (Rupan sansei: Kariosutoro no shiro, 1979), Meu amigo Totoro (Tonari no Totoro, 1988) e A viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no kamikakushi, 2001), sendo este último o mais conhecido das plateias ocidentais, que chegou a levar o Oscar de melhor animação em 2002. Um aspecto que aproxima as suas obras, e lhes dá continuidade, é a resistência do diretor em empregar a animação de filmes como os da Disney. Ele prefere desenhar cada cena à mão, o que resulta em filmes altamente deslumbrantes, em que o visual conta tanto quanto a narrativa apresentada.
Em Ponyo – Uma amizade que veio do mar (Gake no ue no Ponyo, 2008), seu filme mais recente, essas peculiaridades logo ficam evidentes. O desenho nos conta a história de Sosuke, um garotinho de 5 anos que mora muito próximo de um penhasco, na companhia de sua mãe, a quem ora chama pelo nome, ora chama pelo grau de parentesco, deixando uma certa dúvida inicial sobre qual seja a relação entre eles. Sosuke também tem um pai, que quase nunca está presente por sua condição de marinheiro. De vez em quando, ele passa pelo mar próximo à casa da família, e deixa o filho eufórico com a possilidade de comunicação com ele. Sosuke é uam criança normal, nem mais nem menos inteligente do que outras da sua idade, o que torna o pequeno protagonista do filme um personagem totalmente plausível, diferente dos meninos prodígios retratados em animações estadunidenses, que parecem capazes até de resolver cálculos estequiométricos.

A vida do menino ganha contornos de aventura pela primeira vez quando ele encontra um peixinho dourado na praia perto de sua casa. Ele gosta tanto do animalzinho que decide levá-lo para casa, dentro de um balde com o qual estava brincando por ali. Sua mãe não vê problema algum na atitude do filho, e a afeição de Sosuke pelo peixinho só faz crescer. O garoto acaba descobrindo que aquela simpática fêmea de peixe dourado gosta muito de presunto, e passa a alimentá-la com o embutido. Passa também a chamá-la de Ponyo, e está formada a grande amizade entre os personagens, que confere um tom de fábula muito agradável à história.
Porém, o que Sosuke não sabe é que Ponyo é filha de um feiticeiro que vive nas profundezas das águas, e que não suporta a ideia de que ela tenha contato com seres humanos, a quem considera vis e ardilosos. Inicialmente, o personagem aparece retratado como um vilão, mas, no fundo, ele é a representação de pais excessiavemente zelosos e austeros, que sufocam seus filhos com as tentativas de obliteração de suas escolhas e de desenvolvimento de suas naturezas. É exatamente essa característica que se acentua na personalidade do pai de Ponyo. A amizade dela com Sosuke faz nascer no peixinho um desejo de se tornar humana também, e, graças aos poderes mágicos que possui, ela faz nascer braços e pernas em seu corpo, e acaba conseguindo o que quer : ser uma menina.

O interessante no filme é que sua história é contada através de uma abordagem muito inocente, isenta da malícia subscrita que permeia boa parte dos filmes infantis hollywoodianos. Claro que esse aspecto não é um defeito que fere de morte as boas intenções dos estúdios dos EUA : é ótimo acompanhar tramas que favorecem a agilidade dos diálogos e que contêm um punhado de referências ao universo adulto. Mas também é prazeroso assistir a uma trama que se despoja de todos os artefatos da sagacidade em favor de uma pureza que aparenta estar circunscrita a tempos perdidos.
E Ponyo – Uma amizade que veio do mar faz exatamente isso. Não há como não acreditar na ingenuidade dos protagonistas, que conquistam a plateia infantil, mas que também podem agradar os adultos.Um outro aspecto que salta aos olhos no filme é a qualidade das imagens. Elas são resultado do trabalho quase artesanal de Miyazaki, que pintou as telas uma a uma para depois transformá-las em imagens em movimento. Com isso, as cenas são um verdadeiro primor para os olhos mais sensíveis, e dá vontade de ter em mãos cada fotograma que aparece. Voltando à narrativa, há outros elementos que chamam a atenção em seu desenrolar. Depois que Ponyo se transforma em uma menina, estranhos fatos começam a suceder. No caminho de volta para casa depois de mais um dia de estudos para Sosuke e de trabalho para sua mãe, que é funcionária de um asilo, eles enfrentam uma forte tempestade. Na verdade, aquele fenômeno meteorológico é fruto de um desequilíbrio ecológico causado pela mudança da natureza de Ponyo. Seu pai tenta reverter a situação de todo jeito, e até consegue, por um tempo, que a menina volte a ser peixe. Mas a rebeldia de Ponyo fala muito mais alto, e ela consegue tornar a ser menina para poder brincar com seu amigo.
No geral, Ponyo – Uma amizade que veio do mar é um desenho animado feito para um público que aprecia história simples, e que falam ao coração justamente por sua simplicidade. Miyazaki abre mão de uma trama mirabolante, preferindo se concentrar na composição dramática dos personagens de forma consistente. Isso faz que a “interpretação” dos “atores” seja o mais real possível, tornando o filme um exemplar naturalista entre as animações, por assim dizer. O cineasta oferece, com seu filme, uma prova do quanto é um herói da resistência no tocante a toda forma de estroboscopia.

2 de dez. de 2010

"Luz silenciosa", uma história de autonegação com delicados contornos

O mexicano Carlos Reygadas é o responsável por trazer ao público Luz silenciosa. Ainda pouco conhecido em solo brasileiro, o diretor não está debutando no celuloide com esse filme. Na verdade, esse é o terceiro de sua filmografia, que se iniciou com Japón (2002). Depois veio Batalha no céu (2005), e então Reygadas dirigiu seu mais recente filme já lançado. Por sua abordagem de temas em que, a maior parte do tempo, prescinde das palavras, o diretor divide opiniões, e exige uma certa capacidade de concetração do espectador que decide acompanhar um filme seu.

Em Luz silenciosa (Stellet licht, 2007), as lentes de Reygadas estão sobre Johan (Cornelio Wall), um homem simples que habita uma comunidade de imigrantes europeus em pleno México, nos dias atuais. Ele é um menonita, ou seja, um membro de uma religião que preconiza a rejeição total ao
progresso. Tudo aquilo que representa avanço tecnológico é repelido pelos menonitas, que cultivam uma vida que parece estar inserida em uma épca distante. E é exatamente essa a primeira impressão que se tem ao conhecer o lugar onde o protagonista vive : um ambiente bucólico, onde a paz parece inabalável, e em que cada habitante mantém seu semblante resignado em tudo que faz. Mas a comunidade de Johan já se mostra mais flexível, aceitando o uso do telefone e até do carro. A língua falada pelos moradores da região também é um diferencial : eles se comunicam em um dialeto alemão, que é quase ininteligível para quem não tem qualquer conhecimento do idioma
standard. Naquele cenário em que a vida parece demorar muito mais para passar, os conflitos internos de Johan serão o motor da narrativa, na qual a passagem do tempo, em sua liquidez, transformará o cotidiano dos personagens.
A qualidade da fotografia de Luz silenciosa merece um parágrafo parentético. Com um visual arrebatador, o filme começa com a contemplação de um amanhecer praticamente em tempo real. Reygadas posicionou a câmera para um campo aberto, com algumas poucas árvores, mais especificamente para o seu horizonte, e flagrou os efeitos deslumbrantes da luz do céu sobre a paisagem da terra. Apenas com o uso desse recurso, o realizador já encaminha seu público para a percepção de que este é um filme bastante sinestésico, que exige que seja sentido, e não apenas observado. Esse mesmo mecanismo é empregado no final do filme, só que de modo inverso : é o anoitecer, lento e lacerador, que é focalizado pacientemente dessa vez. Entre o surgir e o desaparecer da luz, entretanto, vários pequenos acontecimentos vão se dando diante dos olhos do espectador, e todos eles são atravessados pela luz impactante da fotografia, cuja referência está inclusive nos títulos original e em português do longa-metragem.

Nada de surpreendente acontece na vida de Johan, a não ser a paixão que ele passa a sentir e nutrir por uma mulher de sua comunidade, mesmo sendo casado. Esse sentimento, que se aloja em seu peito inevitavelmente, como parece demonstrar a construção do personagem, trará consequências dramáticas para a sua vida. Como menonita, o desenvolvimento de uma paixão por uma mulher que não seja a sua esposa deixa-o profundamente perturbado, levando-o a tentativas inúteis de execrar qualquer manifestação dessa vontade de sua carne. Aqui, cabe destacar que o interesse de Carlos Reygadas pela questão religiosa volta a ser demonstrado, pelo que ele aborda o aspecto pela segunda vez – já havia feito isso em Batalha no céu, exibido no Festival do Rio de 2005. O impedimento moral e religioso vão refrear o tempo todo o desejo de Johan. Ou quase o tempo todo, já que, em dado momento da trama, toda a volúpia concentrada nele vem à tona. Uma volúpia um tanto contida, todavia, já que a cena de sexo entre o personagem e sua amante é filmada com comedimento e se tranforma em uma sequência quase asséptica, por assim dizer.
Um dado curioso a respeito do filme é que seu ator principal, Cornelio Wall, é um menonita de verdade. Isso decerto ajuda na construção de seu personagem, e dilui, em alguma instância, a fronteira entre realidade e filmagem, tornando-as quase limítrofes. Depois de rodar o filme como Johan, Wall declarou que é estranho se ver retratado em um filme, uma afirmativa que corrobora a defesa do cinema como uma excelente fonte especular, em que a identificação pode ser narcísica ou de baixa autoestima. Como protagonista, o personagem é um homem reservado, que abre mão de muitas palavras para dialogar com as pessoas ao seu redor, preferindo conversas ligeiras e muito resignadas.
A maneira com que Reygadas encaminha sua narrativa de Luz silenciosa torna o filme um parente próximo de uma obra produzida no hemisfério oriental : Amor à flor da pele (2000). Em ambos os filmes é notável o apreço dos realizadores por flagrar a passagem do tempo, demonstrada com um enredo que se prende mais no correr das horas e dos dias do que propriamente nas angústias existenciais do personagem. Os filmes se reclamam por conta de sua porção de retrato de amores sublimados, que sucumbem a impedimentos de ordem superior àquela a qual os amantes estão submetidos. É uma tarefa difícil essa que foi empreendida pelos diretores, pois o tempo, em sua natureza intangível, não se deixa capturar. O que surge na tela são seus efeitos, que podem ser benéficos ou devastadores.
O sofrimento que permeia a caminhada de Johan já está presente desde o início do filme. Em uma das primeiras cenas, que mostra a refeição da família do protagonista, observa-se a agonia discreta do personagem, da qual sua esposa tem pleno conhecimento, levando-a a oferecer toda a sua solidariedade ao marido, que não sabe o que fazer para lidar melhor com aquele sentimento. Depois que as crianças se vão, para mais um dia de estudos, ele desata a chorar copiosamente. Johan contou à esposa o que estava se passando em seu coração desde que a paixão começou a tomar forma, e a sua maior busca é por mantar a racionalidade diante desse sentimento, o que logo se mostra complicado para o personagem.
Reygadas não se esforça para contagiar o seu público com aquele drama, mas o seu caráter universal é a grande contribuição para que ele sirva como um reflexo para a plateia. Não é tão difícil imaginar como se sente uma pessoa que se sente dividida entre a vida de casado, com todos os ônus e bônus que ela traz, e a paixão persistente por uma outra mulher, à qual o protagonista parece estar fadado. Toda a história desse sofrimento contido é narrada em um ritmo lento, como já foi dito, mas nunca claudicante. A trajetória de Johan é permeada por alguns momentos marcadamente carregados de simbolismos, como a cena do banho com os filhos, em que seu pudor em manter a verdade oculta para eles se concretiza no cuidado com que ele lava as costas da filha. Aquele zelo pode ser lido como uma preocupação em manter as crianças “limpas” da verdade “suja” que ele carrega, e a cena ocupa um bom tempo na tela. Quando Luz silenciosa chega ao seu final, com o já comentado anoitecer flagrado quase em sua completude, o sentimento que mais define o estado do espectador é um só: desalento.