27 de jan. de 2012

O cavalo de Turim e os quadros estáticos do marasmo


Talvez seja um tanto impróprio restringir o que Béla Tarr faz ao rótulo de filme. O termo soa impreciso diante de suas obras portentosas, que impactam pelo peso do silêncio que as recobre, assim como acontece em O cavalo de Turim (A torinói ló, 2011). Mais do que um filme, aqui se tem uma intensa e profunda meditação sobre o tédio, a desesperança e o desalento em forma de quadros estáticos que remetem a pinturas e fotografias. E essa meditação é um grande exercício de paciência, uma qualidade que boa parte das plateias contemporâneas perdeu ou mantém escondidas sabe se lá onde. Quem vencer a resistência a obras de lentidão lancinante será confrontado com uma família em estado de suspensão e descrença no que será o amanhã. A base para esse olhar dolorido do diretor húngaro é um episódio real envolvendo Friedrich Nietzsche, que teria defendido um cavalo de maus tratos quando vivia na cidade italiana que está presente no título do filme.

Essa tal defesa teria se dado quando o filósofo já não se encontrava mais pleno de suas faculdades mentais, e, provavelmente em decorrência do fato, ele disse apenas algumas palavras desconexas e, em seguida, emudeceu até a morte. Tarr decidiu investigar o que teria acontecido ao cavalo dirigindo esse filme, e trouxe a existência mais um petardo dramático que incomoda e entontece pelas repetições dos acontecimentos. Não é mera força de expressão quando se comenta que quase nada acontece em O cavalo de Turim. Verdadeiramente, são pouquíssimas as ações que transcorrem na história, sublinhando que a proposta do realizador é investir na contemplação. Assim, como um nativo de um país europeu que está mais para o hemisfério oriental, ele hipnotiza a plateia. A propósito, lembremo-nos de que a palavra “hipnotizar” deve sua origem à mitologia grega, por fazer referência a Hipnos, o deus do sono na tradição clássica daquele país. É exatamente essa a sensação que se tem diante do filme: a de que estamos em um sono pesado, do qual não podemos sair facilmente.

E essa constatação, diferentemente do que pode levar a crer, coroa O cavalo de Turim de um força e uma qualidade cuja descrição por quaisquer palavras se revela sempre insuficiente. Palavras são, antes de mais nada, maneiras que se têm para expressar e designar ideias, sentimentos e tantos outros elementos (o termo mais hiperonímico que me surgiu além de “coisa”), mas elas são quase sempre apenas tentativas. Mais do que um ponto de vista, essa é uma verdade que existe por si só, concordando-se ou não com ela. Ciente disso, Tarr praticamente abdica delas para se concentrar nos passos, nos olhares e nas respirações de Ohlsdorfer (János Derszi) e sua filha (Erika Bók). A quase ausência de diálogo entre os dois é angustiante. O espectador deseja ouvir palavras de um lançadas ao outro, mas elas vêm pouquíssimas vezes, amplificando o desespero silencioso que vivem e viemos também. Um desespero que se alastra por 146 minutos de mescla de poema visual com canto de resignação. Aqueles dois têm apenas um ao outro. E ao cavalo. O cavalo tem apenas àqueles dois. E nada mais. A fria paisagem castigada por um inverno severo forma também o inverno daquelas almas.



O cavalo de Turim foi exibido no Festival de Berlim de 2011 e deixou boa parte do público e da crítica apopléticos. A exemplo de outros de seus trabalhos, os planos duram muito tempo. Especificamente aqui, são 30 planos que se distribuem nas mais de 2 horas de filme, e contribuem decisivamente para deixar o espectador atônito. Em Palm Springs, onde também foi exibido, o filme saiu vencedor do prêmio de melhor filme, uma escolha, no mínimo, interessante. Para não dizer corajosa. Pelos temas que aborda e pela característica com a qual fala deles, uma sessão sua pode ser daquelas que começa cheia e se vai esvaziando ou que já em seu início é vazia. Para quem não foge ao confronto com seu próprio interior, todavia, o filme exerce uma grande força centrípeta, impregnando a cabeça por horas a fio depois de seu final. O início, por sua vez, chega a apresentar uma narração em off que seria a contextualização dos acontecimentos que se seguem a ela, mas essa voz se cala pelo resto da projeção, e então teremos apenas uma ou outra fala de dois dos três personagens principais: o pai, a filha e o cavalo.

Muitos podem acusar Tarr de excessivamente hermético. De certa forma, a acusação soa legítima, mas não é imprescindível atribuir um significado objetivo à obra para que ela valha a pena. A exegese do marasmo e da lenta agonia feita pelo diretor vai além de definições pré-estabelecidas. Ao filme, basta o seu usufruto. Mas é possível ir além disso e ir ao encontro (ou ir de encontro, se a ideia for de choque) com o estudo diligente das nossas mazelas interiores. Discreto, o direto sentencia através de seus personagens que a impiedade dos homens está deteriorando o mundo, e isso se traduz mais claramente, ainda que também com certos simbolismos e metáforas sutis, na figura de um homem que se atreve a emitir vaticínios sobre a proximidade do fim dos tempos. As suas falas emulam a concepção de que existe um castigo eterno iminente, queiramos nós ou não, fato do qual o velho dono do cavalo discorda silenciosa e veementemente. Sua filha, totalmente resignada, limita-se a preparar batatas cozidas para ambos comerem. É tudo que lhes resta. “Comamos o que ainda temos e então morramos”, é o que parece ressoar da garganta semifechada da jovem. Sem perspectivas, eles nada mais fazem além de viver um dia após o outro, e se entregar ao destino, ao fado, à sorte, seja lá o nome que se queira dar ao que lhes sobrevém. O cavalo, por sua vez, adoece dia após dia e, em sua condição simbólica dentro do filme (rótulo limitador usado aqui novamente por força de expressão), sintetiza a imprecisão da vida e dos próximos acontecimentos que ela pode trazer.

24 de jan. de 2012

Possibilidades e incertezas na aridez em Estranhos no paraíso


Estranhos no paraíso (Stranger than paradise, 1984) é apenas o segundo trabalho de Jim Jarmusch na direção. Lá se vão quase trinta anos desde o lançamento filme, e ele já apresentou vários outros exemplares de sua maneira muito peculiar – sem eufemismo – de observar as pessoas e o mundo à sua volta. Entretanto, nesse segundo trabalho suas marcas ainda se apresentam em estado seminal, configurando o que mais tarde viria a ser entendido e conhecido como o seu modus operandi, por assim dizer. Antes de mais nada, ele prefere investir na ausência de cores para se concentrar em sua paródia sensacional ao manjado American way of life. Para isso, criou três atos protagonizados por personagens cujas condutas bizarras vão demarcar suas atitudes, bem como a falta delas. Cada um desses atos recebeu um nome, que condiz com o trecho da história que apresenta. E são eles que apontam para as escolhas de um diretor que toca em certas feridas quando menos se espera e do modo que menos se pressupunha.

Em linhas gerais, eis a sinopse do filme: Béla (John Lurie), um húngaro que vive em Nova York e se recusa a ser chamado pelo próprio nome, recebe a visita de sua prima Eva (Eszter Balint), a qual vai passar alguns dias na sua casa e com quem ele não se dá muito bem depois da receptividade inicial. Posteriormente, eles vão visitar tia Lotte (Cecillia Stark), e Eva se cansa de morar com o primo, ficando na casa da tia em Cleveland. Enfim, Béla, chamado Willie, e seu amigo Eddie (Richard Edson) voltam a Cleveland para buscar Eva, e o trio empreende uma viagem à ensolarada Flórida. Cada um dos trechos comentados está inserido em um dos atos do filme, e responde pelo seu brilhantismo. Acima de tudo, Jarmusch faz um estudo do tédio, sentimento do qual parece não haver escapatória, e dialoga diretamente com um longa que lhe é contemporâneo, o portentoso O estado das coisas (Der Stand der Dinge, 1982). Ambos se comunicam por causa da inclinação para retratar personagens e situações estagnadas, e as consequência nem sempre (des)agradáveis da falta ou da ilusão de movimento. Entretanto, a abordagem de Jarmusch é muito mais minimalista que a de Wenders, que ainda pincela metalinguagem em seu trabalho.

Não tardou para que, depois de Estranhos no paraíso, o cineasta fosse apontado como um dos grandes expoentes do cinema indie (abreviação no diminutivo para independente, vale dizer) estadunidense. A etiqueta lhe cai bem e, paradoxalmente – é uma etiqueta, afinal – confere grande liberdade ao seu trabalho, sempre muito criativo. Antes desse, ele havia dirigido o semidesconhecido Permanent vacation (idem, 1980). No caso do filme em análise, fica claro o seu talento para enxergar tipos curiosos na selva urbana e lançar sobre eles um olhar perscrutador e cativante. Estranhos no paraíso é daqueles filmes que extraem poesia das situações mais ordinárias, seja causando comoção, seja despertando incômodo no sentimento de inércia. Os três personagens principais alcançam o espectador à medida que vão se tornando conhecidos, sem que, contudo, sejam completamente desnudados. Há sempre algo a descobrir a respeito de Willie, Eva e Eddie, e esse é um dos sustentáculos do interesse pelo filme, um termo que chega a soar curioso diante de uma história permeada pelo tédio. No fundo, Jarmusch pode ser incluído naquele grupo de diretores que elegeu seu(s) tema(s) favorito(s) e está sempre em busca de novas leituras para ele(s), sem esgotá-las a cada novo enredo.



O sentimento aterrador da modernidade que assola os personagens é o grande catalisador de seus deslocamentos, que reafirmam o tempo todo a condição de andejos em que eles se encontram. É como se, através do nomadismo, eles tivessem a chance de romper com a monotonia. Entretanto, o que realmente os faz menos entediados são as viagens em si, e não as chegadas ou as partidas. Uma vez instalados em determinado lugar, eles vão sendo corroídos novamente pela tal monotonia, e precisam sair de cena para caminhar rumo a outros recantos. É assim que todos eles migram pelo menos uma vez, e vão descobrindo que o ar de novidade só existe quando se está na estrada, perfeitamente metaforizável como a vida e seus inúmeros caminhos. E Jarmusch aponta suas lentes para incomunicabilidade, possivelmente o mal do século em que vivemos. Esse mal é perceptível nos diálogos esparsos e banais de Willie, Eva e Eddie, que, por vezes, teorizam sobre as vicissitudes da vida ou sobre eventos corriqueiros como uma aposta em cavalos.

Os planos-sequência de Estranhos no paraíso são um espetáculo à parte. Cada cena compreende um plano, e, toda vez que é preciso mudar de cena, também se muda de plano, com um ligeiro corte negro entre cada uma. Esse recurso confere a mescla paradoxal (novamente o termo) de estaticidade e movimento ao filme, e simboliza longos intervalos entre os pensamentos de alguém que está imerso na contemplação. Eis uma prova de que Jarmusch, logo em sua primeira produção, triunfa tanto dramatica quando tecnicamente. E, como foi dito anteriormente, há indícios de temas que ele abraçaria novamente em seus filmes seguintes, como Sobre café e cigarros (Coffee and cigarettes, 2003) e Flores partidas (Broken flowers, 2005). O tempo só fez bem ao diretor, que refina sua estética particular e sua relação de inquietude paciente com o cinema como poucos de sua geração. Por mais que a ação seja quase nula em seu primeiro filme, ele nunca se torna sonolento ou desinteressante. Muito pelo contrário: sua atratividade está em sua lentidão, uma característica que, quando bem usada, rende lindas pérolas, como é o caso desse aqui. O realizador nascido em Ohio nos apresenta a conjugação genuína entre poesia e minimalismo, e pontua suas observações algo melancólicas sobre a vida e as pessoas – seu grande foco de atenção – com a extravagância e a verossimilhança de um examinador arguto.

16 de jan. de 2012

Beleza adormecida, o fio de interesse diante do estranhamento

Exibido no Festival de Cannes de 2011, Beleza adormecida (Sleeping beauty, 2011) é um daqueles casos de filmes que caminham pelo ambiente cinematográfico sem grande resplendor. O longa de estreia de Julia Leigh, também escrito por ela com base em seu próprio romance, começa e termina sem que haja um aviso prévio, por assim dizer. Na primeira sequência, Lucy (Emily Browning) está em uma sala alva, passando por um procedimento realizado por um jovem assistente do que logo se percebe ser um hospital. Ali, assepticamente, como cabe à praxe medicinal, ele introduz na garganta da jovem um túbulo que vai até o estômago, com um propósito que não fica muito claro em momento algum. Ela ainda voltarà àquele local outras vezes, bem como passará por outros, tencionando, com esses pequenos trabalhos, obter o seu próprio sustento.



Desde esse início, a passividade excessiva da protagonista incomoda. O que se sabe é que ela tem poucas pessoas com quem contar, e que, por isso, corre atrás de dinheiro, venha de onde vier. Todavia, a sua sanha por ganhar grana é o único índice de obstinação que ela apresenta. No mais, é como se Lucy levasse a vida no piloto automático, contrastando sua ambição financeira com sua total ausência de entusiasmo por qualquer outra atividade. Seu único interlocutor constante é um rapaz com quem ela mantém uma espécie de amizade colorida, interpretado por um ator cujos traços lembram vagamente o grande Bruno Ganz quando era mais jovem. É por causa dessa mescla de necessidade com ambição que ela atende ao anúncio de uma empresa que contrata belas jovens para alegrar distintos clientes em reuniões seriíssimas desfilando em trajes exíguos, e servindo aos seus paladares refinados com garbo e elegância.

Diante da beleza fulgurante de Lucy, a dona do lugar lhe oferece algo mais. Sob o efeito de um chá entorpecente, ela adormece e fica totalmente à disposição de clientes que paguem (caro) para admirar sua linda anatomia – em especial as suas zonas calipígias – mas não é permitido todo tipo de ação – penetrá-la é totalmente vetado. A insolidez do “emprego” não assusta Lucy, que compra a ideia rapidamente, e a aceitação da personagem abre espaço para muitas e muitas cenas de nudez de Emily Browning, diáfana e florescente pelo passar dos anos que separam este papel do que ela interpretou em Desventuras em série (Lemony Snicket's a series of unfortunate events, 2004), quando era ainda era recém-ingressa na puberdade. Se o filme de Julia Leigh flerta o tempo todo com o vazio, é legítimo eleger como a sua razão de ser os closes generosos da câmera na linda personagem.



O tal vazio mencionado no parágrafo anterior é o grande problema que acomete Beleza adormecida. De certa forma, o filme parte do nada e chega a lugar algum, sendo entremeado de cenas com um quê de pitoresco. Ao mesmo tempo que deseja o dinheiro que lhe traga uma posição social de elevação, Lucy é uma garota desmotivada, sem grande brilho. E há algo que torna o filme um tanto irritante no que tange ao tal serviço desenvolvido por ela: a impressão claríssima de que se trata de uma citação a De olhos bem fechados (Eyes ide shut, 1999). Aquele desfile de mulheres com os seios à mostra lembra quase imediatamente as sequências do clube em que Will (Tom Cruise) descobre um mundo de lascívia e grande hipocrisia no filme de Stanley Kubrick. À parte o fator “desejo” envolto nas cenas, a intertextualidade com uma obra tão fraca e permeada de pretensão só depõe a favor de Beleza adormecida. E Lucy é uma personagem rasa, de quem se conhece tão pouco que é praticamente impossível adquirir alguma empatia com ela até o fim da narrativa.

Entretanto, o filme não chega a naufragar: apenas encalha próximo à costa. O insight de interesse despertado (sem trocadilhos) por ele é a decisão de Lucy de colocar uma microcâmera no quarto onde ela dorme enquanto é alvo das investidas dos clientes. A sua curiosidade é compreensível. Durante as horas que passa inconsciente, todo o tipo de movimento em seu corpo é praticado pelos homens que pagam para estar com ela. Esses homens são sempre idosos, de aspecto execrável, como a violar a garota. A descoberta de Lucy sobre o que acontece nessas longas horas de sono gera uma reação desagradável nela, que o espectador pode entender quando chega a essa altura do filme. Essas sequências finais valem mais do que o filme todo, por pontuarem o início de uma interessante discussão sobre a evanescência das riquezas materiais e sobre o alto preço da ganância. No mais, Beleza adormecida é um filme um tanto excêntrico, que suscita um fio de interesse pelo estranhamento.

11 de jan. de 2012

A grandiosidade em todos os sentidos ou apenas Titanic

Comentar a respeito de um filme sobre o qual já disse tantas coisas não é tarefa das mais fáceis. Entretanto, as palavras aqui escritas foram resultado de dedos impelidos pela vontade de manifestar as impressões diante do tal filme. Titanic (idem, 1997) é o grande sucesso da carreira de James Cameron, e méritos não lhe faltam para ocupar tal posto. Dotado de uma grande magnitude, ele é a reconstituição de um episódio lendário da História. Como todos sabem, o navio que dá nome ao longa afundou no longínquo ano de 1912, fazendo centenas de vítimas em sua lenta submersão. Entre os vários passageiros do transatlântico, estavam Jack (Leonardo DiCaprio) e Rose (Kate Winslet), jovens de mundos diferentes cujas trajetórias se aproximaram de tal modo dentro do navio que uma incandescente paixão um pelo outro lhes tomou.



Os desdobramentos dessa paixão consomem boa parte do filme. A história pessoal de cada um revela o chavão da moça rica e do rapaz pobre. Ele só conseguiu embarcar ali por ter ganhado um bilhete em uma aposta. Ela está prometida a um homem pedante (Billy Zane), a quem não ama. A despeito dessas clássicas limitações, o amor floresce para eles, que amam com intensidade. Cameron não economiza nas cenas de amor entre os personagens, o que inclui a clássica imagem dos dois na proa do navio de braços abertos, ao som de My heart will go on, eternizada no timbre mavioso de Celine Dion e devidamente premiada com o Oscar de canção original, uma das 11 categorias em que se consagrou. Felizmente, diga-se de passagem. A tal cena até hoje e lembrada e citada nas mais diversas formas, seja homenagem, seja paródia. O fato é que se trata de uma das passagens mais inesquecíveis emblemáticas da história do cinema.

Uma outra sequência dotada de beleza e sensualidade é a que apresenta a primeira noite de amor entre Rose e Jack. Não há nada de muito explícito nela, mas é uma cena que transpira sensualidade, literal e figuradamente. Vemos apenas as gotas de suor dos parceiros na janela do carro em que eles se entregam ao êxtase erótico, denotando o sentimento de pertencimento de um ou outro naquela hora tão íntima e mágica. A veracidade da cena existe graças aos desempenhos fabulosos de Winslet e DiCaprio, escalações acertadíssimas de Cameron. Ambos viriam a trilhar um longo e belo caminho de êxitos depois de Titanic, mas foi nesse filme que eles despontaram para o grande público e viram, pela primeira vez, seus nomes no topo de uma produção assaz grandiosa.

Aliás, Titanic é cercado de superlativos. Os números altos vão do custo da produção à já comentada quantidade de estatuetas recebidas pelo filme. Por vários meses, ele permaneceu no Top 10 das bilheterias estadunidenses, o que permitiu que arrecadasse altas cifras de espectadores ávidos pela mistura de drama real com história de amor engendrada pelo realizador canadense. A fidelidade na reconstituição do transatlântico, com seus vários cômodos e compartimentos, também é notável. É triste saber de antemão que o destino de quase todos os tripulantes daquela embarcação será fatídico, e sabe-se disso por causa da estrutura em flashback da narrativa que, no presente, traz Gloria Stuart no papel de Rose, chamada para dar o seu relato a respeito da tragédia envolvendo o navio. É assim que somos transportados para a trama magnificente do filme, correto em todos os sentidos, e transbordante de emoção e força. Sem menos esperar, tornamo-nos cúmplices de reféns da paixão do casal protagonista, e aprendemos a rejeitar Hockley, o noivo prometido de Rose.



Também não se pode deixar de mencionar a majestosa fotografia de Titanic. Clicadas por Russell Carpenter, as cenas ganham tonalidades deslumbrantes. O ocaso parece mais brilhante, a lua mais intensa e vivaz, tal qual como enxergam os apaixonados. É com esse olhar que somos guiados, por haver um pouco de Jack e de Rose em cada um de nós. Pieguice? Talvez até seja. Mas é tudo envolto em uma aura irresistível, o que torna o filme praticamente uma unanimidade. Independentemente do fato de ser cinéfilo, há muitos espectadores que amam Titanic, e há muitas razões para isso. Cameron conseguiu acertar em cheio as grandes plateias, criando um filme capaz de sobreviver por muito tempo na memória. São vários instantes estupendos, emocionantes, que revelam a destreza de um diretor que, ao longo de sua carreira, tem privilegiado o discurso grandiloquente e a arquitetura visual imponente. É cinemão mesmo, e dos bons.

A química perfeita de Winslet e DiCaprio, por sua vez, seria reaproveitada onze anos depois por Sam Mendes, então marido da atriz, em Foi apenas um sonho (Revolutionary road, 2008), comprovando que o tempo só fez bem à parceria e ao talento de ambos. Em Titanic, ambos eram muito jovens, com uma longa estrada a ser percorrida, mas já demonstravam clara competência em seus papéis. Ao longo das mais de três horas de duração do filme, ela desfila sua beleza ruiva e ondulada pelos vários espaços do navio, embevecendo tanto a Jack quanto a nós, espectadores. Este marco do cinema de fins da década de 90 é ornado pela presença refulgente de Winslet, que mantém uma brilhante simbiose dramática com DiCaprio, exalando frescor jovem. Por todas essas qualidades apontadas, fica muito difícil imaginar outros intérpretes em seu lugar. Jack e Rose parecem ter sido escritos para eles.

O destino é cruel com o transatlântico, e isso está claro tanto por conta da História como por causa da antecipação do fim que o roteiro do próprio Cameron traz. Portanto, o importante aqui não é saber para que final a trama caminhará, mas sim conhecer os acontecimentos que culminaram com tamanha catástrofe. O interesse por Titanic resulta em seu percurso, e não em ponto de chegada. Até que o fim chegue, conhecemos duas realidades distintas convivendo nos vários pavimentos do navio, uma espécie de microcosmos da sociedade do seu tempo. A ostentação dos endinheirados caminhava lado a lado com a privação dos menos favorecidos, que eram uma minoria por ali. Quando as águas invadiram o local, contudo, nada disso importava. A essa altura, aliás, surge outra cena marcante do filme: resignados com a morte iminente, os instrumentistas da orquestra local se limitam a executar uma espécie de marcha fúnebre, musicando aquele momento tão caótico, contra o qual pouco ou nada restava a fazer.

No fundo, Titanic é uma história bastante convencional do início ao fim. Não é difícil prever os desdobramentos do romance trágico de Jack e Rose. Ainda assim, torcemos pela união dos dois, como se esquecêssemos a maior parte do tempo que o destino dos amantes está traçado, bem à moda clássica. Não há escapatória para esse amor, porque ninguém pode fugir do próprio destino, tal qual nos apontam as tragédias gregas, exemplares para a composição dramática ocidental. Por mais que Jack cometa uma pequena trapaça que o coloca no transatlântico, seus passos seguintes parecem fazer parte de uma ciranda de circunstâncias implacáveis, incluindo o seu encontro com Rose. Na primeira única viagem feita pelo Titanic, reside uma certeza que pode ser ampliada para o filme, sem qualquer vergonha de ser filósofo de botequim: a vida também é uma viagem, sempre única para cada um. E assim também é com o cinema, conforme atestam filmes do porte desse, inscrito definitivamente no imaginário cinéfilo.

8 de jan. de 2012

Contradições, alternativas e dúvidas em A primeira noite de um homem


Uma nova etapa acabou de ser cumprida para Benjamin Braddock (Dustin Hoffman). Depois de concluir sua graduação, ele retorna para a casa dos pais enquanto decide que rumo tomar na vida. Ele ainda tem 22 anos de idade, e cultiva a sua indecisão pelo tempo que pode. Nesse ínterim, cai nas graças da Sra. Robinson (Anne Bancroft), uma amiga de sua família, bem mais velha que ele. Interessada no rapaz, ela fara o que for necessário para enredá-lo em seu jogo de sedução. Eis o ponto de partida de A primeira noite de um homem (The graduate, 1967), um dos primeiros filmes da carreira de Mike Nichols, diretor que ainda entregaria várias obras de notória relevância ao público sedento de história contadas com categoria.

As dúvidas se superpõem sobre a cabeça do jovem Benjamin: ceder ou não as investidas da Sra. Robinson? Arrumar um emprego ou aproveitar um pouco mais seu período de recém-graduado? Contar ou não ao marido dela sobre o que está acontecendo? Essas e várias outras questões vão surgindo para que ele tenha de resolvê-las, e as situações imprevistas que a vida apresenta são maneiras de forçá-lo a encontrar saídas. Mais adiante, surge uma outra hesitação em forma de mulher: a meiga Elaine (Katharine Ross), ninguém menos que a filha da Sra. Robinson. É por meio desse argumento que Nichols apresenta uma das grandes produções da década de 60. O elenco está formidável, o roteiro é muito bem escrito e a trilha sonora é brilhante. Com todas essas qualidades reunidas, o resultado final não poderia ser diferente de espetacular.

Antes de mais nada, A primeira noite de um homem aborda a típica fase de dúvidas do final da adolescência para o começo da idade adulta. Benjamin ainda é muito jovem, mas já se exige dele uma grande responsabilidade diante de sua própria vida. Ele precisa dar conta de formar uma boa estrutura financeira, além de ter que lidar com o constante assédio da Sra. Robinson, ao qual acabará cedendo, desembocando na sua tal primeira noite, conforme o título em português do filme dá conta de anunciar, diferentemente do original, que se limita a fazer referência à condição em que o protagonista se encontra. Aquela primeira noite desencadeará uma série de outros acontecimentos na vida do rapaz, servindo-lhe como importantes experiências para que sua visão da vida, do amor e das pessoas seja redimensionada, adequando-se à perspectiva de um adulto.



Um dos responsáveis por fazer deste um grande filme é Dustin Hoffman. Embora soe pouco convincente na pele de um rapaz de vinte e poucos anos, ele é a alma da trama, o retrato vivo de um homem cindido em duas possibilidades: o sexo, proporcionado pelo caso com a voluptuosa Sra. Robinson, e o amor, representado pela figura dócil e afável de Elaine, que aparece para ele como a concretização de um sonho de relacionamento mais profundo e com futuro. Nos encontros com sua amante, Benjamin espera que o envolvimento evolua para uma relação sólida. Há uma cena emblemática que demonstra esse desejo do personagem, quando os dois estão na cama do hotel onde todos os funcionários já o conhecem. Benjamin pergunta sobre fatos da vida da Sra. Robinson, que sempre dá respostas evasivas. Ele vai percebendo, ali, o vazio daquele caso, abrindo ainda mais seu coração para um romance com Elaine. Em meio a tantas nuances, Hoffman demonstra uma atuação segura e competente, como se já sinalizasse o grande ator que viria a ser, adicionando vários outros papéis memoráveis ao seu currículo posteriormente.

O outro responsável pela qualidade do longa-metragem é Mike Nichols. Com sua ousadia para os padrões da época, ele ajudou a redefinir a comédia no cinema, e a incluir o sexo, um grande tabu até então, na jornada de um jovem corroído pela indecisão. Naturalmente, houve um certo escândalo quando o filme foi lançado, e lá se vão mais de quarenta anos desde que isso aconteceu. O estilo de narrativa, por sua vez, é considerado pela crítica especializada um empréstimo do cinema de arte europeu. De fato, o despojamento desse filme remete a outro título que lhe é contemporâneo: A bela da tarde (La belle de jour, 1967), do controverso Luis Buñuel, um exemplar europeu com o qual, em certa medida, A primeira noite de um homem dialoga. Entretanto, a ousadia sexual do filme de Nichols surge em doses homeopáticas, por assim dizer, o que já foi suficiente para escandalizar as plateias mais conservadoras. O mesmo cineasta voltaria a gerar reações de desconforto décadas mais tarde, ao dirigir Closer – Perto demais (Closer, 2004), injetando frescor e sinceridade à clássica trama de ciranda de desencontros amorosos. É ou não um grande diretor?

A base para o ótimo roteiro do filme está no romance de Charles Webb, que o escreveu pouco tempo depois de se formar, em 1963. Sua situação, portanto, era semelhante à de Benjamin, e a obra foi adaptada para o cinema por Buck Henry, que faz uma ponta como recepcionista do hotel em que o protagonista mantém seu caso secreto. Ele continua na ativa ainda hoje, tendo escrito roteiros de filmes como Um sonho sem limites (To die for, 1995) e o fracassado Ricos, bonitos e infiéis (Town & country, 2001), em que parecia disposto a retomar a mescla de comédia dramática com crítica social que deu certo em A primeira noite de um homem. Este sim, foi um tiro certeiro, revelador das mudanças de costumes sociais e sexuais que ganhariam culminância dois anos depois, em certo Festival de Woodstock. Em outras palavras, Benjamin é o reflexo de toda uma geração marcada pela inquietude, tateando o seu lugar ao sol e a resposta para os anseios insistentes de seu coração, com o tempero de músicas que permanecem por muito tempo ecoando nos ouvidos.

5 de jan. de 2012

Confissões de uma mente perigosa e os ônus da duplicidade


De todos os roteiros escritos por Charlie Kaufman, o de Confissões de uma mente perigosa (Confessions of a dangerous mind, 2002) é, seguramente, o mais simples. Nem por isso, é banal. O longa, primeiro de George Clooney como diretor, baseia-se na vida de Chuck Barris, espécie de Silvio Santos da televisão estadunidense, apresentador do The gong show, um programa de variedades que ficou conhecido no Brasil como Show de calouros. Interpretado por Sam Rockwell, em inspirada composição, o filme é uma bela estreia de um ator que já comprovou seu talento em diversas produções. O grande impasse da trama, baseada no livro escrito pelo próprio Barris, é a vida dupla que o apresentador passa a levar. Durante o dia, ele esbanja carisma diante da plateia de seu programa, um grande sucesso de audiência. À noite, trabalha como agente da CIA, cometendo assassinatos para o governo de seu país.

Sobre esse argumento, Clooney entregou um filme maduro e acertado, misturando um pouco do universo dos gângsters com pitadas de drama, sem se perder nesse hibridismo pouco usual. A seu favor, também está um elenco formidável, que doa o melhor de si. Sam Rokwell ainda não tem um papel de grande apelo popular em seu currículo, mas, certamente, Chuck Barris é um dos seus personagens mais importantes. Com seu biotipo um tanto franzino e comum, ele encarna com propriedade um homem que, mais cedo ou mais tarde, será atravessado pela agonia da duplicidade. Surge o questionamento que o persegue: até que ponto é possível manter duas vidas sem que uma interfira na outra? Enquanto se pergunta, uma série de pessoas com intenções diversas cruza o seu caminho.

Entre elas está Penny (Drew Barrymore), a namorada e a principal pessoa de quem ele precisa manter tudo escondido. A atriz foi uma escolha um tanto inesperada de Clooney, mas seu desempenho como uma mulher que nunca sabe exatamente quem é seu parceiro leva a entender que a escalação foi acertada. Outra que surge em cena transpirando mistério é Julia Roberts, como uma espiã que se vale de seu charme e de sua beleza para seduzir Chuck para o seu mundo. O próprio Clooney também acumula a função de ator, reservando para si um papel coadjuvante que tem a sua importância na trama. Sobra até espaço para uma rápida participação de Brad Pitt e Matt Damon, em uma cena do programa de auditório. A aparição é tão rápida que dura poucos segundos, sendo quase uma brincadeira do diretor com os espectadores mais atentos. Vale lembrar que o cineasta é amigo de longa data dos dois, já tendo trabalhado com eles três vezes sob a batuta de Steven Soderbergh, em títulos como Doze homens e outro segredo (Ocean’s twelve, 2004).



Com relação ao livro em que Confissões de uma mente perigosa se baseia, cabe o comentário de uma curiosidade: a obra é uma espécie de biografia não-autorizada do apresentador escrita por ele próprio, na qual ele inseriu também alguns contos fictícios cujo personagem principal é um tal Sunny Sixkiller. Pode-se pensar que este tenha sido um recurso para que ele pudesse contar livremente os podres que acumulou ao longo da carreira e os que viu sendo acumulados pelos seus parceiros e inimigos. Ao mesmo tempo, a estratégia reveste os eventos retratados no livro e no filme de uma névoa espessa, dificultando a certeza do que seja real ou de quem tenha sido o real autor das ações e falas mostradas. Clooney, por sua vez, não era o diretor escolhido inicialmente para o filme. Para quem pensa que este era um projeto seu, engana-se. Antes de chegarem a ele, os produtores pensaram em Brian Synger e Darren Aronofsky, posteriormente descartados.

Nos aspectos técnicos, tudo se sai muito bem. A montagem é eficiente e a fotografia, uma incumbência de Newton Thomas Sigel, contempla a tal névoa espessa que reveste os acontecimentos da trama de plena incerteza. Seja como for, não é o mais importante saber se tudo aconteceu ou não de fato, mas mergulhar na história de um homem com um grande potencial dramatúrgico e refletir sobre o peso das escolhas e sobre como arcar com as suas consequências. o mar de rosas que Chuck vive não tarda a se mostrar revolto, e ele precisa encontrar um ponto de equilíbrio para a sua dupla jornada. Com esse filme, Clooney demonstra o quanto aprecia o cinema como grande veículo para contar histórias sobre pessoas que fizeram a diferença, e não somente como fonte de espetáculo. Ele abdica da ação desenfreada para pontuar seu filme com uma rotação um tanto lenta, que distanciam a obra de uma roupagem tipicamente popular. Não se trata, portanto, de um filme para multidões.

O slogan do filme é bastante sugestivo: Existem coisas que é melhor manter em segredo. Essa é, de fato, a tentativa de Chuck ao longo do filme. Mas nem sempre é possível impedir a fusão de dois mundos, e os desdobramentos dessa tal duplicidade incluem ônus verdadeiramente pesados. Por falar em Chuck, seu intérprete foi premiado com o Urso de Prata no Festival de Berlim, coroando o esforço e o talento de um ator que ainda passa despercebido em muitos filmes que contêm seu nome nos créditos, como O guia do mochileiro das galáxias (The Hitchhiker's guide to the galaxy, 2004), de gosto um tanto duvidoso. Enfim, as fontes de Confissões de uma mente perigosa estão em seu elenco afinado, com papéis que lhes caem como luvas, mas não são necessariamente óbvios, e uma direção segura e eficaz, trazendo Clooney para uma função que viria a desempenhar outras vezes, de forma igualmente digna.

3 de jan. de 2012

O desenho de um futuro imperfeito em Renaissance



A junção do imponderável da animação com a hipótese de um futuro obscuro caracterizam Renaissance (idem, 2006), uma obra de efeitos deslumbrantes que encobrem uma trama de conteúdo um tanto esgarçado. Tudo se passa na Paris de 2054, que ostenta um cenário desanimador para as perspectivas do presente. A Cidade Luz, como outros locais do mundo, está sob o domínio de um governo totalitário, em que os passos de cada habitante são controlados com disposição férrea. Em meio a esse ambiente, ocorre o desaparecimento de uma importante cientista, Ilona Tasuiev, responsável por cuidar de experiências envolvendo clonagem. Para encontrá-la, é designado Barthélémy Karas, um policial casca grossa famoso por encontrar qualquer pessoa.

Essa breve descrição da sinopse de Renaissance permite notar que a animação dialoga diretamente com vários exemplares da ficção científica e do noir. Qualquer semelhança com títulos com Alphaville (idem, 1965), lendário filme de Jean-Luc Godard, não é mero acaso. Talvez essa seja a referência mais clara usada por Christian Volckman, cineasta da animação, por conta dos elementos já citados, mas também pela opção de empregar o preto e branco e permear a narrativa de personagens dúbios, a começar pelos protagonistas, que não se revelam um poço de virtudes. Aliado à fotografia à moda antiga, ele se vale da técnica da rotoscopia, que apresenta as imagens com um aspecto um tanto distorcido, resultando em uma atmosfera totalmente estilizada. Desse modo, o espectador fica diante de um recorte todo particular do futuro, que, como tal, ninguém sabe ainda se chegará.

Um outro dado relativo à sinopse da animação contribui para que ela seja intertextual com tantos outros filmes sobre o futuro: ao iniciar as investigações para descobrir o paradeiro de Ilona, Barthélémy depara com uma companhia chamada Avalon, que esconde segredos perigosos que acabam por envolver o policial. No fundo, Renaissance oferece mais do mesmo, sem uma preocupação em renovar o gênero ao qual se filia, privilegiando os clichês. Trata-se apenas de uma releitura de alguns clássicos. Em outras palavras, a intenção é boa, mas o resultado fica aquém das expectativas. A trama parece um tanto perdida lá pelos primeiros quarenta minutos, o que causa uma certa diluição no interrese. Volckman aposta em uma Paris estroboscópica, com luzes faiscantes que fascinam e atordoam. Esse visual estupendo compensa o estofamento dramático rarefeito, amplificado por trazer personagens de expressão visual pobre.



O filme acabou premiado no Festival de Annecy, na França, um evento voltado justamente para as animações. Certamente, o que pesou na decisão do júri foi a arquitetura visual ímpar, coroando uma busca do realizador por uma estética própria. A brincadeira custou 15 milhões de euros, e resultou em uma obra em que pipocam citações, os grandes achados do enredo. O futuro desolador faz referência a Código 46 (Code 46, 2003) e Filhos da esperança (Children of men, 2006), ao passo que a presença do totalitarismo remete ao superclássico 2001 – Uma odisseia no espaço (2001 – A space odissey, 1968). São filmes de intenções e estirpes diversas que comprovam o grande interesse do homem por tentar interpretar a realidade presente e imaginar o seu transcorrer para além dos anos. De tempos em tempos, o cinema nos oferece essas tentativas, e Renaissance vem se somar a elas com relativo sucesso.

Por essas e outras, a animação é voltada para adultos, que saberão tirar algum proveito da sessão. Existe algum espaço para o questionamento de atitudes tomadas pelos personagens, que, muitas vezes, demonstram que o fim pode justificar os meios. Barthélémy, por exemplo, nem sempre segue a ética que lhe deveria caber, assim como Ilona não é um poço de inocência que se tornou vítima injustamente. Apesar disso, o roteiro do filme, escrito a três mãos, tem traços de um esquematismo decepcionante, que lhe desabona em certa medida. Vários outros filmes já trataram melhor do tema, até mesmo alguns que não versam exatamente sobre um futuro próximo, como o desenfreado Sin city – A cidade do pecado (Sin city, 2005). Em termos de visual, porém, Renaissance é quase imbatível, merecendo, por isso, ser visto com algum interesse.