24 de jun. de 2010

"O leitor", uma incômoda análise sobre os efeitos do silêncio

Desde que dirigiu "As horas" (2002), Stephen Daldry devia um novo filme aos seus espectadores. Afinal, tanto seu longa precedente quanto sua primeira produção (para quem não sabe ou não se lembra, "Billy Elliot", de 2000) foram muito bem recebidos pela crítica e pelo público sedento de reflexão e de boas histórias. Não foi à toa que Daldry recebeu indicações ao Oscar de melhor diretor por suas duas experiências atrás das câmeras. Passados seis anos desde a narrativa tríptica embasada na obra de Virginia Woolf, ele traz "O leitor" (The reader), mais um filme contundente e revelador, que trata do peso das escolhas, principalmente quando a principal dessas escolhas é a completa omissão diante de um fato lastimável. É uma adaptação do romance homônimo de Bernhard Schlink, feita pelo roteirista David Hare, também responsável pelo roteiro de "As horas".

Tudo começa com uma tarde chuvosa, bem ao estilo londrino, na década de 30. Michael (nessa fase, vivido por David Kross) está voltando para casa depois de mais um dia estudos, quando conhece Hanna Schmitz (Kate Winslet, mais uma vez irrepreensível), uma mulher rude e, ao mesmo tempo, encantadora para aquele jovem. Nesse primeiro momento, o filme se mostra como a crônica do nascimento do amor de um rapaz por uma mulher alguns anos mais velha que ele, um lugar-comum que pode levar os mais desavisados e precipitados a classificar "O leitor" como mais um filme de amor. Ideia errada. O romance de Michael e Hanna não envereda para um contexto idílico, que remeta aos contos de fadas.
Ela trabalha fiscalizando bilhetes de trem. É taciturna e, quando decide falar, não é das figuras mais simpáticas. É como se sempre quisesse se esconder sob uma carapaç que a isola do mundo em certa medida, permitindo apenas o contato estritamente necessário. Depois de conhecer Michael, sua vida monótona parece ganhar uma paleta de cores mais vasta, principalmente quando ele começa a ler obras da literatura universal para ela. Os dois passam a se encontrar para passar longas tardes juntos, enquanto Michael recita trechos imensos de textos clássicos e Hanna mergulha nas histórias que ouve. Há um segredo mantido a sete chaves por ela, mas do qual o espectador não tarda a desconfiar: Hanna é analfabeta. Quando a relação entre eles começa a ganhar contornos mais sérios, ela passa a caminhar na direção oposta, repelindo a presença do jovem.

Durante essa fase do filme, não faltam cenas ousadas entre os protagonistas, consideradas gratuitas por alguns, mas que se mostram por inteiro em sua nudez, e revelam a beleza de seu intérpretes. Winslet é daquelas atrizes que, para além de sua estampa ofuscante, oferece atuações brilhantes e soberbas, que fazem o público grudar os olhos nela, e não mais tirá-los. A Academia parece já saber disso há um tempo, mas só decidiu premiá-la depois da sexta indicação, exatamente por "O leitor". Antes, ela já havia sido indicada por "Razão e sensibilidade" (1995), "Titanic" (1997), "Iris" (2002), "Brilho eterno de uma mente sem lembranças" (2004) e "Pecados íntimos" (2006). Todas as indicações foram dignas, e sua vitória por "O leitor" é um reconhecimento tardio dos votantes. Felizmente, porém, ele aconteceu. Ela também levou o Globo de Ouro pelo papel. Por sua vez, Kross é um jovem ator que já vem demonstrando seu talento há algum tempo. Ele já esteve no elenco de um mesmo filme que Winslet antes, o já citado "Briho eterno de uma mente sem lembranças". Assim como ela, é de uma beleza que chama a atenção, e consegue transmitir a insegurança e a efusão de um garoto que descobriu o primeiro amor. Seus olhos refletem esse misto de sentimentos com habilidade notável. Com o fim de seu romance com Hanna, esses mesmos olhos se transfiguram em desalento.
O tempo transcorre, e Michael e Hanna permanecem separados, mas a lembrança dela atravessa os pensamentos dele. Adulto, Michael passa a ser vivido por Ralph Fiennes, também numa construção impecável como ator. Até que, um dia, eles se reecontram em uma situação extremamente desagradável: o julgamento de crimes de guerra em um tribunal. Hanna é uma das acusadas de colaborar com o regime nazista, favorecendo o extermínio de milhares de judeus nos campos de concentração. Diante da atestação dessa barbárie, Michael se vê ainda mais confrontado por seu passado com Hanna, no tempo em que ele era ainda um menino em busca de todo tipo de descoberta. Agora ele é um advogado de prestígio, e sabe do segredo de Hanna, podendo ajudá-la a se livrar da condenação. Ela mesma prefere omitir o fato, por se envergonhar de não saber ler. Mas Michael prefere se calar, e não agir em favor da mulher que um dia amou.
Esse é o eixo central de "O leitor". O filme se foca nesse dilema moral no qual Michel se encontra, e levanta o questinamento sobre a parcela de responsabilidade que podemos ter no destino de outrem. Quando decidimos guardar a verdade apenas para nós mesmos, podemos estar fazendo a escolha mais errada de nossas vidas. Daldry vem se tornando um especialista em retratar pessoas vivendo uma vida que não é a que desejam. Como o personagem-título de "Billy Elliot" e as mulheres de "As horas", Michael não tem a vida que que quer, e isso implica em carregar consigo sempre uma fagulha que seja de insatisfação e desventura. A filmografia do diretor, composta, até agora desses três longas, é, portanto, um tratado dos erros de cada um e do sufocamento que a aparente falta de saída gera naqueles que não se reconhecem mais em si mesmos.

10 de jun. de 2010

Entraves gerados pela chegada da adolescência em "À deriva"

Dono de uma filmografia ainda curta, Heitor Dhalia já vem mostrando que tem muito a dizer, e de uma forma deliciosa de se acompanhar. O realizador de "Nina" (2004), drama de tintas existencialistas inspirado na obra de Dostoiévski, e de "O cheiro do ralo" (2006), uma das melhores performances de Selton Mello nos últimos anos, chega ao seu terceiro filme interessado em observar as angústias geradas pelo crescimento, mais especificamente no período que corresponde ao final da infância e ao início da fase adolescente. Essa época da vida de um ser humano já serviu de material para inúmeros filmes, de diretores e nacionalidades o mais díspares possível. Só para citar os mais canônicos, há François Truffaut, que estreou no celuloide com o poético "Os incompreendidos" (1959), e o terno "Fanny e Alexander" (1982), de Ingmar Bergman.

Em seu filme mais recente, porém, Dhalia enveredou por um caminho bastante diferente daquele que seu antecessor levaria a supor. "À deriva" é uma espécie de baú de memórias revisitado pelo diretor e, como tal, carregado de linguagem subjetiva, filtrado pela sua perspectiva de indivíduo, que ele decidiu compartilhar com seu interlocutor que, por se tratar de uma obra filmada, acaba se tornando seu espectador. Não é um filme autobiográfico, entretanto. O longa pode ser definido como uma superposição de recordações vindas do universo infantil, que estão no coração de qualquer pessoa, ainda que indolentes e soterradas.

O objeto de filmagem do diretor brasileiro é a trajetória de Felipa (Laura Neiva, em composição acertada), uma menina de 13 anos que ainda não sabe muita coisa sobre a vida, como sua própria idade denuncia. Ela tem dois irmãos, com quem vive às turras, assim como acontece com qualquer outra família, e vem testemunhando involuntariamente o naufrágio silencioso do casamento de seus pais, vividos com muita competência por Débora Bloch e Vincent Cassel. O ator francês, conhecido por aqui por filmes como "Irreversível" (2002), "A isca perfeita" (2002) e "Doze homens e outro segredo" (2004) se sai muito bem na tarefa de aliar sua pronúncia do português a uma atuação marcante e precisa. Débora, por sua vez, também esbanja talento na pele de uma esposa amargurada e insegura com relação ao marido.

Como se vê, a trama proposta por Dhalia não apresenta muitos traços de originalidade. Trata-se, na verdade, de uma temática já bastante repisada no cenário artístico de uma maneira geral. Mas nem tudo num filme se resume à originalidade de ser argumento, e o diferencial de "À deriva" é a forma naturalista com que a ação se desenvolve. As lentes da câmera capturam a fragilidade de uma garota que ainda está se descobrindo como pessoa, e que tem todas as incertezas do mundo sobre o que realmente que ser e o que quer fazer da sua vida. Essa incertezas geram a inquietude e a angústia, porque ela nunca sabe exatamente como lidar com seus desejos, cometendo pequenos enganos que a narrativa do filme se ocupa de apresentar. Acompanhar a jornada de crescimento de Felipa é delicioso, pois traz à tona toda aquela gama de receios que perpassa a fase adolescente. Quem já a superou consegue perceber exatamente o quão graves se tornam quaisquer conflitos que atravessam o caminho de alguém que ainda não chegou ao vigésimo aniversário.
Os acontecimentos que mexem com o cotidiano de Felipa se dão em Búzios, cidade fluminense que é reduto de endinheirados em tempos de férias, um ambiente solar por natureza. O local serve com um ótimo contraponto para a personalidada introspectiva da protagonista, que se fecha como uma ostra ao menor sinal de ameaça. Diferentemente da cidade, que abre seus braços e acolhe a qualquer figura que a ela se dirija, sem distinção alguma. A rotina da garota inclui tardes idílicas na praia, aventuras com os amigos, e a descoberta de uma paixão, sentimento novo e inexplicável que a toma de assalto. Além da constatação de que seu pai, um escritor, está tendo um caso extraconjugal com uma modelo (Camila Belle) que está passando uma temporada na cidade. A junção desses pequenos acontecimentos vão formando os cacos de que a vida de Felipa passa a ser constituída. Cada um deles terá seu peso na formação do pensamento da menina, que terá de amadurecer, querendo ou não. É o momento do "adeus à inocência", chavão tão recorrentemente usado em críticas sobre filmes que versam sobre o final de infância quanto "dores do crescimento".
O fato de Laura Neiva ser uma estreante é um ponto que conta bastante a seu favor. Por se tratar de um rosto desconhecido, sua presença em cena injeta frescor a personagem, e traz um carisma inegável para si. Como atriz que se tornou, ela tem uma desenvoltura apaixonante, que remete a grandes estrelas que começaram na mesa idade que ela, como é o caso de Jodie Foster, que estreou em "Taxi driver" (1976), e de Brooke Shields, que foi lançada em "Pretty baby" (1978). A julgar pelo caminho trilhado pelas duas, o futuro de Laura é promissor. E o roteiro de Dhalia também premite uma duplicidade de atitudes muito oportunas. Felipa exibe um misto de ingenuidade com sensualismo, que transpiram com mais intensidade nas cenas em que ela tenta entender o que sente pelo namoradinho de ocasião, que também não sabe lidar com a devida destreza com o que sente pela menina, enfiando os pés pelas mãos a cada novo passo que tenta dar.
O título, se lido com bastante atenção, já entrega um pouco da perspectiva que acompanha Felipa. Como um barco que não sabe que rumo tomar, ela está à deriva, esperando um farol que a ilumine e a leve a um porto seguro, ou um leme que a conduza com menos sobressaltos por suas dúvidas. Em Cannes, o filme foi exibido em 2009, dentro da mostra "Un certain regard" (Um certo olhar), reservada a filmes de diretores com alguma experiência que trazem um ângulo diferente para um tema já visitado. O elenco, aliás, ainda conta com Cauã Reyomond, que tem conseguido cada vez mais espaço no cinema, como comporovam os longas "Se nada mais der certo" (2009) e "Divã" (2009).A recepção do público foi boa, e coroou o esforço de Dhalia em talhar uma obra que espia o abismo entre casais, as incongruências entre pensamento, fala e ação e o desejo de se afirmar mesmo quando não se sabe exatamente o que quer.

8 de jun. de 2010

"Abraços partidos" e o cinema dentro do cinema

Quando se fala a respeito de Pedro Almodóvar, uma série de conceitos a ele atrelados ganha força. O diretor é conhecido por suas abordagens de temas polêmicos vestidas com uma roupagem melodramática, que se traduzem em histórias memoráveis, circundadas por uma atmosfera algo bizarra. Entretanto, também é notório que seu estilo espalhafatoso vem dando lugar a uma maneira de filmar mais contida, mas não menos intensa, é bom que se diga. Almodóvar vem demonstrando um grande amadurecimento, filme a filme, principalmente nos últimos oito anos.

Essa virada teve início com "Fale com ela" (2002), em que o cineasta exerceu toda a sua sensibilidade, para presentear seu público com uma trama de encontro em meio ao caos e à dor. Prosseguiu com "Má educação" (2004), em que a questão do abuso sexual cometido por padres apresentou contornos de homoerotismo, e que, pela primeira vez, trouxe um universo masculino em evidência num filme seu. O refinamento atingiu um grau ainda mais alto com "Volver" (2006), no qual, além de seu reencontro com sua musa Penélope Cruz, ele apresentou um drama familiar sobre mulheres em busca de uma reconciliação consigo mesmas e com o mundo.
Depois desse breve retrospectiva, nossos olhares se voltam para "Abraços partidos" (2009), sua mais recente produção, que não deve em nada aos seus filmes pregressos, por trazer, em sua essência, o que há de melhor em termos de Almodóvar. Mais uma vez, o realizador espanhol recrutou Penélope Cruz para interpretar sua protagonista. Escolha mais do que acertada, já que, nos últimos filmes em que atuou, ela vem demonstrando cada vez mais talento - vide o já citado "Volver", "Fatal" (2008) e "Vicky Cristina Barcelona" (2008). Aqui, ela dá vida a Lena, uma mulher linda e fascinante que vira a cabeça de um diretor de cinema. Só por essa pequena informação já se pode notar que a inserção do componente metalinguístico parece ser a mais nova obsessão do diretor.

Como em "Abraços partidos", seus últimos dois filmes apresentam alguma relação do cinema com o próprio cinema. Em "Má educação", Ignácio (Gael García Bernal) se propõe a transformar em filme a história de sua infância, depois de reencontrar Enrique (Fele Martinez). Em "Volver", Raimunda (Cruz) acaba trabalhando como cozinheira para uma equipe de filmagem que está rodando um longa perto de sua casa. Essa porção de metalinguagem acaba funcionando não só como um sinal da paixão de Almodóvar por um fonte de entretenimento e reflexão que virou seu ofício, mas também de que discorrer sobre o próprio fazer cinematográfico é um manancial inesgotável para cobrir a falta de ideias. É como o cronista que, na falta de assunto para a crônica, escreve uma crônica exatamente sobre a falta de assunto, incluindo aqui e ali um traço de banilidade, ícones de uma existência prosaica.

Observações subjetivas à parte, "Abraços partidos" (uma tradução romanceada para "Los abrazos rotos", do original, que seria algo como "Os abraços rasgados") conta a história de Matteo Blanco (Lluís Homar, excepcional), um cineasta que já viveu dias muito melhores. Hoje, ele é um homem amargurado, que convive com a cegueira resultante de um acidente acontecido 14 anos antes, e que abandonou as câmeras, preferindo escrever romances. Suas reminiscências de um passado idílico são despertadas quando ele é interrogado por Diego (Tamar Novas, de "Mar adentro"), o filho de sua antiga diretora de produção. Então, a trama recua exatamente esses 14 anos, e transporta o espectador para o dia em que as trajetórias de Matteo e Lena se cruzaram. É quando surge, linda e lânguida, a personagem de Cruz. À procura de um médico para seu pai, ela esbarra em Ernesto (José Luis Gómez), um homem rico que se apaixona perdidamente por ela.
Não demora para que eles se casem, mas Matteo surge na vida de Lena para injetar a emoção que ela procura. Aspirante a atriz, ela acaba conseguindo o papel de protagonista de sua nova produção, que remete bastante ao passado de cores berrantes de Almodóvar. A graça de filme é também essa: identificar os ecos do diálogo do diretor com sua própria obra, o que gera autocitações aqui e acolá. Ao longo desse "filme dentro do filme", portanto, ele abre seu grande baú de recordações, assim como o faz Matteo. Durante as filmagens, o caso de Lena e Matteo vai ficando cada vez mais sério, até que Ernesto descobre a traição da esposa, mas não consegue conceber sua vida distante daquela mulher tão impetuosa e deslumbrante.
A partir daí, a trama ganha contornos de tragédia, no sentido adjetivo da palavra, já que a fúria de Ernesto culminará em um acidente terrível com o casal de amantes. Há ainda espaço para um certo Ray X (Rúben Ochandiano), uma figura enigmática traduz seu desejo de vingança (por razões que quem assiste ao filme descobre) em uma aparência repugnante. Também a relação que ele mantém com os outros personagens é descortinada por meio dos esclarecimentos que as memórias de Matteo permitem dar ao público. O fato é que a love story não ganha um final feliz. Por conta disso, Matteo se desiludiu com a vida e, por tabela, com o cinema, e assumiu para si uma nova persona, Harry Caine. A cegueira é o resquício concreto de uma perda irreparável em sua vida.
Como se pode depreender, o roteiro de Almodóvar é bem alinhavado, com uma trama que prende a atenção sem a necessidade de recorrer a insights de estroboscopia para que o espectador se sinta envolvido pela narrativa. O diretor não abre mão de toda a sua passionalidade, entregando sequências carregadas de emoção genuína, que comovem por sua maneira de fluir. A câmera do cineasta percorre uma Espanha viva e, ao mesmo tempo, sombria, que combina com as recordações que Harry / Matteo vai apresentando.
Inserindo na crítica uma dose de experiência pessoal, digo que assisti ao filme no cinema, numa sessão em que eu era o único espectador, mesmo sendo uma sexta-feira, pouco depois do horário de almoço. Malgrado a solidão nas poltronas que me rodeavam, pude me concentrar mais do nunca em um filme, e mergulhar num misto de drama e suspense denso, penetrante e encantador. Pude comprovar, mais uma vez, a habilidade de Almodóvar em contar uma boa história, sem qualquer excesso ou ausência de algum elemento narrativo. Essa peculiaridade só reforça minha ansiedade a cada novo filme lançado pelo diretor. Em Cannes, a recepção a "Abraços partidos" não foi das mais calorosas. Isso revela uma tremenda injustiça, já que o filme merece toda a acolhida e todos os elogios que a ele se possam dar. Logo, Almodóvar vem aí novamente, num reencontro com um "muso" de sua galeria de personagens inesquecíveis: Antonio Banderas. Ele filmará "La piel que habito", sua primeira incursão no gênero terror. Desde já, olhos e ouvidos devem estar a atentos ao que está por vir.