20 de mai. de 2010

"Paris, te amo", um passeio pela cidade do romance

Comumente associada ao glamour e às paixões arrebatadoras, Paris ganhou um filme à sua altura. E seu título não poderia ser outro senão "Paris, te amo". Filmado no ano de 2006, o longa é, na verdade, uma colagem de vários curtas-metragens, cada um com a duração de cinco minutos, que contam alguma história passada em Paris. E cada um desses curtas ganhou a assinatura de um diretor, o que garante uma grande multiplicidade de visões e de abordagens para um tema, a princípio, homogêneo. Para falar com propriedade de todos, porém, seriam necessárias linhas e mais linhas que discorressem com riqueza de detalhes os olhares que se descortinam diante dos olhos do público, ávido de viajar nas histórias propostas por tantos nomes distintos à frente e por trás das câmeras.

Entre eles estão velhos conhecidos dos cinéfilos de carteirinha, somados a descobertas mais recentes da cena cinematográfica mundial. No total, são vinte e três cineastas, que oferecem uma infinidade de perspectivas a respeito da capital francesa. Estão lá Olivier Assayas, Gurinder Chadha, Alexander Payne, Tom Tykwer, Gus Van Sant e Wes Craven, e vários outros. Alguns dividem a direção de um mesmo curta, como os badalados irmãos Ethan e Joel Coen, responsáveis por boa dose de humor negro do filme, e Walter Salles e Daniela Thomas, autores do segmento que trata da questão dos imigrantes em solo parisiense.

Como se trata de um filme formado por episódios, a crítica à falta de regularidade é quase um lugar-comum, e afeta também "Paris, te amo". Afinal, colocar diretores de calibres diferentes em sequência é uma forma de se notabilizar suas divergências criativas. Malgrado essa questão de ordem extremamente subjetiva, o filme é um irrestível convite a conhecer inúmeros recantos de um lugar que já se encontra inscrito no imaginário coletivo. Um dos curtas, protagonizado por Natalie Portman, por exemplo, narra a jornada de um jovem cego em busca de um encontro com sua musa inspiradora. O segmento se chama "Faubourg Saint-Denis", e a personagem de Natalie, Francine. É impossível não se apaixonar por ela ao primeiro olhar, o que nos faz constatar ainda que não é somente o olhar que pode nos despertar esse sentimento por alguém. O curta é de uma docilidade ímpar, e deixa uma leve sensação de orfandade quando chega ao seu final.
Vários são os momentos de brilho e de charme do filme, que é capaz de conquistar o espectador à primeira olhadela. Outro instante de inspiração legítima é o segmento "Père-Lachaise", dirigido por Wes Craven. O foco da história é um casal que começa a discutir durante uma visita turística ao cemitério homônimo, num momento de crise na relação. A grande sacada do curta é quando o fantasma de Oscar Wilde interefere no diálogo do casal, gerando uma sequência com um quê de hilariedade e de insolidez. O casal é vivido pelos talentosos Emily Mortimer e Rufus Sewell, e Alexander Payne, que também dá expediente como diretor em um outro curta, personifica o fantasma de um dos maiores escritores que a Inglaterra já teve. Vale lembrar que o cemitério do título é dos pontos turísticos mais valorizados da Cidade-Luz, que atrai multidões de curiosos anualmente. Ele compõe um novo nicho de mercado, o turismo de cemitérios. Lá estão enterradas várias personalidades de renome internacional. Além de Wilde, quem vai até lá encontra os túmulos de Honoré de Balzac, Marcel Proust, Max Ernst, Auguste Comte, Maria Callas, Édith Piaf, Fréderic Chopin e muitos outros.

O teor politizado fica por conta de Walter Salles e Daniela Thomas, que dirigem o segmento "Loin du 16ème". Protagonizado por Catalina Sandino Moreno (Maria cheia de graça), o curta narra a difícil jornada de uma jovem mãe, que precisa cuidar de um bebê que mora do outro lado da cidade, enquanto seu próprio filho permanece em uma creche, sob os cuidados de professoras que lhe são estranhas. A longa viagem da moça de sua casa até seu destino é o momento em que ela reflete sobre sua realidade, na condição de imigrante. Para esses, ainda que de maneira ingrata, Paris também reserva seu espaço, como fica transparente pelas lentes da dupla de diretores que, por aqui, voltaria a se reunir dois anos depois para filmar "Linha de passe", e conquistar em Cannes, outra importante cidade francesa, a Palma de Ouro de atriz para a então quase desconhecida Sandra Corveloni.

Encerrando a série de curtas, mas nem por isso sendo o menos importante e impactante de todos, está o que foi dirigido por Alexander Payne (dos estimados "As confissões de Schmit" e "Sideways - Entre umas e outras"), que traz singeleza ao retratar uma turista que acaba de chegar à capital francesa. Ela está sozinha, e começam a vir à sua mente todas as expectativas que tem em relação à cidade. Quem e o quê pode encontrar, do que pode ou não gostar em seus passeios. Mas, acima de tudo, ela fala de todos nós. Paris acaba sendo uma grande metáfora para a vida, já que é nela que todos depositam suas esperanças, descontam suas frustrações, amam e odeiam, encontram-se e perdem-se, esquecem e lembram, entre tantas outras antíteses inerentes a existência dos seres humanos. Talvez por isso, ou certamente por essa razão, seja o curta que mais nos toca, pois expõe nossos medos e fragilidades com um misto de resignação e humor cáustico.
Como foi dito anteriormente, citar cada curta e lhe dar a devida justificativa para que seja visto soa como uma tarefa insana. Mais vale deixar em suspenso algumas das surpresas que são reservadas para quem decida assistir a "Paris, te amo". O filme não é simplesmente uma colcha de retalhos que não prescinde da unidade. Pelo contrário, é em sua multiplicidade que está seu uniformitarismo. A Paris retratada pelos diretores vai muito além dos clichês já há tempos disseminados entre as pessoas, que fazem com que mesmo aqueles que nunca foram à cidade, como este que vos escreve, pensem que já a conhecem razoavelmente bem. A seleção de curtas, de responsabilidade de nomes de peso, é, ao mesmo tempo, uma viagem emocional pelas ruas da cidade, e uma pincelada sobre os variados universos que se descortinam em uma simples caminhada pelo lugar. Aqui se encontra a Paris dos amantes, dos solitários, dos imigrantes, dos abandonados, dos esperançosos, dos ricos, dos vagabundos. Cada um encontra para si a sua Paris do coração. Uma Paris que serve a inúmeros gostos e estilos, e que não abre mão de ser multifacetada, como qualquer centro urbano da contemporaneidade deve ser.

18 de mai. de 2010

"Waking life": perambulando pela falta de sentido do ser e do estar

Muito se discute se a animação seria um gênero de filme ou se ela, na verdade, pode comportar qualquer gênero cinematográfico dentro de si. A discussão frequentemente pode voltar à tona, especialmente quando se leva em consideração um filme da estirpe de "Waking life". Dirigido por Richard Linklater (Antes do amanhecer), o filme é uma viagem cerebral sem precedentes pela existência humana, apoiado exatamente na destituição de imagens reais em favor de uma visão e de uma linguagem oníricas.

Daí se torna novamente relvante entender que, mais do que admitir um rótulo de gênero, a animação se presta a diferenciados exercícios de estilo, desde os mais esdrúxulos aos mais sofisticados. E, múltipla como é, apresenta uma série de vertentes. Desde a animação em stop motion, da qual "O estranho mundo de Jack"(1997) é um bom exemplo, passando pela animação em 3D, do recente "Up - Altas aventuras" (2009) e pela rotoscopia de "Renaissance" (2007), até chegar às cores estouradas e instigantes desse "Waking life". Sim, porque o filme não é exatamente uma animação, mas também não pode ser encaixado com propriedade na classificação de filme.

Compartimentações à parte, o fato é que a invenção de Linklater merece crédito e atenção do espectador, por sua essência. No enredo do longa, nada de muito palatável, mas sim a certeza da incerteza, que permeia o pensamento ocidental desde os tempos platônicos, aristotélicos, socráticos e afins. "Waking life" quer ser metafísico, e se utiliza de inúmeros argumentos para isso. A grande questão que direciona a caminhada do seu protagonista é a seguinte: "Estamos feito sonâmbulos quando estamos acordados ou será que estamos conscientes quando sonhamos?". É o tipo de pergunta que requer acurada atenção, e que já desperta um mínimo de curiosidade pela proposta do diretor.

O que se segue são longas divagações, amplificadas por sua profundidade, a despeito de a duração do filme ser de apenas 99 minutos. Willey, o personagem principal, caminha longamente por um cidade anônima, que pode ser a minha ou a sua, a depender de sua vivência e de sua capacidade de percepção do familiar em meio ao desconhecido. Tomado pelo desejo de encontrar respostas para suas inquietações mais pulsantes, ele encontra pessoas, ouve conversas, pensa, sonha, acorda, reflete, pondera, sofre, sente, mergulha, entre outras coisas. Tudo dentro de um "caos organizado", em que aparecem figuras enigmáticas, extravagantes e interessantes. Linklater também aparece como um homem jogando pinball, e depois como um homem em um navio. Mas aquele pode ou não ser ele. Assim como o mundo em que Willey vive pode ou não existir.
Norteado por esse e outros princípios, o trajeto desse personagem é potencialmente perigoso, tanto do ponto de vista humano quanto do viés cinematográfico. Ao abordar temas tão universais pautando-se na imagem fantasiosa, o diretor lida com pensamentos angustiantes que todos teimam em salvaguardar nos sótãos escuros e empoeirados de suas consciências. Aquela consciência que fere, que impede a ingnorância e que lacera compulsoriamente as relações humanas, seja no amor, seja na amizade. Porque ter consciência é, acima de qualquer coisa, um fardo. Cinematograficamente falando, Linklater poderia incorrer no erro de reduzir tudo a uma colagem de imagens bonitinhas, sem um arremate final. De fato, manter a unidade não parece ter sido uma de suas preocupações ao dirigir o filme. Mas cada uma, de alguma maneira, contribui para o resultado envolvente do todo.
Nessa grande brincadeira chamada "Waking life" (algo como "caminhando pela vida"), há espaço também para uma boa dose de metalinguagem, através da presença de dois atores em versão "animada". São Ethan Hawke e Julie Delpy, que personificam novamente Jesse e Celine, seus personagens em "Antes do amanhecer", que rendeu uma sequência anos depois, "Antes do pôr-do-sol". Nos dois filmes, a palavra tem importância notável, pois é através dos diálogos entre os protagonistas que a trama evolui. Assim também acontece com "Waking life". Seu roteiro prima pelos longos diálogos, que facilmente conduzem à reflexão de que nada é duradouro o suficiente na vida, exceto a certeza de que, quanto mais vivemos, mais temos a aprender. Com Willey, o público também enxerga a falta de sentido da vida, que rende discussões intermináveis, que normalmente não chegam ao lugar algum.
Longe de parecer voltado para uma "filosofia de botequim", atividade que tem lá sua vantagem e não deveria ser vista com tanta pejoratividade, as reflexões de "Waking life" levam o cinema ao patamar da análise psicanalítica, mediado pelos delíros individuais de Willey, e que também podem ser os seus e os meus delírios. Nem tudo o que se vê e se ouve na tela precisa ser necessariamente compreendido. Como diria Camões, quanto mais ele escrevia, menos ele entendia. E falar longamente talvez seja apenas uma entre tantas maneiras de mitigar nossas chagas da dúvida, que nunca deixam de nos perseguir.

17 de mai. de 2010

A sublimação do desejo em "Amor à flor da pele"

No final da década passada, o público de cinema ganhou um presente e tanto pelas mãos talentosas de Wong Kar-Wai. Um filme que jamais seria esquecido, e que, seguramente, merece o título de clássico moderno, com todo o oxímoro contido na expressão. Em português, esse longa de beleza rara atende pelo nome de "Amor à flor da pele", e traz a todos os sentidos uma grande festa do prazer, com sua multiplicidade de cores e formas desfilando o tempo todo na tela.

Como o título já evidencia, a investigação proposta pelo realizador de "Dias selvagens" (1991) e "Felizes juntos" (1997) é a respeito dos meandros de um dos sentimentos mais dissecados e analisados pelo cinema, pela literatura, pelo teatro e por todas as outras formas de arte existentes. A tarefa não é simples, e requer uma qualidade que certamente se encontra em Kar-Wai: sensibilidade. É com essa importante característica que ele conduz o espectador por um espetáculo visual ímpar, ancorado nas atuações precisas (no melhor sentido que a palavra pode ter num contexto como esse) de Tony Leung Chiu Wai e Maggie Cheung. A dupla de atores é recorrente na filmografia do diretor, o que lhes garante um certa intimidade com o seu modo de filmar.
Eles dão vida a Chow Mo-wan e Su Li-zhen, respectivamente. Suas trajetórias distintas se cruzam quando eles se mudam para o mesmo edifício, acompanhados de seus respectivos cônjuges. Um detalhe que logo chama a atenção do espectador nessa questão é que os parceiros dos protagonistas jamais aparecem na tela, deixando apenas suas sombras e alguns ruídos no ar. O foco da câmera de Kar-Wai está realmente em Mo-wan e Li-zhen, que tomam conta de todas as cenas. Não demora para que eles descubram que são vizinhos, e iniciem uma bela e, por vezes, ingênua amizade.

Então, passam longas horas juntos, conversando sobre trivialidades, e desenvolvendo uma cumplicidade que não encontram nos seus casamentos, o que lhes gera um flagrante desconforto. Na verdade, ambos estão sempre sendo deixados de lado por seus parceiros, e isso os aproxima dia após dia. Até que chega o momento em que eles descobrem que, nas longas viagens que seus cônjuges fazem, eles acabaram tendo um caso. A descoberta deixa Mo-wan e Li-zhen estarrecidos, e os deixa ainda mais próximos. Mas, diferentemente do que se poderia esperar da evolução da narrativa, eles mantêm a dignidade, e decidem não repetir o erro cometido pelos amantes.
Nessa decisão tomada em comum acordo por eles, Kar-Wai deixa claro que seu filme não envereda pelo caminho do óbvio. O cineasta prefere trilhar as veredas da sublimação. Seus protagonistas transpiram desejo a cada cena, mas ele nunca chega a ser consumado. Em "Amor à flor da pele" reina o imagético, e a economia nos diálogos leva a atenção do público a se voltar para a beleza da fotografia de Christopher Doyle e Mark Lee Ping-bin, uma dupla tarimbada, que se encaixa perfeitamente na maneira que Kar-Wai tem de se lançar sobre seus objetos. Doyle, aliás, é um colaborador frequente do diretor, estando em sua equipe também em "2046 - Os segredos do amor" (2004) e "Eros" (2004), no segmento dirigido por Kar-Wai.
Aqui o cuidado com o visual se traduz em figurinos deslumbrantes usados pela personagem de Maggie Cheung. É sempre o mesmo modelo, o que muda são as estampas e desenhos de cada um. Tudo ideia de William Chang, que assina essa parte do filme. É através dessas roupas que o passar do tempo da história é percebido em sua sutileza. Essa é uma das obsessões do cineasta, que sempre apresenta um olhar aguçado para a rotina e os elementos mínimos de que ela é feita. Some-se a isso o fato de ele ser oriental, o que já lhe garante um espírito contemplativo inato. Resumindo, "Amor à flor da pele" representa o abandono da verborragia em prol de uma observação de cenas e situações que, por si só, já falam bastante.

13 de mai. de 2010

A importância da sorte observada em "Ponto final"

Acostumado a ambientar suas produções em Nova York, Woody Allen decidiu mudar de ares em 2005, quando dirigiu "Ponto final". Sua tão amada cidade saiu de cena para dar lugar a Londres, um dos recantos mais caros e charmosos de toda a Europa. A mudança não se deu apenas nesse filme, mas se estendeu para seus dois trabalhos seguintes, a comédia "Scoop - O grande furo" e o drama "O sonho de Cassandra". Involuntariamente, portanto, Allen acabou criando a "trilogia londrina". Para além dessa novidade em sua filmografia, o diretor também decidiu abrir mão do jazz, que acompanha quase todos os seus filmes, e utilizou na trilha sonora de "Ponto final" belas óperas.

De fato, esse outro estilo de composição harmoniza melhor com o tom intimista que ele imprime em sua primeira produção inglesa. Allen também se limita a ficar atrás das câmeras, como fizera no ano anterior, em "Melinda e Melinda". Segundo o próprio, ele já estaria muito velho para acumular as funções de ator e diretor em um mesmo filme. Para seus detratores, que o julgam egocêntrico, é uma razão a menos de crítica. "Ponto final" também representa uma novidade no universo alleniano nesse sentido
Ao longo de sua carreira, ele sempre atuou nos filmes que dirigiu e, quando não o fazia, algum ator assumia o papel de seu alter ego. Assim o foi em "Neblina e sombras" (1992), em que John Cusack incorporou seus trejeitos com perfeição, e também em "Celebridades" (1998), filme em que ficou a cargo de Kenneth Branagh a interpretação do indivíduo neurótico, inseguro e tartamudo que protagoniza as ações dramáticas. Mas isso não acontece em "Ponto final". O protagonista desse longa não lembra nem de longe as esquisitices que são tão caras ao diretor. Na verdade, Allen navega por águas mais densas dessa vez. O que não significa dizer que suas comédias de até então não sejam dotadas de profundidade.
Chris Wilton (Jonathan Rhys-Meyers) é o jovem protagonista agora, que deseja ardentemente ascender na escala social. Nem que para isso tenha de abrir mão de alguns princípios básicos que regem a moral humana desde tempos imemoriais. Ele é um ex-tenista que agora sobrevive dando aulas de tênis em um clube. Tem sim, certa dose de inquietude e de hesitação, o que o torna tão humano quanto qualquer um de nós. Ponto para Allen nesse sentido, pois seus roteiros sempre acabam encontrando uma maneira de aproximar os personagens de qualquer um de nós, gerando uma empatia quase imediata nos espectadores. A diferença é que nesse "Match point" (o título original, e também o outro nome pelo qual o filme é conhecido no Brasil) todo o comportamento do personagem é canalizado para uma esfera mais contida, sem as conhecidas pantomimas impressas pelo diretor.

A grande chance de virada na vida de Chris, que então vinha sobrevivendo graças às aulas de tênis que dava em clubes, surge na figura de Tom Hewett (Matthew Goode). Os dois se conhecem numa das idas de Tom ao clube, e Chris fica logo sabendo que aquele jovem é rico e importante na cidade. Não tarda para que haja uma aproximação entre eles, e Chris também descobre que seu mais novo amigo tem uma irmã trintona, que há muito espera por um namorado. Ela se chama Chloe (Emily Mortimer, uma atriz subestimada), e é doce e tímida. A isca perfeita para que nosso jovem se aproveite e alcance sua tão sonhada prosperidade.
E Chris realmente consegue. Pouco tempo depois, eles se casam, para felicidade de todos os envolvidos na história. Mas nada é tão simples como parece, e a complicação atende pelo nome de Nola Rice (Scarlett Johansson), uma mulher sensual e atraente que pode representar um grande perigo na escalada do rapaz. Nola é a futura esposa de Tom e, portanto, futura cunhada de Chris. Um fato importante que se torna um mero detalhe diante da força do desejo que opera sobre eles. Por isso, acabam se tornando amantes dos mais voluptuosos. O mundo externo parece ser esquecido por eles a cada novo encontro furtivo, e Allen não faz por menos em sequência carregadas de erotismo, temperadas com sugestivas árias de ópera, que arrastam a plateia para a posição de cúmplices daquele adultério.
O noivado de Nola e Tom não vai à frente, e Chloe, por sua vez, tem grande dificuldade para engravidar. Com o fim de seu noivado, Nola só pensa em assumir o romance que mantém com Chris. Fica claro a essa altura do filme que a narrativa é marcada pelo tempo psicológico, já que apenas quando o protagonista percebe os fatos e suas consequências que se nota que já se passaram vários meses. Diante da insistência de Nola para que Chris se separe da mulher, o relacionamento entre eles entra numa espiral de discussões e conflitos. Instaura-se então o impedimento moral para o personagem, o que também caracteriza a obra de Woody Allen. O jovem precisa encontrar um equilíbrio entre sua boa vida, rodeado de amigos e de viagens a belos países e seu caso secreto com Nola, que não mais se conforma com sua condição de amante.
A solução encontrada por Chris para seus problemas é, no mínimo, inesperada, tanto em termos de filmes allenianos quanto em termos de cinema em geral e vida cotidiana. Nesse ponto a ausência de julgamento do diretor fica patente, já que ele deixa ainda mais claro com que peças vinha jogando esse xadrez até então para traçar o percurso cheio de percalços de Chris: com os peões da amoralidade. Como muito já se falou em várias críticas a respeito do longa, há em "Ponto final", um diálogo indireto com "Crime e castigo", famosa obra literária de Fiódor Dostoiévski. Essa intertextualidade entre um roteiro seu e o romance da literatura russa já havia sido testada 16 anos antes, quando Allen dirigiu "Crimes e pecados" (1989). A grande questão levantada pelo cineasta é: até que ponto a sorte responde por aquilo que nos acontece ou que deixa de nos acontecer? Em cima dessa indagação, o novaiorquino fez um de seus trabalhos mais brilhantes, talhado por um estilo sofisticado, com diálogos inspirados, mas dessa vez voltados para o drama, que ele mostra também dominar. Além disso, o sentimento de culpa também aparece com grande força na história, mas não necessariamente existindo, por assim dizer.
Acompanhar o desdobramento dos fatos que se seguem à grande encruzilhada na qual Chris se encontra é tentar entender como podemos ser responsáveis pelos nossos destinos, e que muitas das escolhas estão em nossas mãos. Ninguém mais pode ser responsabilizado por nossos fracassos e nossos êxitos a não ser nós mesmos, quando damos poder demais a quem está ao nosso redor, sem que nos demos conta de que a felicidade não está nas coisas nem nas pessoas. Onde então ela estará? Respostas, existem muitas. Mas nenhuma ainda pode ser considerada definitiva nesse mundo de cientificismo e extrema racionalidade.

10 de mai. de 2010

A multiplicidade identitária europeia aumentada em "Do outro lado"

Fatih Akin tem, entre outras qualidades, um talento incontestável para escrever roteiros. Isso justifica o prêmio de melhor roteiro em Veneza para "Soul kitchen", sua obra mais recente. Mas seu filme imediatamente anterior, "Do outro lado", também tem muitos méritos que fazem dele uma sessão imperdível. O cineasta, um alemão de raízes turcas, se volta mais uma vez para a questão dos imigrantes em seu país, que resulta numa população multiétnica. Na verdade, essa já é uma tendência mundial. Por isso, muito do que aparece no longa pode ser estendido para outros países, com igual peso e significado.

Com uma narrativa dividida em capítulos, o que torna sua estrutura mais didática, o filme acompanha uma série de encontros e desencontros entre duas famílias, uma na Alemanha, e outra na Turquia. Inicialmente separadas espacialmente, suas trajetórias acabam entrecruzadas por uma série de viagens empreendidas por alguns de seus membros. Cada capítulo apresenta um título sempre bastante elucidativo, que já prenuncia diferentes acontecimentos trágicos. Tamanha clareza acaba preparando o espectador para conhecer um personagem e, logo em seguida, assistir à sua desgraça. O primeiro capítulo, intitulado "A morte de Yeter", mostra um dos protagonistas, Ali(Tuncel Kurtiz), um senhor aposentado, conhecendo Yeter (Nurgül Yesilçay). Ela é uma prostituta que imigrou da Turquia, e custeia os estudos de sua filha no país natal graças ao seu "ofício".
Diante de Yeter, Ali fica embevecido, e decide tomá-la para si, custeando todas as suas despesas, e lhe dando até mais do que ela recebia como prostituta. Mas, em troca, Ali cobra um preço muito alto a Yeter: uma possessividade absurda, que beira o patológico. Seu filho Nejat, um professor universitário de literatura alemã, não concorda com esse relacionamento, que acaba sendo um polo gerador de conflitos entre ambos. Tamanha divergência culmina numa sequência de discussão entre Ali e Yeter, da qual ela não escapa com vida, de modo que, assim, o título do capítulo se justifica. Com a morte de Yeter, o diretor vai apresentando ao público outras histórias que acabarão por ter relação com esse primeira. As tramas de "Do outro lado" vão se alinhavando até chegar a uma unidade, num estilo semelhante ao dos roteiros de Guillermo Arriaga, responsável, entre outras obras, por "Amores brutos" e "Babel". Além disso, recentemente ele estreou como diretor em "Vidas que se cruzam".
Para que o afunilamento de enredos aparentemente distantes funcione, porém, é bom que se evitem certas coincidências forçadas. E Akin segue esse preceito com habilidade, já que, mesmo com seus capítulos tendo títulos tão denunciativos, ainda há muitas surpresas à espera da plateia, o que faz que todos fiquem enredados até o último momento para saber que rumos aquelas vidas tomarão. No segundo capítulo, cujo título é "A morte de Ayten", a primeira cena que vemos é a de um caixão embarcando num avião de volta à Alemanha. Ayten (Hanna Schygulla) é a mãe de uma jovem estudante, Lotte, que participa ativamente de movimentos esquerdistas pelos direitos dos imigrantes. Seu lema acabará sendo também sua sentença de morte, como se verá mais tarde. Lotte auxilia uma jovem que não vê a mãe há tempos, e que está completamente sem dinheiro. A ativista se apaixona pela moça, revoltando sua mãe, que acha inútil toda a sua luta pelos direitos civis dos imigrantes.
É melhor que quem quiser saber o que acontece daqui para a frente procure assistir ao filme, pois contar mais do que já foi mencionado é entregar de bandeja todas as informações preciosas de um filme que, partindo de uma microestrutura, analisa e critica uma situação muito maior. Como em "Contra a parede", Fatih Akin se debruça sobre a questão do painel multicultural em que se transformou o continiente europeu nas últimas décadas. É uma tendência irreversível, por mais que se debatam os mais puristas. Sim, Akin faz cinema engajado, assim como quem deseja denunciar mazelas e preconceitos através da ficção. E sua atitude é totalmente louvável. E o final abrupto de seu filme só evidencia que a discussão está longe do fim.

7 de mai. de 2010

"Mar adentro", um libelo pelo direito de escolha?

No ano de 2005, o olhar cinéfilo se voltou para a Espanha, que apresentou ao mundo mais um bom exemplar de sua produção fílmica. Depois de vencer muitos prêmios importantes, "Mar adentro" se consagrou definitivamente faturando o Oscar de melhor filme estrangeiro. Sem falar em vitórias no Goya, a versão do Oscar daquele país. Natural que se questione quais são as qualidades que fizeram desse filme ganhador em tantas frentes distintas. Seu argumento é dos mais questionadores e polêmicos, e isso pode explicar, em parte, seu poder de comoção e atração sobre as plateias. Mas o longa não se resume a isso.

No centro da ação está Ramón Sanpedro (Javier Bardem), um homem marcado por uma tragédia que o consome há anos a fio. Ainda na juventude, quando era atleta, sofreu um acidente muito grave, que o deixou tetraplégico e, por conseguinte, o condenou a uma cama em seu quarto. Com isso, perdeu a liberdade que tanto amava, e que é essencial a qualquer ser humano que se preze. Desde o episódio terrível até hoje, transcorreram-se nada menos do que 26 anos. Para qualquer pessoa, esse período todo confinado em praticamente um único ambiente, e com a possibilidade de movimentos mínimos, é desolador. Para Ramón não é diferente.
Tanto é difícil para ele estar preso a uma cama por tannto tempo que seu grande desejo é poder morrer com dignidade. Sim, "Mar adentro" versa sobre um tema bastante espinhoso, do qual a grande maioria de nós fugimos peremptoriamente: a eutanásia. E um assunto tão delicado só pode ser tratado com muita delicadeza, como o faz Alejandro Amenábar, diretor do longa. Em seu currículo, ele apresenta poucos títulos, mas o suficiente para ser lembrado como um diretor de relevância. São dele "Morte ao vivo", uma investigação sobre o uso de violência exacerbada no cinema, "Preso na escuridão", um ensaio tenso sobre a memória - que geraria pouco tempo depois uma refilmagem nos EUA, "Vanilla sky" e "Os outros", ótimo exemplo de como um bom suspense não depende de insights estroboscópicos.
Depois dessa breve apresentação de sua obra pregressa, fica um pouco mais simples entender o porquê da grande qualidade de "Mar adentro". Amenábar parte de um tema árido para levar seu público a uma reflexão profunda a respeito do direito de viver e de morrer de cada indivíduo. O primeiro é dado a todos mas, quanto ao segundo, ainda encontra uma série de reservas, tanto entre os membros da sociedade, quanto perante a lei. A questão da eutanásia é pesada, mas o cineasta consegue atenuar sua intensidade inserindo sequências que beiram o poético. Numa trama em que há um personagem privado de sua capacidade de andar, correr, e pedalar, cenas que trazem seu voo imaginário sobre os campos abertos de sua pequena cidade são a porção de singeleza de que o enredo necessita.

Ramón trava uma luta na Justiça para conquistar o direito de morrer em paz, por meio da eutanásia. Assim como acontece com o público, sua decisão gera opiniões divididas, e há dois polos opostos com os quais ele dialoga, justificando sua escolha para quem é contra sua vontade, como é o caso de Rosa (Lola Dueñas, uma pitada de dulçor no filme), uma mulher simples que não admite que ele tenha tanto controle sobre seu prróprio destino. O ato de Ramón é de muita coragem, e faz a discussão sobre ser ou não legítimo uma pessoa com incapacidade permanente morrer pelas mãos da Medicina extrapolar os limites das quatro paredes da sala de cinema ou da sala da casa de quem está assistindo ao filme. Afinal, a tese defendida através do roteiro, também a cargo de Amenábar, é justa? Cabe ao espectador decidir, favoravelmente ou não, sobre o assunto.
Com seu discurso lúcido, mesmo depois da idade avançada, Ramón é capaz de convencer qualquer um da correção de sua escolha, e trava diálogos muito interessantes com os interlocutores que dele se aproximam. Ao seu lado está sua advogada, que luta com unhas e dentes para que seu direito de morrer seja realizado. Por tratar da eutanásia, "Mar adentro" acaba convocando a Igreja Católica e outros setores da sociedade. A mobilização que provoca é um de seus méritos.
Não se pode deixar de destacar também a atuação irrepreensível (esse adjetivo já se tornou um lugar comum) de Bardem. Desde sua primeira parceria com Almodóvar, em "Carne trêmula", ele já vinha mostrando que é um ator de primeiro time (ops, outro lugar comum), sendo capaz de traduzir belamente emoções tão destoantes quanto a alegria e a inquietude com igual talento. Sua caracterização para viver o personagem com muito mais anos do que ele também é bastante acertada, colaborando para que o filme se torne ainda mais bem realizado. Recentemente, "Mar adentro" ganhou uma espécie de primo-irmão vindo da França, "O escafandro e a borboleta". No filme de Julian Schnabel, como aqui, o protagnista passou por um grande revés que lhe trouxe a paralisia. Mas, diferentemente de Ramón, ainda crê que viver vale a pena. São discussões parecidas, mas com abordagens distintas. O grande acerto de "Mar adentro" é fazer com que pensemos no que é estar vivo, e no quanto ainda podemos dar valor à vida.

6 de mai. de 2010

"Por uma vida melhor", uma viagem de descoberta do mundo

Conhecido por seus retratos contundentes da hipocrisia estadunidense, Sam Mendes aposta numa produção de tintas mais suaves em "Por uma vida melhor". O diretor até hoje é lembrado por seu oscarizado "Beleza americana", mas aquele recente trabalho difere desse em muitos aspectos. Se no longa de 1999 ele jogava no vento as compulsões, traumas e repressões que afetavam uma família aparentemente estruturada, em "Por uma vida melhor" Mendes se propõe a acompanhar o processo de formação de um futuro clã.

Seus protagonistas são Burt (John Krasinski) e Verona (Maya Rudolph), um jovem casal que acabou de subir ao altar. Ela está grávida de sete meses, e pensa em todos os prós e contras que surgirão com o nascimento do bebê. Estão seguros de muitas decisões, mas ainda pensam no que pode ser realmente o melhor para seu filho. Depois que os pais de Burt decidem ir morar na Bélgica, o casal, que adora viagens e tem rotinas flexíveis nos seus respectivos empregos, percebe que nada mais os prende à cidadezinha em que habitam. Daí vem uma ideia tão interessante quanto insana: eles iniciam uma viagem para rever velhos conhecidos, na tentativa de conviver com diferentes modelos de família. Assim, poderão saber perto de quem será melhor criar o filho que esperam.
Esse ponto de partida faz com que o filme se transforme em uma divertida jornada de descobertas e alegrias para Burt e Verona. No original, o filme se chama "Away we go", que significa em português "distante nós vamos". Esse título chegou a ser usado quando ele foi exibido em festivais, mas acabou sendo substituído pelo atual, que carrega consigo um sabor meio piegas, que destoa do real conteúdo do filme. Trata-se de um Sam Mendes atípico, por sua ferocidade estar mais contida, e a comédia dar o tom em boa parte das cenas. Nas viagens que faz, o casal se depara com todo tipo de família, o que serve como uma ótima oportunidade para que Mendes desfie seu olhar nada complacente sobre o tradicional "American way of life", que, de certa forma, combate a cada filme que dirige. A sociedade estaduinidense é criticada de maneira mais sutil em "Por uma vida melhor", o que torna o longa um pouco mais palatável para a mioria esmagadora do público.

A história é recheada de passangens sarcásticas, que levam a refletir sobre algmas neuroses tipicamente humanas, como a obsessão das mulheres por um homem ideal, que Verona percebe com o tempo que simplesmente não existe. E o comportamento desorganizado dos homens, como é o caso de Burt, que tanto as enlouquece também ganha espaço aqui. Aos poucos, eles se dão conta de que cada modelo familiar que conhecem em sua longa jornada pode ser bom ou ruim, por razões distintas. E que não existe nem jamais existirá uma forma que delimite o que se deve ou não fazer na criação de um filho. Existe, sim, uma necessidade de adequação dos pais às demandas dos filhos, e dos filhos em relação ao aprendizado que seus pais lhes podem proporcionar. Então, Burt e Verona entendem que terão de encontrar seu próprio ponto de equilíbrio, para saber como agir com o bebê que está prestes a nascer.
O filme conta com boas atuações do par central, mas também com acertos da parte dos coadjuvantes. Jeff Daniels, por exemplo, se mostra bastante cativante e convincente durante os poucos miunutos de que dispõe em cena. Na pele de um pai que não se furta de dizer a verdade, seja ela qual for, ele ganha a simpatia da plateia, por mais paradoxal que isso possa parecer. A conversa dele com o filho e a nora, logo no começo do filme, é uma sequência divertidíssima. Além desse momento, "Por uma vida melhor" tem várias outras cenas hilariantes, como os questionamentos que Verona e Burt fazem um ao outro, na tentativa de entender o que, de fato, representa o nascimento de um bebê para um casal. Todos os transtorno que advêm disso são lembrados e comentados por eles, com uma linguagem leve e descontraída, bem cercada de coloquialismo. E também há muitas situações quase surreais, que mexem com o humor do espectador a todo momento.
Uma das sequências mais interessantes de todo o filme é a que mostra a visita de Burt e Verona a LN (Maggie Gylenhaal, menos talentosa que o irmão) e Tom (Chris Messina). Eles formam uma família bem diferente do convencional, demonstrando pensamentos sobre a maternidade e o sexo que deixam os futuros pais completamente enrubescidos. LN admite que não vé problema algum em dividir a cama com o filho pequeno enquanto transa com o marido. Chocados, Burt e Verona logo notam que aquele definitivamente não é o modelo de família que eles tanto almejam. Antes de dar as costas para aqueles dois, os protagonistas enlouquecem os então amigos com uma prática que para qualquer outro casal é banal. LN diz que não carrega seu filho no carrinho, pois entende que assim o estaria empurrando para longe dela. Por isso, recusa o carrinho que Burt e Verona lhe dá de presente. É aí que eles decidem pegar o menino e correr com ele pela casa no veículo, para desespero de pais tão "alternativos", sob a promessa de jamais voltarem ali.
E é assim, sem grandes pretensões, que Sam Mendes conduz a viagem de seus personagens, que é tanto literal quanto metafórica, porquanto gera neles um sentimento de urgência e viver a vida sem grandes planos ou regras mirabolantes. o que é preciso de verdade é o desejo de acertar, e a vontade de dar o melhor de si para um ser humano que depende deles para sua formação. É um filme fora do padrão Mendes porque destila humor numa escala acima do habitual para seu estilo feroz, o que funciona como um atestado de seu ecletismo. Mas que não se confundam leveza e ingenuidade, pois a mão do cineasta ainda está bastante certeira.

5 de mai. de 2010

"A aventura" ou os espaços em branco da existência

A conjunção de talento e maturidade na direção de um filme é uma das características mais apciáveis no cinema como um todo. É possível citar muitos nomes que, a cada filme que lançam, embevecem o público com tramas consistentes e refelxivas sobre a natureza humana. Assim o é Michelangelo Antonioni, um nome icônico tanto para a cena italiana, quanto para a cinematografia ocidental. O diretor inscreveu para sempre seu nome na história com sua carreira de análises profundas e meticulosas das dores e delícias de se respirar sobre a terra.

Em "A aventura", ele inaugura aquela que posteriormente seria conhecida pelo interessante título de Trilogia da Incomunicabilidade. Seu projeto era flagrar o que está por trás das aparências dos ditos felizes e realizados. Protagonistas ricos, mergulhados em suas angústias interiores, tentando entender as razões do viver tomaram a tela nos três filmes do conjunto. Junto com o começo da década de 60 vieram esses exemplares do bom cinema. O primeiro filme é de 1960, o segundo é de 1961 e o terceiro é de 1962. Além do título já citado do primeiro, há o segundo, "A noite", e o terceiro, "O eclipse".
Para filmar a abertura de sua trilogia, Antonioni elegeu Monica Vitti, que foi sua mulher na vida real durante muitos anos. Além dela, estão no rol de protagonistas a não menos bela Léa Massari e o talentoso Gabriele Ferzetti. Eles são três amigos milionários que decidem fazer um charmoso cruzeiro pela costa do Mediterrâneo. Qualquer relação entre a jornada deles com o título, porém, é precipitada, como se descobre mais adiante. Eles estão profundamente entediados, e esse sentimento se traduz em diálogos que versam sobre o vazio da humanidade, somados a uma fotografia seca, de aspecto semidesértico. Cada minuto de "A aventura" é impregnado de uma fixidez angustiante, que pode ser lida como incômoda por boa parte dos espectadores.
Aliás, o filme, desde sua primeira exibição pública, gerou reações de descontentamento no público que assistia a ele.

Uma das razões que levaram a essa certa depreciação é o rumo que a história toma lá pela sua metade. Voltando a ela, o que ocorre durante o passeio de Claudia (Vitti), Sandro (Ferzetti) e Anna (Massari) é o desaparecimento misterioso da terceira. Sem qualquer razão aparente, ela simplesmente sai de cena, deixando no ar um sensação de ausência de explicação que vai acompanhar a trajetória dos outros dois remanescentes.
Claudio fica desarvorado com o sumiço repentino de sua namorada, e empreende uma busca desesperada pelo seu paradeiro, a qual logo se revela em vão. Seu desvelo em resolver o caso logo vai dando lugar a uma estranha apatia, que culmina com o início de um caso justamente com Claudia, a melhor amiga de sua então namorada. O que pode parecer uma inserção de romantismo em meio a uma trama com ares tão pessimistas, contudo, logo se revela mais um aspecto do tédio que toma conta das relações entre os personagens. Antonioni foi habilidoso em construir um filme denso e incômodo, que em vários momentos se mostra perturbador. O que mais desapontou os espectadores, já na primeira sessão do filme, foi o fato de os mistério do desaparecimento de Anna ir sendo abandonado ao longo da narrativa. O esperado seria que elea fosse encontrada, ou que o diretor dessa uma explicação para aquele sumiço.
Mas para olhos mais atentos, esse detalhe acaba tendo baixa relevância, pois a força motriz do filme é a investigação dos medos, das inseguranças e das fragilidades que todo ser humano tem. Alguns em maior, outros em menos grau. A câmera do cineasta nos descortina uma Itália deslumbrante e muito requintada, mas cujos persoanagens estão tomados por uma apatia desconcertante. "A aventura" pode ser enxergado como uma tentativa ambiciosa de apresentar os abismos que cercam as relações entre os indivíduos, que mesmo uma infinidade de palavras não pode cobrir. Antonioni lança um olhar dolorido sobre os homens, que torna o filme de difícil digestão para a maioria das plateias. A crítica, por outro lado, sempre deu grande valor à obra em questão, e também a outros trabalhos desse figura emblemática.
É curioso saber que o diretor sofreu um derrame cerebral que o deixou mudo. Durante boa parte de sua vida, o artista do silêncio foi condenado a não poder usar as palavras na fala, o que é um dado tão ruim quanto enriquecedor de sua filmografia. Assim como em outros filmes de sua produtiva carreira, em "A aventura" a imagem tem uma importância crucial, pois é ela que norteia os pensamentos e ações dos personagens, que não são muitas. Nem Claudia nem Sandro estão perdidamente apaixonados um pelo outro, apenas encontraram numa espécie de romance uma válvula de escape para suas frustrações individuais. Com isso, se prestam a sorver a plenitude do outro, para que possam dar conta de sua incompletude. A busca de Sandro e Claudia é a busca de qualquer ser humano, e esse efeito especular provocado pelo filme é uma de su grandes qualidades, mas também sua fonte de inquietação, que, por sua vez, gera a desesperança. Não é necessário concordar com o retrato pintado por Antonioni, mas não se pode negar que ele tem um fundo de verdade dentro de si.

3 de mai. de 2010

A simplicidade do cotidiano flagrada em "É proibido fumar"

Acertar o tom na comédia não é tarefa das mais fáceis. Porém, sempra surge um filme em que a delicada alquimia entre humor e inteligência é conquistada. Nesse contexto está "É proibido fumar", de Anna Muylaert. Do seu currículo constam a adaptação para a telvisão dos quadrinhos do Menino Maluquinho, alem de uma experiência anterior na direção, que foi "Durval discos" (2002). Afora esses dois trabalhos, há outras poucas referências pregressas a Anna.

Em "É proibido fumar" a cineasta entrega um trabalho de artesã, trazendo muito do humor negro que seu filme anterior continha. Sua verve cômica aparece constantemente diluída por um certo teor dramático, sem que o resultado final descambe mais para um aspecto que para o outro. Aqui, tem-se a história de Baby (Glória Pires), um mulher de meia-idade que não tem um parceiro há tempos, e se ressente disso. Suas irmãs comentam que já é tempo de ela deixar a solidão, mas Baby se mostra um pouco exigente com relação ao sexo oposto. Além disso, cultiva o hábito de fumar, o que parece afugentar alguns namorados em potencial. Assim ela vai levando a vida sem grandes perspectivas, dando suas aulas particulares de violão, detalhe que evidencia o bom trabalho de composição de Glória para a personagem. Sua Baby se veste como há muito não se faz mais, apresentando um visual sempre desleixado.
Tudo começa a ganhar novos rumos quando ela conhece Max (Paulo Miklos, cada vez mais mostrando-se bom ator), um cantor de churrasacaria que acabou de se separar. Os primeiros contatos entre os dois rendem cenas bastante divertidas para o filme. Baby fica bastante interessada naquele que é seu novo vizinho, e inventa pretextos para ir falar com ele. A professora vê em Max uma chance de sair da "seca" em que se encontra, rompendo com sua solidão crônica. Partindo desse encontro entre Baby e Max, Anna Muylaert constrói uma história cativante e bem-humorada, que deixa o espectador mais leve durante a sessão e depois dela. Muitas cenas são inspiradas, como a que mostra Baby em uma festa se dançando horrores e realmente se divertindo com isso. Essa sequência também evidencia a ótima trilha sonora, a cargo de Márcio Nigro. De fato, é um trabalho que enriquece o longa.

O grande problema que Max e Baby enfrentam é o fato de que ele ainda não esqueceu totalmente sua ex-mulher, e sempre acaba fazendo menção à sua Stellinha (Alessandra Colassanti), que aparece lá pela segunda metade da história para atrapalhar ainda mais a love story do simpático casal. Vale lembrar que, por amor a Max, Baby se empenha em parar de fumar, já que seu hábito o desagrada profundamente. Largar o vício, contudo, é difícil demais para ela, que tem recaídas ao longo de suas tentativas. Seguindo um programa de ajuda a dependentes de nicotina, ela repete para si mesma em casa: "O cigarro parece meu amigo, mas é meu inimigo", como se fosse um mantra que a impedisse de fumar.
À dificuldade de Baby em abandonar o cigarro se soma sua desconfiança de que Max a esteja traindo, fato que se confirma quando ele lhe conta que voltou a ver sua ex-mulher. A confissão a deixa arrasada, fazendo-a fumar de novo com toda a vontade que vinha reprimindo até então. Os fatos a deixam envolvida num misto de ansiedade, culpa e tristeza, levando o aspecto cômico do texto a níveis baixíssimos, e abrindo espaço para boas doses de drama. Nada que resvale para o piegas, é bom que se diga. Muito pelo contrário. Muylaert oferece ao público a alternativa de um filme nacional que não se deixa levar pela maioria dos lugares-comuns que são relacionados à produção brasileira. Nada de violência nas favelas, ou de muitos impropérios sendo ditos a cada cinco minutos, nem mesmo personagens unilaterais, sendo este último um clichê universal. Não há nada de errado com os clichês, mas é preciso saber usá-los com muita parcimônia, para o efeito de seu uso tenha consistência. No caso de filmes que tendem para o humor, como "É proibido fumar", é preciso ser como um bom piadista: a graça não está necessariamente na piada, mas sim na forma como ela é contada para o interlocutor. Isso pode fazer toda a diferença no riso ao final da história. E esse talento não falta a Muylaert.
A diretora consegue trazer uma história bem contada, mesmo que seja simples, e a emoldura em uma São Paulo algo sombria, envolta em uma atmosfera plúmbea, diferente de como ela normalmente se apresenta. Aí está outro mérito da diretora, dar uma visão nova de um local que já foi esquadrinhado à exaustão em outras produções, de gêneros diversos. Ela espia gente comum vivendo como os acontecimentos vão se dando, e extrai atuações preciosas de todo o elenco. Em especial de Glória Pires, que faz muito melhor do que se poderia supor sua Baby. A atriz levou merecidamente o Candango de melhor atriz no Festival de Brasília de 2009, um claro reconhecimento de seu trabalho bem feito. Ver em cena alguém tão tarimbado é sempre um dos grandes prazeres dos cinéfilos que estão atrás de películas que falem mais ao coração. E nessa história ainda sobra espaço para uma certa Pitty se arriscar no ofício da atuação, e também não faz feio. Também não se pode negar que há uma marca autoral forte em "É proibido fumar", e, nos descaminhos que a vida tem, tentar desenovelá-los por meio de um argumento comum, a depender de como ele se desenvolva, pode ser um convite atraente.