29 de ago. de 2011

Old boy: a fidelidade a uma gramática de virulência



O cinema oriental prova, de tempos em tempos, que não é apenas um espaço de contemplação. Old boy (idem, 2003) faz parte da estirpe de filmes que se encaixam em uma descrição que inclui muita violência e reviravoltas verdadeiramente surpreendentes, e comprova as múltiplas possibilidades de uma área do globo que costumeiramente se associa à tranquilidade e à parcimônia. Dirigido por Park Chan-wook, o longa-metragem não economizana intensidade das imagens e no uso de referências a outros filmes para contar a trajetória de Oh Dae-su (Choi Min-sik), um homem totalmente comum que é sequestrado misteriosamente e vai parar em quarto minúsculo, onde fica preso por 15 anos sem qualquer razão aparente. Nesse longo ínterim, ele só conta com uma televisão para manter algum tipo de contato com o mundo exterior, e recebe suas refeições diárias por uma mão desconhecida. Também todos os dias, um gás potente invade o quarto e o faz dormir. De tempos em tempos, alguém entra ali e lhe corta o cabelo e a barba. Até que, um dia, ele é solto e se vê jogado na rua e sem qualquer perspectiva.

As grandes questões que passam a intrigar esse homem são: por que ele ficou tanto tempo preso? Quem teria algo contra ele para lhe fazer tão mal? Por que ele foi solto de repente? Sedento pelas respostas, ele empreende uma caçada quase animalesca em busca de quem possa ter sido seu algoz, se é que, de fato, foi apenas uma pessoa. Está formado o enredo de um filme que compõe uma trilogia sobre a vingança. Este é o segundo tomo da trilogia idealizada por Chan-wook , que se abre com Mr. Vingança (Boksunen Naui Got, 2002) e se encerra com Lady Vingança (Chinjeolhan Geumjasshi, 2005), e que apresenta tramas independentes entre si, mas que guardam como ponto de contato as histórias de pessoas que se viram passadas para trás e que querem cobrar da vida aquilo que lhes foi tirado. No caso da história de Oh Dae-su, ainda há outros elementos que lhe dão contornos bastante dramáticos: ele descobre, enquanto está preso, que sua mulher foi assassinada, e que ele é o principal suspeito. Portanto, o personagem tem motivações mais do que suficientes para se rebelar contra o mundo e contra tudo o que seus inimigos lhe trouxeram de pior. Elas são a deixa para que o diretor exponha sua gramática visceral e virulenta ao longo de pouco mais de duas horas de narrativa.

Old boy é um filme que exige concentração e certa resistência para encarar certas sequências pesadas ou indigestas, como a que mostra o protagonista destrinchando um polvo vivo e o comendo, ou outra que o traz cortando a sua própria língua, uma automutilação que está totalmente encaixada a uma das circunstâncias que se constroem ao longo do enredo. Aqui, tem-se novamente a exploração da história de um herói solitário e justiceiro que se vale de seus próprios méritos físicos e psicológicos para alcançar a desforra que lhe pode trazer uma suposta tranquilidade. Há pouco espaço para respirar na produção, que abusa de certos movimentos frenéticos de câmera e de espasmos narrativos que deixam o espectador em estado de tensão, e com muita curiosidade pela descoberta do responsável pelos anos de tortura impostos a Oh Dae-su, interpretado com talento e impacto por Choi Min-sik, que teve de treinar por 6 semanas e emagrecer 12 quilos para o papel, duas demonstrações de empenho e entrega ao personagem que, em certos momentos, se vale da força do pensamento e de seus sentidos aguçados ao longo dos anos para chegar aonde deseja com as pistas que vai encontrando em seu percurso.



A mescla de referências a outros filmes é um dos aspectos notáveis de Old boy, que dialoga com elementos de títulos como O conde de monte Cristo (The count of mont Christ, 2002) e Muito além de jardim (Being there, 1979), por conta de aspectos que aparecem em sua sinopse. De alguma maneira, são uma amostra dos filmes que compõem o currículo de espectador do cineasta, que flerta com alguns tiques facilmente encontradiços em produções estadunidenses que se baseiam no tema da vingança, protagonizados por nomes como Jean-Claude Van Damme e Sylvester Stallone, arquétipos do herói sozinho contra tudo e contra todos. O filme ganhou um grande entusiasta, ninguém menos que Quentin Tarantino, que compunha o júri do festival de Cannes no ano em que o filme foi exibido por lá. É notório que Old boy também dialogue com produções de cunho trash, ou com os chamados filmes B, ambos subtipos de produções de baixo orçamento que congregam em si uma série de elementos aberrantes e desenrolares mirabolantes. A trama do filme de Chan-wook é exatamente assim e, mesmo dessa forma, consegue convencer e arrastar o público à posição de cumplicidade com aquela trajetória tortuosa de um homem que anseia pela restituição daquilo que lhe foi roubado.

Ainda com relação ao trabalho de Min-sik, cabe comentar que ele abriu mão de um dublê, e executou todas a cenas de seu personagem, que é praticamente onipresente na trama, e vivencia experiências extremas, como as que já foram mencionadas anteriormente. Sua inclinação para fazer o melhor por si mesmo engrandecem ainda mais o seu trabalho como ator e reforçam seu grande talento. A tal cena do polvo gerou grande controvérsia por onde foi exibida, e exigiu o uso de quatro indivíduos da espécie para que se chegasse ao resultado desejado. Ao vê-la no filme, pode-se ter uma série de reações, e classificá-la como asquerosa, repulsiva ou até risível, mas não como indiferente. Por meio desses elementos, o diretor conjuga uma premissa que é cara ao Tarantino de Kill Bill – Volume 1 (Kill Bill: Vol. 1, 2003), Kill Bill – Volume 2 (Kill Bill: Vol., 2004) e Bastardos inglórios (Inglorious basterds, 2009), filmes que trazem protagonistas obstinados por uma revanche, e também um tempero hitchcockiano, pelo grande mistério a ser desvendado no decorrer da trama. A fusão é bem-sucedida e responde pela capacidade de despertamento do interesse pelo filme. O sadismo e as doses cavalares de humor negro também contribuem para uma certa concentração de originalidade no filme, que passa longe do politicamente correto que suplanta certas experiências narrativas e de construção de personagens. É alarmante o fato de que a indústria hollywoodiana esteja interessada em refilmá-lo pelas mãos de Spike Lee. Totalmente desnecessária, a atitude pode representar um verdadeiro estupro ao trabalho de um ex-estudante de filosofia.

23 de ago. de 2011

Sangue negro, a ganância perscrutada e depurada




Afeito aos retratos humanos emblemáticos e monumentais, Paul Thomas Anderson construiu um épico individual através de Sangue negro (There will be blood, 2007), seu um de seus trabalhos mais recentes. O diretor decidiu concentrar seu foco narrativo na figura de Daniel Plainview (Daniel Day-Lewis), um homem que pode ser facilmente considerado o espelho da ganância desenfreada e da solidão escolhida como filosofia de vida. Aqui, Anderson prossegue com a aproximação intensa de um protagonista absoluto, tal qual fez em Embriagado de amor (Punch drunk Love, 2002), e se distancia do painel de tipos que construiu em Boogie nights – Prazer sem limites (Boogie nights, 1997) e Magnólia (Magnolia, 1999). Entretanto, se no filme estrelado por Adam Sandler sua abordagem era muito mais inclinada para o lado cômico, em Sangue negro ele investe sua proposta de uma forte carga dramática. Fica claro para o espectador desde o início da história que Daniel é um misantropo convicto, que chega a declarar, a certa altura da narrativa, que odeia a maioria das pessoas.

O filme é a deixa para que o realizador trate de um sentimento que está recoberto de juízo negativo, mas que pode estar presente com muito mais intensidade na maioria dos indivíduos. Outrossim, ele reaviva o debate entre fé e ceticismo, confrontando seu protagonista com um pastor que atende pelo nome de Eli Sunday (Paul Dano) – o sobrenome do personagem soa logo como um trocadilho assaz irônico. Com base nesses dois grandes temas e nesses dois personagens, Anderson trilha um caminho de grandiosidade, ainda que, em determinado momento, o marasmo venha acometer a obra de modo irreversível. Não há como negar que as discussões levantadas por Sangue negro têm grande pertinência. Mas há que se lamentar que haja uma sensação de que a teoria parecia melhor do que a prática. São parte de um juízo de valor altamente subjetivo, que não chegam a comprometer a narrativa de um modo geral. Por outro lado, nota-se que a duração do filme é excessiva. A prolixidade é cara ao cineasta, mas nunca havia sido tão dispensável quanto nesse filme. O enredo se alonga em demasia, abrindo espaço para o enfado e a grandiloquência desnecessária. À época de seu lançamento, os elogios foram praticamente unânimes, mas não é levianamente que se afirma que este seja um caso de filme superestimado.

Ressalvas feitas, vale reservar um parágrafo inteiro para comentar a atuação preciosa de Day-Lewis. A metamorfose do ator em personagem é incrível, e demonstra a grande competência de um profissional bissexto. Depois dele. Só Sean Penn pode ostentar o título de ator mais raro no cinema estadunidense contemporâneo, o que é uma verdade dolorosa de se constatar. Ambos são dos melhores atores de sua geração, e coroam os filmes em cujo elenco estão de uma qualidade inenarrável. Voltando a Day-Lewis, sua composição como um homem que beira a repulsividade em tantas ocasiões, manifestando sua pobreza de espírito em contraste com sua riqueza material. Daniel Plainview é o retrato arquetípico do vazio do ser humano, impossível de ser preenchido com ouro e bens, ou com petróleo, a obsessão do personagem. Por mais autoajuda que esse comentário possa parecer, ele encontra respaldo na vivência diária de cada um, mais cedo ou mais tarde. O explorador de terras é a prova viva de que o afeto e a tranquilidade não se compram com moedas cunhadas com níquel nem com papéis retangulares coloridos que se convencionou valorizar para que se tenha um passe para o mundo.



Sangue negro foi comparado, com evidente exagero, a Cidadão Kane (Citizen Kane, 1926), ao qual se assemelha pelo fato de este também ser um épico sobre a ascensão de um homem ordinário. Contudo, ainda não foi dessa vez que o cinema estadunidense produziu uma obra que se equiparasse àquela; não por uma questão de qualidade indiscutível de Cidadão Kane, mas por uma aparente dissonância de propósitos entre o filme de Orson Welles e o de Anderson. Há uma outra falha grave na condução do segundo: o roteiro deixa entrever certa porção de maniqueísmo, subjacente aos confrontos diretos ou velados entre Plainview e Sunday, demonstrando um certo apelo tendencioso na perspectiva do diretor. A propósito, Sangue negro vem depois de um hiato relativamente longo do diretor. Cinco anos separam o filme de seu anterior. Nesse ínterim, ele auxiliou seu amigo e mestre Robert Altman, colaborando na finalização do último filme do grande artista, A última noite (A praire home companion, 2006). O resultado final desse trabalho é aquém do que Embriagado de amor – o filme precedente – alcançou. A comparação pode soar díspar, mas uma observação um pouco mais atenta dá conta de elaborar a percepção de que ambos os filmes tratam de sujeitos deslocados, em busca de uma direção para suas vidas em desordem interna. Um deles segue a via cômica. O outro, se embrenha na porção dramática.

Curiosamente, Daniel Day-Lewis se tornou fã de Paul Thomas Anderson depois de assistir a Embriagado de amor, e Sangue negro só foi rodado porque o ator aceitou o convite para estar no elenco do filme. Deriva da poderosa direção de atores e do grande talento de Day-Lewis a grande qualidade do longa-metragem, além da presença magnética de Paul Dano em cena. O jovem exercita sua capacidade dramática com desenvoltura, e oferece uma interpretação e um personagem totalmente diferentes do que fez em Pequena Missa Sunshine (Littel Miss Sunshine, 2006), que era seu filme mais representativo até aqui. A intensidade do ataque de Anderson à religião se manifesta sobretudo na fala de Sunday, um tanto quanto enviesada. De qualquer maneira, e paradoxalmente, a força do filme também reside nesses diálogos, que, em última instância, podem ser possibilidades de leitura e tomadas de posição individuais. Aliás, o primeiro diálogo só acontece após pouco mais de 10 minutos de filme, o que confere ao plano de abertura uma aura contemplativa e também angustiadora. Ali está a quintessência do homem decaído e desalojado de um lugar seguro que lhe dê guarida.

O transcorrer do fio narrativo do filme agiganta as sua potencialidades, mas também evidencia seu aspecto regular. Escrito pelo próprio Anderson a partir de Upton Sinclair, autor do livro no qual a obra se baseia, o roteiro sofre engasgos e espasmos desnecessários, que acabam quase sempre sendo cobertos pela interpretação devastadora de Day-Lewis como um homem tão irascível. Ele é o grande trunfo que o diretor tem nas mãos para empreender sua jornada de observação de alguém em estado de busca permanente. Aliados a esse detalhe, estão alguns belos planos uma trilha sonora incrível assinada por Jonny Greenwood, que calcificam a história e lhe asseguram um tônus dramático importante. Há grandes momentos em Sangue negro, que podem responder pelo impacto do espectador. Todavia, à semelhança do vazio que parece perseguir Plainview o tempo todo, o filme deixa a sensação residual de que poderia ter sido mais enxuto e de ter fechado certas portas entreabertas. Seu contemporâneo, Onde os fracos não têm vez (No country for old men, 2007), trata de questões parecidas, como a violência e a brutalidade, e chega a um resultado final mais apreciável. Em síntese, sobra a certeza de Anderson foi feliz ao colocar na tela uma grande metáfora para a ganância, que aparece perscrutada e depurada.

14 de ago. de 2011

Investigações sobre a incerteza em Luz de inverno


Quando dirigiu Luz de inverno (Nattvardsgästerna, 1962), Ingmar Bergman já tinha no currículo a profunda investigação sobre a crise da fé chamada O sétimo selo (Det Sjunde inseglet, 1957), que arrebata ainda hoje a população cinéfila por suas qualidades notáveis. Ele também já dirigira A fonte da donzela (Jungfrukällan, 1959), um ensaio a respeito dos abalos que os justos podem sofrer sobre a terra. Com a chegada da década de 60, o cineasta se lançou no empreendimento de construção da chamada Trilogia do Silêncio, cuja abertura se deu com Através de um espelho (Såsom i en spegel, 1961) e prosseguiu com o filme citado inicialmente. A exemplo do anterior, esse segundo exemplar é um mergulho intenso nos recônditos da alma humana, com o aparente intuito de desnudar os temores e recalcitrações oriundas da natureza humana, em constante estado de variação e reorganização. Claramente, é mais um filme que se origina da inquietude de Bergman no que tange aos mistérios relativos à esfera divinal.

Como em tantos outros trabalhos, Luz de inverno traz uma nova colaboração do diretor com Gunnar Björnstrand e Max Von Sydow, os atores mais recorrentes de sua filmografia. Aqui, eles personificam, cada qual a seu modo, o desespero da incerteza sobre o caminhar da vida e do mundo. O primeiro é Thomas Ericsson, o pastor de uma pequena cidade que ministra as missas em bom latim, como convinha ao tempo em que a narrativa se situa. A sua intimidade com a vida cristã, entretanto, não o impede de estar atravessando uma intensa crise espritual, que deriva, em parte, da notícia de que a China está investindo em bombas nucleares. Esse mesmo fato está respondendo pelo abalo das convicções do segundo personagem, Jonas Persson, um simplório pescador que procura por respostas no pastor, sem imaginar, inicialmente, que ele possa lhas dar. O argumento do filme é tão-somente esse, e é mais do que suficiente para, ao longo de pouco mais de uma hora, Bergman transborde sua conhecida busca por entender o mundo ao redor e o silêncio de Deus, um conteúdo que, de uma forma ou de outra, atravessa toda a sua obra, sempre tão sinestésica e atemporal.

A simplicidade que se reveste de uma grande profundidade é um dos grandes trunfos do filme. Em entrevista recente, o realizador afirmou que, na verdade, ele não criara uma trilogia como dissera à época dos tais filmes, mas que dissera que era uma série pelo fato de as trilogias, naquele momento, estarem muito na moda. O comentário do diretor soa um tanto evasivo, pois, no fundo, os filmes guardam muitas afinidades entre si, podendo, de fato, ser pertencentes a uma trilogia. Especificamente em Luz de inverno, a potência dramática é verificada nos diálogos doloridos que são travados entre os personagens. Eles são a demonstração do uso hábil da palavra feito pelo diretor. Ela é, por assim dizer, sua grande arma, aliada à imagem, para exumar suas dúvidas e galvanizá-las nas figuras daqueles homens, sendo, cada um deles, um alter ego seu. Jonas busca palavras de conforto em Thomas (note-se a semelhança fônica com o nome de Tomé, o discípulo que precisava ver para crer), mas o pastor é incapaz de emiti-las, por seu estado também ser o de desalento. Não tardará para que aquele homem encontre um meio de dar cabo de seu desespero, fato que será noticiado pelos lábios de uma outra personagem.



O longa-metragem também traz mais uma parceria entre Bergman e Sven Nykvist, seu diretor de fotografia predileto. Mesmo que os filmes a cores já fossem uma prática comum naquele momento, o cineasta continuava insistindo em dirigir se valendo das variações de cinza, validando mais uma vez a tese de recorte da realidade associada ao preto e branco, especialmente na contemporaneidade. Vale comentar que Luz de inverno foi rodado durante a Guerra Fria, período no qual o mundo assistia à gana de dois lados do planeta por conquistar um espaço total. Essa sanha desmedida
do ser humano por poder e domínio é fatal para as crenças dos dois personagens, que se apresentam como fragmentos da personalidade do próprio diretor. Ainda que não seja necessário recorrer à vida pessoal do autor de uma obra nem saber o que ele quis dizer para entendê-la, pode-se perceber que há traços autobiográficos na obra, ao menos no que diz respeito à religiosidade abalada que atravessa o contexto do filme. Bergman era filho de um pastor extremamente rígido e, apesar dos espasmos de incerteza por que sua fé passava, nunca conseguiu abandonar totalmente a ideia da existência de Deus e de sua soberania. Semelhantemente, outros filósofos inquiriram acerca da figura divina, inicialmente refutando-a, para posteriormente acolhê-la, concluindo que é indispensável haver um ser maior que tudo para responder pela criação.

A tensão paira o tempo todo sobre Luz de inverno, cujo título transmite a poesia sensorial oferecida por Bergman em seu trabalho. Como em uma obra teatral, os diálogos são a grande força do filme, e confirmam a filiação do diretor também a essa forma de expressão artística. A encenação dos atores, de farto talento, ajuda a compor um quadro de busca por aquilo que se perdeu. Na condição de paladino da crença em Deus, Thomas deixa a desejar, deixando transparecer, inclusive, seu envolvimento com uma mulher, papel defendido com graciosidade e sofreguidão por Ingrid Thulin, uma das atrizes mais belas de seu país e de sua geração. Nos dois encontros entre os personagens, resvalam os fortes laços que os unem, que podem deixar estupefatos certos espectadores. Como sugere a trilogia em que o filme estaria inserido, o silêncio é bastante valorizado em Luz de inverno, o que significa dizer que as reverberações internas de Thomas, Jonas e Märta ganham espaço. Ouve-se o sons das águas do lugarejo afastado em que transcorre a trama, esquadrinha-se as imagens associadas àquele espaço quase remoto. Os rostos de cada um deles, vislumbrados em belos closes, assinalam a expressão da desesperança, e a realidade partida do homem que se dá conta de que não possui a inteireza que se pensava possuir em séculos pregressos. Todos estão em estado de constante procura, como quem busca reunir seus cacos e se fiar em alguma instância superior.

10 de ago. de 2011

Feridas abertas a cicatrizar em A vida secreta das palavras


A cineasta catalã Isabel Coixet gosta de abordar dramas humanos com um toque de esperança. Em Minha vida sem mim (Mi vida sin mí, 2003), contou a história de uma jovem mãe que se vê diante da iminência da própria morte. A trama, em si desprovida de originalidade, ganhou uma dimensão belíssima sob suas lentes. A vida secreta das palavras (La vida secreta de las palabras, 2005) é seu terceiro filme, e nele ela volta a se debruçar sobre a narrativa de uma grande tragédia particular que altera uma vida. A protagonista é Hanna (Sarah Polley), uma enfermeira extremamente introspectiva que não sabe o que fazer de sua vida quando não está trabalhando. Ela carrega consigo uma dor muito forte, como é possível supor desde o início do filme, mas não se sabe exatamente qual seja a sua causa. Ela é funcionária de uma indústria têxtil, e seu comportamento misterioso impede qualquer aproximação dos colegas da empresa. Ela conserva sua aura de distância o tempo todo e, quando é colocada de férias, não consegue ficar em casa descansando. Com isso, acaba indo cuidar de um homem acidentado em uma plataforma de petróleo. Esse homem atende pelo nome de Josef (Tim Robbins), e sofreu queimaduras em um acidente de trabalho. Como Hanna, ele é reservado e pouco afeito ao contato com estranhos, mas passa a contar com a ajuda da moça enquanto seu estado geral não lhe permite autonomia plena.

É no encontro entre essas duas pessoas tão distantes e, ao mesmo tempo, tão semelhantes, que a narrativa de A vida secreta das palavras se desenvolve. Em pouco menos de duas horas, somos confrontados com a necessidade que todo ser humano tem de estabelecer conexões com alguém, tanto pela via da amizade quanto pela via do amor. Os dois protagonistas estão inicialmente fechados em seus mundos e em suas dores particulares, mas vão aprendendo que lidar com o sofrimento alheio pode ser uma boa maneira de mitigar parte de sua dor individual. Em um de seus textos, Clarice Lispector afirma que, quando buscamos salvar uma pessoa, no fundo, estamos tentando salvar a nós mesmos, na esperança de obter algum tipo de recompensa pelo bem praticado. Talvez seja esse o caso de Hanna: em sua tentativa de se salvar da própria dor, ela escolhe voluntariamente ajudar alguém que se encontra em uma situação talvez pior do que a dela. Instala-se, portanto, uma profunda simbiose entre os personagens, que passam a estar irreversivelmente unidos dali em diante. Coixet aposta nos silêncios que comunicam, nos olhares que transmitem mensagens e o estado de espírito de quem os lança, tornando A vida secreta das palavras um filme cheio de sentimento, que fala ao coração e à alma.

A diretora retoma aqui sua parceria com Sarah Polley, com quem trabalhara em Minha vida sem mim. Novamente, a dobradinha entre elas é acertada, já que Polley demonstra a tristeza no fundo do olhar que a personagem pede. Sua Hanna é arredia, envolta em uma nuvem de ostracismo autoimposto que, ainda assim, consegue cativar Josef. Há muito de um no outro, e essa identificação quase muda entre ambos é a tônica de um filme que pode transmitir a impressão ilusória de ser um drama romântico com uma chuva torrencial de lágrimas que precede uma bonança chamada final feliz. É um risco que se corre ao se ver diante de um filme com um pôster que coloca os protagonistas abraçados e em estado de paixão latente, o que não é exatamente o que se vai desenvolvendo ao longo da narrativa. As canções auxiliam à percepção da pungência contida no filme, cuja força está atrelada principalmente às atuações viscerais dos personagens principais. Entretanto, também há que se comentar o ótimo trabalho dos coadjuvantes defendidos por Julie Christie e Javier Cámara. Ambos contribuem para a maximização do peso dramático da história, interpretando pessoas que terão participação decisiva em algum momento da trajetória dos protagonistas, que estão aprendendo a se encontrar um no outro.



A produção traz nomes que normalmente figuram em filmes de nacionalidades distintas. Ter Javier Cámara em um filme falado em inglês e dirigido por uma catalã é, no mínimo curioso. E ver Tim Robbins em seu primeiro papel relevante depois de Sobre meninos e lobos (Mystic river, 2003) também é uma grata surpresa. Ainda temos a colaboração dos irmãos Pedro e Augustín Almodóvar, exercendo a função de produtores e conferindo ainda mais relevância ao trabalho proposto por Coixet. Muitas cenas pairam no ar e permanecem na cabeça do espectador mesmo depois de muito tempo do fim da sessão. Elas são resultado do ótimo trabalho entregue pela direção de fotografia de Jean-Claude Larrieu, que também é um colaborador que trabalha novamente com a cineasta. Ela soube escolher muito bem suas parcerias, que culminaram na realização de um filme de aspecto permansivo. Há muitos espaços para a reflexão, que tornam A vida secreta das palavras um filme de passagens difíceis, capazes de sensibilizar espectadores mais afeitos à observação de sutilezas. Ele forja paisagens tristes, que contaminam o estado de ânimo dos personagens e focalizam o que há de mais desalentador em suas trajetórias. Aqui, há um segredo a ser desvendado, cujas pistas vão sendo semeadas ao longo do enredo, e que podem ser descobertas pelo espectador antes que o personagem que o carrega fale dele explicitamente. Não importa, pois Coixet não se vale dele como um elemento para prender a atenção e surpreender, mas para que se perceba o quanto podemos nos fechar diante de um acontecimento fatal, e o quanto alguém próximo pode se condoer ao se dar conta daquilo que se enfrentou.

O acalento para que os sonhos de Hanna renasçam e floresçam com intensidade reside na pequena comunidade oceânica na qual ela passa as férias cuidando de Josef. É na convivência diária com ele que seus medos mais cruéis vão se dissolvendo, e ela se deixa levar por aquela atmosfera de redescobrimento que o local proporciona paulatinamente. No encontro com o personagem de Javier Cámara, ela vai se dando conta de que a vida pode ter mais sabor mesmo em meio a desgostos, e que ela não precisa comer somente arroz, frango e maçãs, como faz diariamente. Ali, isolada da maior parte das pessoas e tão perto de outras que lhe vão fazendo bem, a protagonista pode ter a exata noção de que a felicidade está relacionada à companhia. Em seus momentos de desespero, com suas feridas abertas que insistem em não querer cicatrizar, o contato com aqueles dois homens que ela conhece em seu trabalho voluntário e temporário despertarão essa consciência. Um dos diálogos mais marcantes de todo o filme acontece perto do final, quando Hanna e Josef já estão completamente interligados, ela lhe diz que não poderá se manter perto, pois chorará tanto que inundará a vida dos dois com um rio de lágrimas. Gentil, ele diz que não se importa, pois aprenderá a nadar. Encaixada ao contexto preparado por Coixet, a cena é capaz de gerar intensa comoção e soluços abafados.

4 de ago. de 2011

O signo da cidade e a fina trama que enreda seres humanos


Estigmatizado por uma parcela dos espectadores, o cinema brasileiro comprova sua versatilidade com títulos que destoam do binômio violência + favela que embriaga os sentidos de muitos diretores, e mostra que pode ir muito além de tiroteios e perseguições policiais, que também têm sua validade na tela, mas não são a única possibilidade para a sétima arte nacional. O signo da cidade (idem, 2007) existe, entre outras coisas, para fugir desse chavão. Dirigido por Carlos Alberto Riccelli, que optou pelo exílio em Los Angeles há décadas, o longa-metragem espia a vida de pessoas ordinárias e suas tentativas de manutenção de sua dignidade pelas ruas de São Paulo. É bom que se diga, de antemão, que o diretor se propõe a dialogar com uma bela tradição de filmes-painel, ao colocar em cena vários personagens cujas trajetórias, de uma maneira ou de outra, serão entrecruzadas pelas charadas irônicas ou trágicas lançadas pelo que se convencionou chamar destino. E o polo que fará essa união de caminhos é Teca (Bruna Lombardi), uma astróloga que apresenta um programa noturno de rádio, no qual atende a ouvintes transtornados por dilemas morais, amorosos e existenciais que carecem de aconselhamento. Como na vida, aqui acaba sendo mais fácil ouvir e seguir as palavras de um estranho.

Com base nesse argumento, Riccelli desenvolveu um filme de alma brasileira, pelos dramas que aborda, mas de corpo universal, pela estética algo estrangeira que imprimiu às sequências e também à narrativa. É notória a aproximação de seu trabalho com títulos como Short cuts – Cenas da vida (Short cuts, 1993) e Magnólia (Magnolia, 1999), para citar duas referências mais imediatas. Além disso, ele elege a capital paulistana como palco para as ações, e a transforma em personagem de cenas e momentos emblemáticos. Riccelli também dialoga aqui com o Paul Haggis de Crash – No limite (Crash, 2005), sendo muito mais bem-sucedido que o cineasta, entretanto. A colcha de retalhos bem pensada é fruto do roteiro bem azeitado escrito por Bruna Lombardi, que firma uma bela parceria com o marido da vida real. Sua protagonista não é absoluta, dividindo a importância com todos os demais personagens que vão sendo apresentados. Na verdade, como o título do filme denuncia, a grande protagonista do filme é a cidade de São Paulo, com suas possibilidades de desencontros e sua dose de crueldade com aqueles que nela habitam. São muitos homens e mulheres lidando com perdas e reveses dos quais muitas vezes parecem não ser capazes de se recuperar totalmente

A própria Teca vive seu drama particular por não conseguir estabelecer um elo de comunicação com o pai Aníbal (Juca de Oliveira), que está em estado terminal de uma doença grave. Aqui, vem à tona novamente a questão do perdão perto do fim da vida, uma temática que oferece, por si só, certa cota de sentimentalismo, mas que é vista de modo profundamente humanos por Riccelli, que não poupa seu talento ao investir em cenas fortes, com diálogos sinceros e comoventes. Sabe-se que a linha que separa a emotividade da pieguice é extremamente tênue, e o diretor é capaz de ficar atrás da primeira do início ao fim. Impressiona o apuro visual do filme, que se faz quase todo em período noturno, fotografado pelas lentes preciosas de Marcelo Trotta, que não se preocupa em apresentar uma visão edulcorada da cidade, mas em auxiliar o cineasta a contar sua histórias com fortes tintas realistas. Todas as histórias retratadas em O signo da cidade guardam uma porção de verossimilhança, sem grandes exageros dramáticos. Além disso, o roteiro não é pautado pelas estripulias narrativas a que outros profissionais da área se habituaram, como é o caso de Guillermo Arriaga e seus textos filmados por Alejandro González-Iñarritú. O diálogo de Riccelli é com a sensibilidade e o realismo mais sutil, ainda que haja passagens dotadas de grande densidade, como as que envolvem um personagem que ganha a vida como travesti, interpretado com impetuosidade por Sidnei Santiago, um ator que ainda tem pouca visibilidade no cinema, mas que já esteve em outros filmes, como Os 12 trabalhos (idem, 2006), de Ricardo Elias.



Como a grande estrela aqui é a própria cidade, são vários os atores que têm chance de mostrar bons trabalhos. Boa parte do elenco também tem uma carreira televisiva, o que possibilita a muitos espectadores ter um juízo de valor negativo, supondo que haja em O signo da cidade um ar de especial global de fim de ano. Mas esse não é mesmo o caso desse longa-metragem, que traz Graziela Moretto, Eva Wilma, Denise Fraga e Malvino Salvador como outros rostos conhecidos. Este último, normalmente canastrão em seus trabalhos nas novelas, desenvolve seu personagem de maneira comedida, como o roteiro pede, e seu envolvimento com Teca se dá de maneira crível e discreta, até culminar em cenas de grande intensidade dramática. A veterana Eva Wilma, porém, é quem mais surpreende com sua personagem e seu segredo amoroso que pode mexer com a concepção do público. Suas poucas aparições em cena são suficientes para assegurar que se trata de uma grande atriz oferecendo um grande trabalho e conferindo ainda mais dignidade ao filme. Quem também participa da produção como um jovem cheio de conflitos internos e Kim Riccelli, o filho único do casal. Uma incrível mistura dos pais, ele debuta na tela grande com segurança e maturidade, despojando-se de amarras interpretativas e apostando na naturalidade para dar vida ao seu personagem.

Fica evidente ao longo do filme que o lado melancólico da cidade é o mais patente aos olhos do diretor e da roteirista. Há inúmeros momentos de tristeza, desespero, desalento e desorientação rondando os homens e mulheres de O signo da cidade. Todos eles estão inseridos na perspectiva que norteia o longa e lhe serve de slogan e também de fala para o personagem de Malvino Salvador: Está tudo escrito mesmo ou a gente pode mudar? Essa base de cunho semelhante à filosofia de botequim tem sua validade, e Bruna Lombardi trata de buscar a escavação da máxima por meio de muitas pessoas que vêm e vão, que passam perto de uns e outros. A certeza de que somos protagonistas de nossas próprias vidas e coadjuvantes das vidas alheias, para além de qualquer centelha de pieguice, e válida e verdadeira, como tudo indica no filme, e que se comprova o tempo todo.

2 de ago. de 2011

Descontração, charme e leveza em 2 dias em Paris


É cada vez mais comum que atores com uma carreira razoavelmente consolidada se aventurem na direção de um filme, demonstrando competência e dedicação como realizadores. Julie Delpy faz questão de estar na lista, e oferece, para isso, seu 2 dias em Paris (2 days in Paris, 2007), uma comédia leve e descontraída sobre um casal que vive em Nova York mas, antes de retornar para sua cidade, decide passar os tais dois dias na capital francesa. Ela é Marion (Delpy), uma fotógrafa francesa que, ironicamente, tem um defeito na retina que a faz enxergar o mundo como uma espécie de molde vazado, como ela mesma tenta explicar para o espectador logo nos primeiros minutos de projeção. Ele é Jack (Adam Goldberg), um design de interiores totalmente hipocondríaco e paranoico, que se arrisca a falar duas ou três frases em francês. Ambos os personagens são apresentados de modo simpático, atravessados pelo olhar aguçado da protagonista, que também a narradora em off que acompanha as desventuras do casal naquelas 48 horas que parecem intermináveis para os dois.

O filme tem a seu favor a clara despretensão, com algumas falas inspiradas, oriundas da imaginação da faceta roteirista de Delpy, que faz certas piadas politicamente incorretas envolvendo os comunistas, regras de etiqueta e até mesmo a própria nação francesa, de um modo que só uma nativa poderia fazer. A diretora também brinca com certos arquétipos relativos a casais “nerds”, como o são Marion e Jack. Cada um deles carrega consigo certos traços de neurose que transformam fatos cotidianos em peripécias de grandes proporções. No início do filme, por exemplo, eles acabam de chegar de uma estada desastrosa em Veneza, por conta de uma crise alérgica de Jack, que ingeriu camarões na cidade aquática. A quase falta de planejamento do casal para estar em Paris, bem como a dificuldade de Jack com a língua materna da namorada, com quem está há 2 anos, gera uma série de situações com um quê de hilariantes.

Cada instante de 2 dias em Paris é dotado de um insight interessante sobre relações a dois e outras temáticas de maior ou menor relevância, que acabam por transformar a comédia em uma singela carta de amor à Cidade Luz, com seus belos ângulos e paisagens que inspiram a paixão. Além do mais, o filme se vale de uma premissa comum para discorrer com fluidez sobre como pode ser complicado lidar com os defeitos do parceiro, assim como com o seu passado. Esse é o grande problema enfrentado por Jack a cada vez que ele está passeando com Marion e ela encontra alguns de seus vários ex-namorados e não entende absolutamente nada das conversas que ela tem com eles. A agonia vai tomando conta do personagem, que começa a se dar conta de que talvez não conheça tão bem assim a sua companheira. O coloquialismo com que todos se expressam é outro detalhe marcante na composição de 2 dias em Paris. A maioria das piadas surge dos comentários desbocados de um dos dois protagonistas sobre a sua própria relação ou sobre a dificuldade de lidar com os familiares de Marion, que não perdem as muitas chances de zombar do futuro genro e sua ignorância no francês. Em dado momento, o pai de Marion pergunta a ele sobre sua opinião acerca de Renoir, induzindo o design a considerá-lo um escritor, mas ele não cai na armadilha. Na mesma ocasião, um coelho servido como almoço desperta algumas lembranças desagradáveis que remetem à infância do pobre Jack.



Cumpre ressaltar a química notável entre Julie Delpy e Adam Goldberg como seus personagens. Ele foi convidado pela atriz com certa antecedência ao início das filmagens, já que ela pensou no argumento alguns anos antes de transformá-lo em filme. Ainda quase um desconhecido, ele encarna com desenvoltura a figura de um homem cheio de inseguranças, apesar da aparência descolada, que inclui uma barba sempre por fazer e tatuagens no braço. Delpy, por sua vez, encara mais um longa-metragem no qual dá vida a uma personagem que discute a relação com o parceiro, como já fizera duas vezes com Ethan Hawke, ao ser dirigida por Richard Linklater em Antes do amanhecer (Before sunrise, 1995) e Antes do pôr-do-sol (Before sunset, 2004), em que dialogava longamente sobre possibilidades vindouras e perdidas, respectivamente. No caso de 2 dias em Paris, entretanto, é a verve cômica que prevalece o tempo todo, seja pelo inusitado das situações que vão surgindo uma após a outra, seja pelo comportamento destrambelhado do casal, risível por si só. Outro detalhe que vale ser comentado é a presença dos pais da própria Delpy em cena, que dão vida aos pais de Marion. Ambos também são atores, e ela diz nos extras do DVD que não os teria chamado se não o fossem. Esse detalhe também ajuda a conferir mais veracidade às cenas e a compor um quadro familiar interessante na narrativa.

Esse não é o primeiro filme dirigido por Julie Delpy. Ela também é responsável por Looking for Jimmy (2002), sem título em português e sem passagem pelo circuito brasileiro. O que chama mais a atenção no caso de seu segundo filme é a estrutura verborrágica, que privilegia a palavra em detrimento da ação, e se avizinha a um cineasta que a quem as conexões interpessoais por meio do discurso também são caras: Woody Allen. É possível vislumbrar ecos de interpretação alleniana nos trejeitos de Marion e Jack, cada qual à sua maneira. Na verdade, talvez essas sejam as referências mais óbvias no cinema praticado por Delpy em 2 dias em Paris, que flerta com clássicos do diretor, como Noivo neurótico, noiva nervosa (Annie Hall, 1977) nas passagens em que se propõe a discutir sobre a evanescência que pode acometer qualquer relacionamento amoroso, mas da qual alguns podem escapar com sucesso. Os personagens poderiam perfeitamente ter sido escritos por Allen, e reforçam o diálogo que o diretor trava com o cinema europeu, que é a escolha feita por Julie Delpy aqui também. Nos minutos finais, ainda sobra espaço para uma constatação algo cáustica sobre namoros, noivados, casos e casamentos, demonstrando a certeza de que lidar com os defeitos e qualidades do outro é, basicamente, entender que não se está diante de um reflexo no espelho.