29 de jun. de 2011

Laranja mecânica, um libelo para a demasiada violência


Poucos filmes recebem tão bem a alcunha de clássicos como Laranja mecânica (A clockwork orange, 1971). Sempre lembrado em listas de melhores de todos os tempos, o filme de Stanley Kubrick apresenta indiscutíveis qualidades, seja do ponto de vista técnico, seja do artístico, que também asseguram sua atemporalidade. No foco da narrativa, está Alex (Malcom McDowell, eternizado pelo papel), um jovem que se utiliza da força bruta da violência em detrimento do diálogo para aterrorizar as pessoas na cidade em que vive. O cenário é futurista e cataclismático, evidenciando uma concepção de porvir que se tinha há exatos 40 anos, tempo de vida do filme até aqui. Acompanhado de sua tertúlia, Alex espanca, agride, intimida, esbofeteia, vocifera, coage. Não há limites para aqueles rapazes que perderam há muito o senso de humanidade, aos quais não resta nem mesmo um silvo de protocooperação. Metonimicamente, Kubrick apresenta ao público uma população em estado de decadência e degradação moral, cujas práticas negativas chegam a exalar um odor fétido.
Trilhando esse caminho de semeadura do desespero e do medo, os amigos vão muito longe, até que o governo decide colocar em prática um experimento de lavagem cerebral que pode ser a solução ideal para o fim da violência desmedida. Então, submetem Alex a esse processo, e o resultado é um rapaz passivo a toda forma de provocação que se faz a ele, o que é interpretado como um êxito do processo de “conversão”. Calcado nessa premissa, Kubrick entregou um dos filmes mais memoráveis da história do cinema, que faz jus a elogios e lisonjas, por seu poder de fogo de condução à reflexão. A história de Alex é suficientemente intensa para despertar ponderações a respeito da natureza humana e de sua condição de violência latente. Convenções sociais podem até adormecer certos instintos animalescos, mas não sublimá-los de todo. O que o método utilizado com o protagonista faz é anular mecanicamente um componente que já está impresso na estrutura genética do homem desde tempos imemoriais, e que, em primeira instância, é sua garantia de sobrevivência. Freud, o papa da psicanálise, afirmou que uma das grandes pulsões humanas é a violência, tanto quanto o sexo. Destas duas derivam as ações que praticamos, que nos moldam e que determinam nossas redes relacionais.
O sexo também aparece em Laranja mecânica, especificamente em uma sequência na qual Alex, ainda sob efeito de sua verve cruel, estupra uma mulher em sua própria casa, na presença de seu marido, a quem espanca com a ajuda de seus amigos. A cena é embalada por música erudita, construindo um paradoxo entre maldade e elevação do espírito e caracterizando um dos insights de vigorosa ambivalência proporcionados pelo diretor. O longa causa desconforto por sua crueza, por não se fiar em um discurso edulcorado e por levar à visão aterradora da podridão humana. Guardadas as devidas proporções, há pontos de aproximação entre esse filme e O cheiro do ralo (idem, 2006), por sua capacidade de extrair dos porões dos pensamentos humanos o que há de vileza e degradação. E esse quê de falta de caráter não é uma exclusividade de Alex, mas daqueles que o submetem à tal lavagem cerebral. Depois de se tornar uma espécie de cordeirinho, o rapaz fica vulnerável a qualquer ato de violência que seja cometido contra ele, sendo incapaz de reagir. Indo ao outro extremo, ele passa a ser alvo da fúria de quem um dia esteve sob sua ameaça. Vale ressaltar aqui o desempenho abissal de McDowell, um ator de aparições profusas no cinema, embora com brilho ínfimo se comparado à década na qual se insere esse filme aqui. O próprio Kubrick declarou que jamais teria dirigido o filme se não tivesse a presença do ator no elenco, o que ajuda a atestar sua relevância para a história.
Laranja mecânica é uma adaptação do livro homônimo de Anthony Burgess, que traz marcas autorais importantes e reforça a tese de que, violentos por natureza, os homens necessitam de esteios que balizem suas ações. Entretanto, esse cerceamento ao comportamento violento não deve ser feito por meios artificiais e igualmente agressivos. A tese (palavra que vem do grego e significa “produto colocado”) de que violência gera violência está colocada mais uma vez. O discurso impávido de Burgess, de que Kubrick se apropriou para construir a versão fílmica do livro, reafirma sua validade, e permite ao espectador tirar suas próprias conclusões. Voltando à trilha sonora, ela é uma responsabilidade de Wendy Carlos, colaborador do cineasta em outro filme icônico de sua carreira: O iluminado (Shining, 1980). Além desse, ele é responsável por títulos como um documentário chamado Squish story (1986) e Tempestade de gelo (The ice storm, 1997), sendo este último um filme de Ang Lee que ficou conhecido pela narrativa impactante, sem meios-termos. Carlos também trabalha como compositor, um expediente que ele exerce muito mais raramente, entretanto. No filme analisado, a composição musical é de suma importância, pois dimensiona o espectador para uma ambientação de desvario e desolação que a conjuntura futurista proposta por Kubrick a partir do romance homônimo exige.

Outro aspecto interessante do filme é o fato de o futuro não ser jamais determinado em termos de data. Sabe-se apenas que se trata de um época vindoura, que pode ser de 20, 20 ou 100 anos à frente. E esse futuro é decadente, como aquele que se insinua em Filhos da esperança (Children of men, 2006), que Alfonso Cuarón viria a imaginar exatos 35 anos depois, e que também é uma visão desalentadora de um possível destino da humanidade. O cenário da trama de Laranja mecânica é conhecido – a Inglaterra do futuro – mas ele pode ser estendido para qualquer outra região do mundo, já que o esquadrinhamento da câmera não se reduz aos espaços tipicamente ingleses, numa espécie de tomada da parte pelo todo, como uma sinédoque. O idioma usado pelos personagens também é um caso à parte. Trata-se de uma fusão de línguas diversas realmente existentes (russo, inglês, cockney) denominada Nadsat. É por meio desse idioma artificial que Alex e sua gangue se comunicam, e o grupo é intitulado por eles “druguis”, do russo Друг (amigo). Ele também é narrador do filme, especialmente antes de passar pela lavagem cerebral. Essa fusão de língua faz lembrar o idioma híbrido usado pelos personagens de Código 46 (Code 46), de Michael Winterbottom, ambientado em um futuro também impreciso, no qual os níveis de globalização são tão acentuados que se fala uma mistura de inglês com espanhol e uma pitada de francês.
Kubrick levou a cabo o projeto do filme com um orçamento relativamente modesto, mesmo para os padrões da época em que foi concebido. Foram apenas , milhões de dólares para um filme de 138 minutos com efeitos especiais e uma narrativa complexa, com movimento intrincados e pérolas de reflexão. O filme atinge em cheio o público, que pode amá-lo ou odiá-lo, a depender da perspectiva sob a qual o enxergar. De fato, as atitudes de Alex, muitas vezes, despertam asco, e é possível que o espectador também se defronte com uma torcida interna pela destruição do protagonista, uma prova cabal de que a violência não está apenas no outro, mas em cada um de nós, mais ou menos dosada. Entretanto, o subtexto de Laranja mecânica permite uma leitura inferencial de um libelo para a demasiada violência, para utilizar a linguagem jurídica em que o termo acima citado é sinônimo de acusação. Até que ponto o ser humano pode ir sem freios aos seus instintos? Outros filmes recentes voltaram a trazer à tona essa discussão, como os oscarizados Onde os fracos não têm vez (No country for old men, 2007) e Sangue negro (There will be blood, 2007), concidentemente contemporâneos. O debate proposto pelo filme está longe de ser fechado, e é um típico caso de discussão à qual não se pode passar incólume.

27 de jun. de 2011

Expurgando o luto diário em Reencontrando a felicidade


Para a superação da dor, não existem fórmulas mágicas, tampouco receitas milagrosas. É preciso viver cada instante da tristeza, dar-se o direito de passar por ela, não há como ser diferente. Reencontrando a felicidade (Rabbit hole, 2010) demonstra essa crença por meio da história de vida de um casal de classe média-alta que está sendo devorado pelo luto de perder um filho pequeno em um acidente. Becca (Nicole Kidman) e Howie (Aaron Eckhart) têm modos distintos de lidar com as consequências emocionais pesadas que tal fato têm sobre eles. O que já se coloca como um dado curioso desde o início da projeção é contemplar o nome de John Cameron Mitchell nos créditos como diretor. Para quem não tem a menor noção de seu currículo pregresso, basta saber que ele é responsável por Hedwig – Rock, amor e traição (Hedwig and the angry inch, 2001), no qual também vive personagem-título, e o polêmico Shortbus (idem, 2006), que causou furor com sua temática despudorada. Aqui, o enredo é muito mais comedido, e seria impensável associar seu nome ao filme.
Felizmente, ele demonstra versatilidade ao conduzira a trama, que não se furta de ser densa e reflexiva em sua duração. O caminho de reencontro da tal felicidade do título em português é acidentado, e não se permite ser percorrido por atalhos. À medida que os dias se passam, afastando o fato cronologicamente, o casal vai encontrando sua própria maneira de enfrentar o luto. Enquanto Becca repisa a cada instante o sofrimento e a dor da perda, Howie procura sublimar seu sentimento de tristeza por meio da omissão do fato, algo que logo gerará incômodo na esposa. Na verdade, Becca assume uma postura de ataque ao mundo ao seu redor, sendo incapaz de permitir a si mesma a vivência de pequenas alegrias cotidianas, como se estivesse traindo a memória do filho. Qualquer um que tenta lhe dizer palavras de consolo é tratado de modo arredio, o que inclui sua mãe, vivida por uma talentosa Dianne Wiest. A exemplo da filha, ela também perdeu um filho, e foi aprendendo a superar a devastação emocional com o passar do tempo. Em uma das passagens do filme, Becca pergunta a mãe se a dor um dia passa, e ouve dela a resposta de que não, mas que se torna diferente. Uma constatação dolorida, que serve para demonstrar que se faz necessário o aprendizado da convivência com a perda.
Muitos filmes já discorreram acerca dessa temática, mas Reencontrando a felicidade se destaca de tantos outros pelo fato de trazer à tona o processo posterior da perda de um ente querido. Como fazer para retomar a vida, passado o baque inicial? E investir nesse terreno é dar a cara a tapa e flertar com a pieguice ou com a autoajuda, que, inclusive, é retratada no filme através do casal amigo dos protagonistas. Eles fazem terapia de grupo há anos, e aqueles encontros já se tornaram uma rotina para os dois, algo que apavora Becca. Logo em um dos primeiros encontros ao qual ela vai com o marido, demonstra que não tem o menor desejo de continuar frequentando aquele espaço. Quando ouve uma das mães que está ali dizer que entende que sua filha partiu porque Deus precisava de mais um anjo no céu, Becca inquire: Se ele precisava de mais um anjo, por que simplesmente não criou um? O questionamento constrange a todos, e expõe a fragilidade daquelas reuniões aos olhos da personagem. Esse é apenas um dos trechos que apontam para o texto inspirado que os atores têm nas mãos para embelezar a narrativa ou impactar o público. O filme, portanto, não esconde sua origem teatral.O autor é David Lindsay-Abaire, e ele transpõe para o cinema seu estilo algo cru de abordar o luto, colaborando para que se tenham as atuações admiráveis de Kidman e Eckhart, que se saem muito bem como um casal de classe média alta que recorre a diferentes estratégias de superação. Fazia tempo, aliás, que não se via a atriz em um papel tão bem escrito e com uma gana de atuar tão forte. Nos últimos anos, ela vinha acumulando escolhas equivocadas, em títulos como A feiticeira (Be witched, 2005), e seu papel no filme de Mitchell nos faz lembrar de quando ela acertava consecutivamente – vide As horas (The hours, 2002) e Dogville (idem, 2004). Como Becca, ela sai de uma espécie de zona de conforto, e oferece humanidade à mulher perdida e desacreditada que encarna. Sua Becca rendeu uma nova indicação ao Oscar, perdido em favor da abissal interpretação de Natalie Portman em Cisne negro (Black swan, 2010).



Kidman, aliás, também produziu o filme, e sequer havia assistido a uma das apresentações da peça quando pediu ao seu produtor da Blossom Films para fazê-lo. Ele gostou do que viu e, posteriormente, a atriz se reuniu com o autor do espetáculo para tratar do processo de adaptação para o cinema. Felizmente, a produção chegou às telas, assinalando a competência de um diretor ainda novo em idade para conduzir uma trama madura e profunda. Seu parceiro de cena também apresenta um desempenho memorável, com uma conduta contida e pacificadora que cabe ao personagem. Seu Howie, em determinada altura, não mais abre mão de relembrar todos os dias o filho, revendo imagens e repisando o choro e a dor. É uma pena que o ator ainda seja pouco conhecido do grande público. Eckhart vem de parcerias com Neil LaBute, seu diretor em títulos como A enfermeira Betty (The nurse Betty, 2000) e Possessão (Possession, 2002), e em Reencontrando a felicidade capta as nuances de seu papel trazendo sopros de vitalidade a um homem que não quer se entregar. É de cortar o coração a sequência em que ele se dá conta de que Becca se desfez de uma importante lembrança do menino, e vocifera com intensidade para aplacar a sensação de ausência ainda mais forte que o invade.
O filme tem um significado ainda mais intenso para John Cameron Mitchell, e isso se explica por questões pessoais. Quando tinha 14 anos, o diretor perdeu um irmão de 10, em decorrência de problemas cardíacos. O fato foi totalmente repentino, e causou uma comoção em toda a família, da qual os membros, incluindo ele mesmo, não se refizeram até hoje do trauma. O retrato do drama de Becca e Howie é, portanto, também um retrato da dor particular de Mitchell, que encontrou no cinema uma ponte para mitigar parte de sua agonia, ao menos compartilhando-a com outros espectadores. Infelizmente, seu título original tem um quê de otimismo que não se encontra na trama. A tradução do original seria algo como “A toca do coelho”, que tem pouco apelo comercial. Resta ás platéias brasileiras conviver com tal desencontro de perspectivas. Entretanto, o que se sustenta até o fim é que Reencontrando a felicidade trafega pelas estradas curvilíneas do sofrimento, e assinala que cada um só é capaz de compreender a própria dor. Nas entrelinhas, reverbera um discurso pungente e necessário: A maior dor é a que eu sinto.

14 de jun. de 2011

Turnê, o percurso de um artista por seu labirinto particular


A nova incursão de Mathieu Amalric na direção de longas-metragens é auspiciosa, e o filme que responde por essa nova decisão de ir para atrás das câmeras é Turnê (Tournée, 2010), que rendeu ao novo cineasta o prêmio de Melhor Direção no festival de Cannes de 2010. A láurea foi merecida, como se pode comprovar assistindo ao trabalho de Amalric, que entra para um rol seleto de atores que decidiram se aventurar do outro lado das lentes e entregaram obras preciosas. Ele vem se somar a nomes como George Clooney, responsável por títulos como Confissões de uma mente perigosa (Confessions of a dangerous mind, 2002) e Boa noite e boa sorte (Good night and good luck, 2005), e Sarah Polley, que outorgou ao público a beleza triste de Longe dela (Away from her, 2007). Com isso, a tese de que atores que se propõem a dirigir o fazem muito melhor que vários diretores de prestígio é corroborada, o que pode ser explicado, em parte, pela dupla visão a respeito do trabalho de um artista, seja em termos de atuação, seja em termos de observador da imagem.
Em Turnê, Amalric assume para si a persona de Joachim, um ex-produtor de televisão que abandonou sua carreira na França natal para buscar o sucesso nos Estados Unidos. Depois de anos fora, ele retorna ao seu país com uma trupe de atrizes especializadas em performances teatrais burlescas, disposto a reaver certas contas com seu passado, tingido por cores não muito agradáveis. Trata-se de uma série de shows cujo encerramento foi planejado para acontecer na capital francesa. Mas uma série de contratempos, um deles ocasionado pela trapaça de um antigo parceiro de Joachim, deflagrará uma sucessão de pequenos infortúnios que, por sua vez, levá-lo-ão a repensar sua condição de artista difusor de uma arte específica. O que se nota em Turnê é um percurso tanto literal quanto metafórico e afetivo de um artista pelas veredas que compõem sua trajetória, cheia de contornos parabólicos, sinuosos e hiperbólicos, aqui usados em suas acepções matemáticas. Amalric lança mão de uma farta dose de sensibilidade, às vezes camuflada de rusticidade, para traçar um painel doloroso das vivências de um homem, antes de mais nada. E sua caminhada agora tem a companhia de mulheres cujo biótipo avantajado são a grande atração para espectadores ávidos de uma arte que se avizinha muito mais de uma concepção popular que, por si só, não lhe é fator deslegitimador.
Antes de prosseguir, cabe uma rápida consideração sobre o conceito de burlesco. Este se refere a espetáculos de cunho teatral e teor satírico, em que, frequentemente, ocorrer números de striptease, protagonizados por mulheres de formas volumosas, como aquelas que são conduzidas por Joachim. Sua origem remonta ao final do século XIX, e até hoje o burlesco goza de certo prestígio, apesar de ter passado a ser visto em um sentido mais alargado. Dentre as várias mulheres que acompanham o protagonista em sua jornada, destaca-se Mimi Le Meaux, interpretada pela cantora Miranda Colclasure. Ela é uma espécie de líder daquele clube de atrizes que vivem de sua arte, e trava diálogos importantes e memoráveis com o produtor. Sua beleza de traços exóticos, em uma sociedade de estetização do corpo doa a quem doer, soa como um alento para quem elege como preferência outro tipo de configuração física, além de seu talento comprovável a cada sequência com sua presença. Muitas vezes triste, o filme oferece uma fotografia com cores quentes, por vezes pálidas, uma responsabilidade de Christophe Beaucarne, que assinou filmes como Paris (idem, 2008), Coco antes de Chanel (Coco avant Chanel, 2009) e O escritor fantasma (The ghost writter, 2010). Seu trabalho quase artesanal torna Turnê um filme denso e de iluminação parca, assinalando a obscurescência da caminhada a esmo vivida por Joachim, que se encontra consigo mesmo a cada vez em que tem de rever uma figura do tempo em que habitava Paris. A câmera de Amalric perscruta os espaços percorridos pelos personagens de modo intimista, evitando, entretanto, uma aproximação maior com seu objeto de observação. O protagonista é introspectivo, e deixa transparecer esse aspecto de sua personalidade ao se ver obrigado a encarar as pessoas, algo que requer comedimento na atuação de Amalric, seguro e talentoso também como intérprete. Aliás, atualmente ele é um dos atores mais requisitados pelo cinema de seu país, tendo trabalhado com nomes legendários da França, como Julian Schnabel em O escafandro e a borboleta (Le scaphandre e Le papillon, 2007) e Alain Resnais em Ervas daninhas (Les herbes folles, 2009). Além disso, ele já carimbou seu passaporte para Hollywood quando filmou com o alemão Marc Forster 007 – Quantum of solace (idem, 2008), e encarnou o vilão do momento.


É preciso apenas um pouco de sensibilidade para embarcar na trama de Turnê, que centrifuga os espasmos narrativos e visuais para se concentrar numa jornada que, em última instância, é um modo de autoconhecimento. O diretor filma a decadência, e mostra o entusiasmo daquelas mulheres em apresentar o que sabem fazer de melhor, mesmo que estejam passando as noites em hotéis vagabundos e lidando com a escassez pecuniária. As armadilhas do perfeccionismo, materializadas na postura algo autoritária de Joachim, são um elemento que contribui para o mimetismo proposto pelo diretor, que não se coloca como protagonista de uma autobiografia. Mas é inegável que seu percurso como produtor de teatro guarde semelhanças com seu ofício de ator na vida real. O filme é um labirinto de memórias, que são compartilhadas pelo personagem e mediadas pela sua percepção particular do estado das coisas. Não é o seu primeiro trabalho como realizador, como já se disse. Ele também é responsável por Mange ta soupe (1997), Le stade de Wimbledon (2001) e La chose publique (2003), todos sem títulos em português. No caso de Turnê, Amalric é fiel a uma gramática sensorial e a um teor agridoce em suas reminiscências, que tornam o filme ao mesmo tempo agradável e difícil, na medida em que representa o compartilhamento com um público das mazelas de um homem.
O drama de Turnê é a constatação de que Joachim - cuja inspiração vem da vida real, o produtor de TV Paulo Branco – está empreendendo uma jornada cada vez mais quixotesca em busca de espaço para sua arte. É curioso pensar que o filme seja contemporâneo de O mágico (L’illusioniste, 2010), que trata também das barreiras a um tipo mai específico de arte, cada vez menos encontradiça no grandes centros urbanos. Amalric espia a decadência, a desglamourização e a inevitabilidade da mudança sobre toda e qualquer estrutura que se propõe a atravessar um longo período. Nas cenas finais, o filme acentua seu caráter melancólico, oferecendo momentos de reflexão sobre os rumos que se pode tomar na vida, a depender do peso que se dá a determinadas escolhas. Ali também estão o caos cotidiano, oriundo das cansativas viagens de idas e voltas feitas pela equipe, e a constante necessidade de autorreinvenção, reclamada na mudança de postura que Joachim vai sendo obrigado a realizar a cada novo revés que se lhe apresenta. Ele pede silêncio por onde passa, como tentativa desesperada e inconsciente de pedir atenção para si, bem como uma demonstração de que a verdade não faz barulho, e está cada vez mais soterrada por um mundo de incontáveis reverberações sonoras.

7 de jun. de 2011

Ricky e a metáfora da esperança alada

Nos filmes de François Ozon, existe a recorrência de um tema simples sendo tratado com profundidade ou com um traço de inusitado. Suas análises sobre aspectos pontuais da existência se pautam, portanto, por inserções de elementos que, inicialmente, podem soar estranhos, ou minimamente deslocados. Entretanto, até Ricky (idem, 2009), o diretor ainda não havia lançado mão do realismo fantástico propriamente dito. Se em Oito mulheres (Huit femmes, 2002) ele confinou algumas divas do cinema francês em uma mansão onde se dá um crime, em Swimmimg pool – À beira da piscina (Swimming pool, 2003) ele analisou mistérios que podem se desdobrar na relação entre duas mulheres. Se em Amor em cinco tempos (5 x 2, 2004) ele se ocupou de esquadrinhar os passos que podem levar um casal ao infortúnio, em O tempo que resta (Le temps qui reste, 2005) ele partiu da situação “banal” de doença terminal para refletir, a seu modo, sobre a urgência de viver. No caso de Ricky, filmado quase simultaneamente a O refúgio (Le refuge, 2009) e lançado posteriormente a este, Ozon se vale da estratégia de um acontecimento impossível no mundo palpável para discorrer sobre coerção e desalento.



Katie (Alexandra Lamy) e Paco (Sergi López) são colegas de trabalho em uma fábrica. Eles se envolvem casualmente um com o outro e, dali a pouco tempo, estarão morando juntos. Katie tem uma filha que é fruto de um relacionamento anterior, algo que Paco admite e, num primeiro momento, eles não cogitam a ideia de mais um filho. Posteriormente, contudo, ela engravida, e o lindo bebê do casal recebe o nome de Ricky. Trata-se de uma criança adorável, que inunda a casa da família de alegria. Até esse momento, a narrativa do filme corre sem sobressaltos, e Ozon apenas lança seu olhar imparcial sobre o cotidiano de um casal comum da periferia parisiense. Sua câmera selecionou áreas pouco vistas de Paris nos filmes que lá são ambientados, promovendo um percurso menos óbvio ao público. São espaços que permitem que se atente muito mais aos personagens que a si mesmos, e sublinham o trabalho de composição acertado de Alexandra Lamy e de Sergi López, muito à vontade no francês, que não é sua língua materna. Quem assistiu a O labirinto do fauno (El laberinto del fauno, 2006) talvez não associe o tenebroso capitão Vidal a esse Paco de agora, mas se trata da mesma pessoa, o que prova a versatilidade do ator para papéis tão dissonantes entre si.
O grande insight de surrealismo proporcionado por Ricky acontece quando, pouco a pouco, o personagem-título começa a desenvolver estranhas protuberâncias nas costas, que culminarão com o desenvolvimento de asas, literalmente falando. Sim, Ricky é um bebê alado, como já mais se viu ou ouviu falar antes. E o uso desse expediente inadmissível como real, dentro do filme funciona metaforicamente de modo bastante eficiente. A aquisição de asas de Ricky pode ser lida duplamente, o que atesta sua ambiguidade. Colocar uma trama com um bebê com asas que não se prende a nada que está ao seu redor leva à interpretação de que há pais que sufocam a individualidade de seus filhos, bem como suscita a ideia de que a esperança não pode viver aprisionada, e de que é preciso adotar uma postura ativa para sua manutenção. À primeira vista, Ricky pode parecer um filme ingênuo ou simplório, por falar de um tema trivial com uma abordagem afastada, até certo ponto, da realidade esperada. Mas Ozon é extremamente habilidoso no trato da trama, roteirizada por ele mesmo, fazendo do inusitado algo completamente aceitável. Guardadas as devidas proporções, sua obra se assemelha a Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas (Loong Boonmee raleuk chat, 2010), por sua capacidade de inserir o insólito na narrativa como se fosse a coisa mais normal do mundo, sem fazer concessões ao “juízo perfeito” do espectador. No fundo, Ricky é mesmo um filme simples, mas que trata de questões complexas e alicerça sua discussão na concretização de uma metáfora antiga. O realizador também fala do sufocamento dos afetos, manifesto na imposição dos desejos particulares de alguém sobre o outro, comportamento que mina muitas relações interpessoais, seja no amor, seja na amizade. Pode-se dizer, portanto, que Ricky se presta a uma leitura inferencial muito apropriada e atual.



O filme competiu pelo Urso de Ouro em Berlim, mas não obteve a láurea, que, naquele ano, foi entregue para A teta assustada (La teta asustada, 2008), produção peruana que recebeu muitos elogios por onde passou. Independentemente de premiações, contudo, Ricky é um filme para ser visto e acompanhado com atenção. É uma obra enxuta em sua hora e meia de duração, que dialoga com os trabalhos pregressos do diretor na medida em que demonstra exatamente essa concisão e essa simplicidade. Ozon não é um diretor dado a extravagâncias narrativas, e introduzir um bebê que adquire asas no contexto de um filme seu talvez tenha sido seu ato mais arrojado até aqui. Seu longa-metragem é permeado por um senso de humanidade tocante, mesmo que ela venha por meio da aposta em um subtema já tão batido. Há ainda um contraponto entre o olhar da menina, filha de Katie, e o olhar da mãe para o desenrolar dos fatos, especialmente no que concerne à maneira conturbada com que ela se relaciona com Paco, num movimento de idas e vindas que prejudica claramente a estabilidade desse seio familiar forjado em circunstâncias fracas. Nesse ponto, a abordagem de Ozon guarda similaridade com a de Julie Gavras em A culpa é do Fidel! (La faute à Fidel!, 2007): o mecanismo de narrar sob uma ótica infantil acurada, de uma criança que entende perfeitamente o que está acontecendo ao seu redor.
Como foi assinalado por um crítico que analisou o filme, há vários elementos díspares reunidos em Ricky, que poderiam se anular e levar o filme ao fiasco. Mas aquilo que talvez pudesse desabonar mais a obra acaba sendo o toque de Midas do diretor para alçar um voo mais alto – com o perdão do trocadilho – rumo à eficiência, tomada aqui no sentido mais isento de imediatismo burro possível. O cineasta parte de um material surrado para abrir-lhe novas possibilidades de leitura e identificação, bem como para gerar o espectro de comoção que é tão caro aos espectadores de uma obra cinematográfica. Ricky nos fala de uma esperança alada, que está em todos os lugares, e não pode ser apropriada exclusivamente ou “privatizada”. Por outro lado, fundamentado no segundo ponto de vista proposto, um dia os filhos se vão, e as asas que um dia lhes nasceram simplesmente não podem ser cortadas. Uma vez nascidas, acompanhá-los-ão definitivamente. Ozon traz essa constatação através da simplicidade. Ao se furtar de ser portentoso e ao se permitir extrair reflexão do que é corriqueiro, ele nos entregou uma pequena joia.

2 de jun. de 2011

Angústias e alegrias de crescer em As melhores coisas do mundo


De tempos em tempos, o cinema traz uma história contada sob a ótica de uma criança ou de alguém que está entre o fim da infância e o começo da adolescência. O caso de As melhores coisas do mundo (idem, 2009) é o segundo. A diretora chega ao seu terceiro filme mostrando que sabe conduzir uma trama com leveza e presença de espírito, tal qual havia demonstrado no predecessor Chega de saudade (idem, 2007). Se no trabalho antecedente ela narrou o cruzamento de vidas que tinham em comum o arrasta-pé em um salão de baile e o utilizou como uma metáfora para os (des)caminhos da vida, no seu trabalho mais recente ela tematiza a respeito das dificuldades que se apresentam a um adolescente que está em busca de autoentendimento e de compreensão do mundo. Trata-se de Laís Bodansky, que estreou no celuloide com Bicho de sete cabeças (idem, 2000) onze anos atrás. Se entre seus dois primeiros filmes o hiato foi considerável, dessa vez ela não se demorou demais para entrar um novo retrato afetivo de uma geração. A cineasta retrocedeu da velhice e seus desdobramentos para se dedicar aos recém-ingressos à puberdade.
Como protagonista, ela elegeu Francisco Miguez, que dá vida a Mano, um garoto de apenas 15 anos que está tentando entender a bagunça generalizada que virou sua vida com a profusão de hormônios que estão agindo sobre ele. O filme acompanha seu cotidiano de maneira despojada e descontraída, com uma câmera atenta a cada acontecimento. Mano é um adolescente típico, algo que o roteiro escrito por Luiz Bolognesi com base em uma série de livros faz questão de salientar ao longo da narrativa. Aliás, o filme é contado sob o viés de Mano, um narrador onisciente que compartilha com o público as suas descobertas. Estão lá as agonias básicas de quem atravessa esse período da vida, como a incerteza sobre os sentimentos por outrem, a vontade quase insana de testar limites e experimentar novos conceitos e a dificuldade em dialogar com as gerações anteriores, representados pelas figuras dos pais, Camila (Denise Fraga) e Horácio (Zé Carlos Machado), ambos corretos em suas atuações.
Uma rápida análise de As melhores coisas do mundo dá conta de perceber que ele é complementar e contemporâneo de outro longa-metragem brasileiro: À deriva (idem, 2009), de Heitor Dhalia. Se neste último as dores de crescimento são vistas pelo olhar de uma menina, no filme de Bodansky predomina a visão masculina. Com isso, os diretores oferecem um contraponto interessante entre os ângulos de um e outro sexo, bem como se aproximam ao mostrar aquilo que é comum a eles e a elas. Vale a pena assistir a um e a outro para enxergar esses paralelos e esses traços distintivos, capturados com maturidade e naturalismo pelos cineastas. Além disso, ambos são seus respectivos terceiros filmes, o que indica um movimento convergente de aproximação da adolescência como objeto de observação. Há sempre o que comentar a respeito dessa fase da vida, e tanto Bodansky quanto Dhalia dialogam, cada qual ao seu modo, com o cinema praticado por Gus Van Sant, sendo embaixadores brasileiros de uma estética simples e eficiente no trato com a juventude. Como Van Sant, a abordagem de Bodansky é mormente expositiva, despreocupada em fazer julgamentos ou de criar associações deterministas. Mano é um garoto de classe média, com certos privilégios que uma boa parcela de meninos da sua idade não possuem, mas cuja história de vida até ali é permeada pela verossimilhança. É fácil para qualquer adolescente se ver na tela, e o filme ganha pontos com isso, afinal é feito para e pelo público juvenil, ávido de se reconhecer em veículos de comunicação e entretenimento. O efeito catártico, por mais que não seja conhecido por parte do público com esse termo, ou sequer nomeado, é requerido e desejado por todos, inclusive os jovens.


O elenco de coadjuvantes é outro detalhe que chama a atenção em As melhores coisas do mundo. Pela tela, desfilam os já citados Fraga e Machado, além do tarimbado Caio Blat, que já se especializou em personagens joviais, e que aqui se reveste de uma aura de maturidade para interpretar um dos professores do colégio de Mano, que se envolve num dos problemas de seu aluno. Com a contenção que seu papel exige, ele oferece nuances de personalidade como Artur, provando que é um dos bons atores de sua faixa etária. O mesmo se pode dizer de Paulo Vilhena, muito mais associado a teledramaturgia, mas que demonstra no filme uma capacidade notável como um eventual conselheiro sentimental de Mano, e professor de violão de algumas tardes na semana. Sua participação é discreta, mas suficientemente marcante para intervir na narrativa e, especificamente, na trajetória do protagonista. Tais atuações destacadas aqui só reafirmam o quanto a direção de atores de Bodansky é boa, fato que já havia sido comprovado com o elenco afiadíssimo de Chega de saudade. A diretora extrai desempenhos poderosos dos nomes envolvidos em sua produção, como se, em muitos momentos, diluísse a fronteira entre o ator e o personagem, tamanha a entrega ao papel que cada um defende. Cabem elogios inclusive a Filipe Galvão, mas conhecido pelo codinome Fiuk, que dá vida ao irmão mais velho e deprimido do protagonista e contribui para acentuar o peso dramático que repousa sobre o dia a dia de Mano.
O filme foi muito bem recebido no Cine PE, um festival audiovisual, no qual recebeu inúmeras indicações, tendo sido vencedor nas categorias de filme, ator, diretora e roteiro, entre outras. São vitórias merecidas, que coroam o esforço de bons profissionais em contar uma história simples e tocante.Como em seu filme anterior, a cineasta encantou a plateia, e deu um motivo a menos de reclamação para aqueles que insistem em declarar que o cinema brasileiro só oferece retratos de violência e miséria. As melhores coisas do mundo vai na contramão dessa temática, e seu título solar e otimista ajuda a evidenciar sua proposta de ser aproximante do universo juvenil sem ser chato. É um filme escrito e dirigido por adultos, mas com uma pegada que torna possível pensar que tenha sido uma obra de jovens. De alguma forma, é como se o longa fosse um precursor de Desenrola (idem, 2010), trabalho que Rosane Svartman dirigiu e que recebeu muito elogios, ganhando os cinemas no início de 2011. Mano é um rapaz comum, longe do arquétipo de adolescente louro de olhos azuis com pinta de galã. Essa sublimação da inverossmilhança também ajuda a chamar a atenção para o filme, e a declarar que histórias sobre pessoas com as quais se pode esbarrar na próxima esquina também têm o seu valor.