27 de out. de 2011

Amor a toda prova e seu tratamento sincero para uma premissa recorrente


Está mais do que provado que as comédias românticas têm um apelo popular irresistível. Produzidas às pencas, elas são capazes de atrair multidões de espectadores ávidos de produções que dialogam com suas próprias vidas, na medida em que tratam de relacionamentos e podem ser tudo aquilo que se quer ver e ouvir, não exatamente do que se precisa. Amor a toda prova (Crazy, stupid love, 2011) não se enquadra exatamente nos comentários tecidos anteriormente, por sutis diferenças em sua estrutura que a tornam um tanto singular em meio a tantas tramas isomórficas que o cinema hollywoodiano lança quase toda semana. Suas qualidades são várias, e cada uma delas vale ser assinalada para convencer o espectador que duvida da capacidade do cinema de oferecer emoção, acalento e sinceridade na abordagem dos conflitos e enigmas do coração.

O fio condutor da narrativa é a história de Cal (Steve Carrel) e Emily (Julianne Moore), um casal que já começa o filme em vias de se desfazer. A sequência de abertura já evidencia a sintonia que paira sobre eles. Em um restaurante ao mesmo tempo chique e descolado, vários casais efetivos ou em potencial acariciam os pés um dos outros, e são sempre belos pés. Até que a câmera chega à mesa dos nossos protagonistas, e então vemos o despojamento antirromântico de Cal, que usa tênis surrados e não aproxima seus pés da esposa. Ali mesmo, sem meios termos, ela dispara que quer o divórcio, e logo se descobre que Emily está tendo um caso com David (Kevin Bacon). Essas duas notícias juntas respondem pela perda de rumo de Cal, que se vê impotente diante da decisão de sua esposa. O rompimento repentino do casal, entretanto, é apenas uma das faces do polígono de relações desenhado de Glenn Ficarra e John Requa, a dupla de diretores cujo trabalho anterior é O golpista do ano (I love you, Philip Morris, 2010), que torna esse novo trabalho improvável para ambos.

Entretanto, fica provado ao longo do desenvolvimento de Amor a toda prova que o trabalho é um grande acerto na carreira da dupla, que sabe dosar sarcasmo e ternura para narrar os descaminhos misteriosos de um sentimento que pode pregar peças em qualquer um. Uma vez separado de Emily, Cal tem seu caminho cruzado com o de Jacob Palmer (Ryan Gosling), o arquétipo do garanhão que o incita a rever seus conceitos e seu estilo pessoal. Extremamente desenvolto no trato com o sexo feminino, ele ajuda Cal a dar uma importante guinada em sua vida com seus conselhos. Sim, a relação que se estabelece entre os personagens é a de tutor e discípulo, e entre eles surge logo uma notável cumplicidade. Como se perceberá mais adiante, todavia, ambos estão vulneráveis às armadilhas do coração, denotando que mesmo o mais calejado dos homens pode sucumbir a elas. É bem verdade que existem alguns clichês no filme, mas eles são tão bem administrados e desenvolvidos que se tornam irresistíveis. Amor a toda prova flerta com a gramática tradicional dos filmes do gênero, e não tem vergonha de se assumir como um filme de amor, mas essa é apenas a sua superfície. Há muito mais a se descobrir acompanhando a jornada algo desastrosa de seus protagonistas.



Um dos grandes defeitos do filme, porém, é seu título brasileiro. Por que transformar um título original tão honesto eficiente como Crazy, stupid love em uma bobagem tremenda como o é Amor a toda prova? Além do que, trata-se de uma repetição picareta, pois P.J. Hogan havia dirigido Unconditional love em 2002, que recebeu o mesmo título em solo nacional. A proposta por trás dessa escolha não é de todo incoerente, mas soa irritante e tautológica diante de uma outra possibilidade muito mais cheia de relevância. Vale comentar que tanto Steve Carrel quanto Ryan Gosling estão no elenco de outros filmes com títulos deploráveis no Brasil: Eu, meu irmão e nossa namorada (Dan in real life, 2008) e Namorados para sempre (Blue valentine, 2010), respectivamente. A despeito dos títulos, contudo, os dois também são ótimos filmes, e Amor a toda prova vem se filiar a uma tradição recente de nomenclaturas equivocadas para histórias bem contadas e cheias de grandes momentos.

Feito esse grande parênteses, volta-se a comentar um filme que apresenta um outro diferencial interessante: aqui, as grandes vítimas do amor são os homens. Cal e Jacob, cada um a seu tempo, sofrem por seus objetos de desejo e amor, e precisam lidar com a “coita amorosa” da maneira mais otimista possível. Antes de Amor a toda prova, apenas (500) dias com ela ((500) days of Summer, 2009) havia apostado em se dedicar ao outro lado das relações amorosas, colocando um protagonista masculino com dor de cotovelo. As mulheres aqui são cruéis e voluptuosas. Julianne Moore – uma das atrizes mais estupendas que o cinema já conheceu – também entra nessa onda; Sua Emily é um tanto volátil no que se refere ao amor, e parte o coração do (ex-) marido sem dó nem piedade, esfregando a verdade sobre seu caso extraconjugal quase sadicamente. Hannah não fica atrás, e é a grande responsável pela degringolada dos sucessos consecutivos de Jacob com a ala feminina. Por meio desse casal está representado aquele velho chavão da mulher difícil que atrai a atenção do homem e o instiga pelo desafio da conquista. O jovem galanteador compra o desafio assim como faz Dan (Jude Law) em Closer – Perto demais (Closer, 2004), sempre tentado a ter Anna (Julia Roberts) toda para si.

A maneira como Ficarra e Requa conduzem o enredo do longa-metragem é bastante eficiente, e faz perceber que o cinema também se faz de pequenas histórias. A dupla consegue extrair atuações precisas (termo um tanto estranho para uma arte tão subjetiva, aqui empregado com certo ressabiamento) de seu elenco e filmar um roteiro redondo, cuja autoria cabe a Dan Fogelman, pródigo em escritas de animações infantis (!), como Bolt – Supercão (Bolt, 2008) e Enrolados (Tangled, 2010). O texto elaborado por ele soa sempre sincero e verossímil, o que vale muito dentro do terreno das comédias românticas. Ademais, a maneira como os subenredos se encontram perto do final do filme trazem um charme todo especial à narrativa, que é muito bem pensada e se revela verdadeiramente surpreendente sem ser mirabolante. Sua apresentação nos faz lembrar o quanto a vida real pode repleta de ciclos e acasos, e que o coração parece não se preocupar em obedecer regras impostas pela razão. Para além de qualquer teoria, Amor a toda prova permanece depois do fim da sessão e garante boas risadas, um clima de descontração e uma trama irresistível, porque o banal com um bom acabamento pode se tornar delicioso.

24 de out. de 2011

A desconstrução com tempero cômico ou Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo e tinha medo de perguntar

O cinema praticado por Woody Allen na década de 70 é notadamente distinto do que ele tem feito em seus últimos filmes. Se desde 2005 ele tem passeado por capitais europeias para brindar o público com obras de valor inestimável que perseguem seus temas favoritos, em seus primeiros trabalhos nota-se a primazia da comédia física, com muitos traços do pastelão. Esse é, por vários momentos, o caso de Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo e tinha medo de perguntar (Everything you always wanted to know about sex * but were afraid to ask, 1972), uma galhofa e tanto com um tema que se presta a abordagens piadísticas com notável conveniência. O filme é composto de sete segmentos que se propõem a “desvendar” alguns mitos e questões relativos ao sexo, e se vale de um arsenal de piadas elaboradas no roteiro escrito pelo próprio Allen. A base para a sua elaboração foi o livro de David Reuben, que foi concebido como um manual para sanar dúvidas diversas em um campo tão marcado por tabus. Entretanto, como se percebe desde o primeiro segmento, a abordagem do diretor é puramente cômica.



Ele não está interessado em fazer uma mera transposição do texto original para o cinema, mas em apresentar uma releitura com fartas doses de seu humor típico por meio de situações que dialogam com a bizarrice em certa medida. Para isso, recrutou a si mesmo e a um time de atores que se saem muito bem em papéis um tanto improváveis. Entre as dúvidas que o filme se presta a “sanar” estão as seguintes: os afrodisíacos funcionam?, o que é sodomia?, o que acontece com o corpo durante uma relação sexual? Essas e as demais recebem um tratamento sempre assinalado pelo humor corrosivo, e afastam qualquer possibilidade de didatismo para a narrativa. Logo no primeiro segmento, Allen aparece como um bobo da corte que não é mais capaz de fazer o seu rei rir, e acaba se envolvendo em uma trama divertida envolvendo a rainha, a quem ele oferece uma poção que desperta sua libido quase instantaneamente, para depois não conseguir se esconder a tempo de um rei que acorda antes do previsto. Por meio dessa primeira história, nota-se que Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo e tinha medo de perguntar percorre sua duração apostando em frouxos de riso e em um conteúdo que não se leva a sério.

Voltando aos atores, vale comentar as presenças agradáveis de Louise Lasser em cena, repetindo com o diretor a parceria de Bananas (idem, 1971), filmado no ano anterior, e de Gene Wilder e Burt Reynolds. Este aparece no último segmento, como um dos chefes de operação do corpo humano que ajuda a administrar o frenesi derivado do êxtase sexual, e aquele interpreta um médico que se vê perdidamente apaixonado por uma ovelha. Sua participação se dá no segundo segmento, em que se levanta a questão da sodomia. Tudo com uma leveza e um coloquialismo que Allen sabe colocar muito bem em sua obra, embora este segundo elemento não seja propriamente o mais notável em seus trabalhos. A impressão que se tem diante desse filme é a de se ouvir alguém dando suas opiniões extravagantes sobre assuntos diversos ligados à área sexual, em um contexto de conversa de bar. Mesmo que muitas situações não cheguem a ser risíveis, é factual a observação de que Allen consegue ser provocativo, e que ele já sinaliza uma série de características que já estavam se delineando como recorrentes em seus longas-metragens.



Estão presentes no filme, de alguma maneira, a dificuldade em se delimitar o papel do artista no mundo e o sexo como frustração pessoal. Nenhum dos vários personagens do filme é bem-resolvido com essa questão, e demonstra essa dificuldade de inúmeras formas. Seria possível citar uma penca de trabalhos seus que abordam essas temáticas, como Noivo neurótico, noiva nervosa (Annie Hall, 1977) e Dirigindo no escuro (Hollywood ending, 2002), só para citar um exemplo de cada. Com relação a outros temas, também se pode observar a questão da ênfase da palavra, com personagens que mais falam sobre sexo do que propriamente o praticam. Os diálogos são típicos da obra alleniana, e ajudam a compor um quadro cômico que não se pauta (quase nunca) pela piada fácil ou de mau gosto. Ainda que a informalidade atravesse as tramas alinhavadas pelo diretor, ela não torna o filme uma sucessão de grosserias ou meras obscenidades. O que se tem é uma associação entre bom humor e algumas sutilezas, configurando uma mistura entre gargalhadas afrouxantes e sorrisos laterais.

A estruturação do filme em episódios é uma grande justificativa para apontá-lo, a priori, como irregular. Entretanto, o que dá unidade a cada uma das histórias apresentadas pelo diretor é seu eixo temático. Em comum, todas elas elas também têm a maneira um tanto desengonçada de fazer referência aos temas e às situações propostas. É interessante notar que, diferentemente de tantos outros diretores que recorrem com frequência à passionalidade, Allen oferece uma abordagem que foge da sensualidade e sublinha o tempo inteiro o humor. Ainda que, muitas vezes, esse humor seja uma cobertura para uma certa dose de desespero de inabilidade diante de situações diversas. O filme é desengonçado como Todos dizem eu te amo (Everyone says I love you, 1996), a incursão do diretor no musical. No caso do filme analisado, há que se lembrar ainda que se trata de uma obra totalmente de seu tempo, que apela para a comédia rasgada e não tem papas na língua ao falar do assunto que se presta a apresentar. É bem verdade que algumas concepções são muito mais do diretor que propriamente do senso comum, o que não deixa de ser muito divertido e curioso. Certamente, não é dos grandes trabalhos de sua carreira, mas vale como uma alegre experiência que atesta que sua obra só se depura com o tempo e, aqui, ainda tateava seus primeiros indicadores de identidade estética, para se tornar cada vez mais perene.

15 de out. de 2011

Melancolia e o encontro com o desespero da alma



É ponto pacífico entre os componentes da comunidade cinéfila que Lars Von Trier é um diretor provocativo. Há quem diga, ainda, que ele seja uma grande fraude. Outros, que haja um forte traço de genialidade em seus trabalhos. Seja como for, Melancolia (Melancholia, 2011) merece ser conferido. O filme é um tratado dolorido da impossibilidade do ser humano de lidar razoavelmente com seus temores, e do quanto eles podem devorar a alma de quem os sente. Justine (Kirsten Dunst) é a prova cabal de que essa extrema dificuldade existe. Sua depressão está em uma fase crítica, da qual nem mesmo seu casamento com um homem muito amoroso parece ser capaz de tirar. Ela é uma mulhere consumida pelo tédio, pela monotonia e pela descrença em que tudo possa mudar, e seu desespero irradia por seus poros e para suas atitudes. Sua irmã, Claire (Charlotte Gainsbroug) está a seu lado para ajudá-la incondicionalmente, mas não há quem possa tirá-la de seu marasmo.

No começo do filme, somos apresentados a Justine, que domina toda a ação da narrativa em sua primeira metade, quando Claire assume o posto de protagonista. Melancolia segue essa divisão clara proposta por Von Trier e, antes disso, um belo plano de abertura funciona como vaticínio para o que o desenrolar da trama reserva. E o sentimento que intitula o filme também é o nome de um planeta que se encontra em rota de colisão com a Terra, podendo gerar o fim da humanidade a qualquer momento. Eis a grande metáfora pensada pelo realizador dinamarquês, que trafega por recônditos sombrios da alma com este novo trabalho, de uma forma diferente da que tinha feito em Anticristo (Antichrist, 2009), em que foi capaz de gerar ojeriza com as fartas doses de violência e masoquismo. Não significa dizer, entretanto, que Melancolia seja mais leve. Muito pelo contrário. Trata-se de um filme grave, intenso e desconcertante, que toca em feridas ardidas, que desesperam ao serem revolvidas. O tal plano de abertura se apresenta ao som de Wagner, numa composição que acompanhará todo o longa-metragem, sendo um dos índices de sua capacidade de embevecer e atordoar.

O diretor aposta em um clima de constante asfixia, resultante da escolha de uma trilha sonora que desperta agudeza de sentimentos, além de uma câmera trôpega que filma cores frias e uma luz pálida que dimensiona o público para um ambiente em que nada está bem. Portanto, estamos diante de um drama na acepção mais estrita do termo, sem qualquer brecha para o alívio. Melancolia confronta o tempo todo e levanta a questão da sensação de falta de sentido da vida. O questionamento de Justine ecoa por toda parte: por que estou aqui? Entretanto, ela não parece buscar respostas, e se encontra resignada com a proximidade cada vez maior do planeta da órbita terrestre. Não existe consolo para ela. Não existe consolo para ninguém. Sua depressão está crítica, e nem mesmo o bolo de carne de que ela tanto gostava a satisfazem. Claire chega a prepará-los para a irmã, mas ela diz que eles têm gosto de cinzas. De certa forma, essa é a condição de Justine: despedaçada, decomposta, decantada. Por outro lado, Claire demonstra ser um rochedo, mas essa força acaba por ruir em determinado momento. Na segunda parte do filme, é a vez de Claire sucumbir ao desespero.



Melancolia é um filme incômodo por uma série de fatores, do tema que aborda ao tratamento que lhe é dispensado, passado pela excelente montagem que ajuda a compor um quadro de lamento profundo. Ao mesmo tempo, é um filme lindíssimo, que tem sua importância pela abertura da possibilidade de encontro do ser humano consigo mesmo. À medida em que as personagens vão chorando suas mazelas, vai ficando claro para o espectador o quanto aquele movimento pode ser uma grande catarse também para ele. Esse efeito especular espetacular faz o filme crescer como cinema e o eleva patamar de arte genuína, se se adotar a perspectiva de que a arte o é quando fala do homem em sua acepção universal. O sofrimento que atravessa as duas irmãs pode ser lido para além de fronteiras geográficas ou linguísticas, pois todos estamos passíveis de experimentá-lo. Além disso, existe uma lógica e uma verdade que atravessa todo o filme e que aponta para um mundo desesperançado, em que a descrença do ser humano em uma fonte de acalento chegou ao seu apogeu. Por tantos motivos, o longa alcança as linhas do zênite cinematográfico e inscreve seu nome no rol de grandes produções que mantêm a fé na sétima arte, e que emergem com baixa frequência. Pode-se dizer que Von Trier tenha erigido um monumento ao desconsolo, que aponta para a necessidade de revisão de passos e de rearranjo de perspectivas no campo da forma sobre como se pode encarar a vida.

A associação do termo que designa profunda tristeza com um planete de potência destruidora é mais do que acertada, e abre terreno para uma narrativa que também se beneficia de grandes atores. Kirsten Dunst está magnífica como Justine, e prova que também é capaz de oferecer ótimos desempenhos quando não sucumbe às comédias de apelo sensual que empesteiam as salas de cinema. Seu prêmio de melhor atriz no festival de Cannes de 2011 está em boas mãos, e coroa uma trajetória de franca evolução. A tristeza está de tal forma impregnada em sua personagem que nada parece aplacar sua afasia. Até mesmo sua irmã mais velha, que parecia tão segura de si e capaz de ampará-la, também vê sua establidade desmoronar. Melancolia nos prova, assim, que estamos todos vulneráveis. Não há quem não tenha enfrentado a tristeza e, se ainda não a enfrentou, esse dia certamene chegará. Por sua coragem em dissecar esse mal, o filme demonstra correlação possível com Reencontrando a felicidade (Rabbit hole, 2010), que também discorre sobre a falência da alegria naqueles que se encontram com a dor. Dunst dá conta de captar essa intensidade dramática a cada cena que lhe foi dada, e ainda destila sua beleza angélica em lindos fotogramas. A cena em que sua personagem se banha à luz do luar é tão fugaz quanto encantadora.

Charlotte Gainsbourg é outra que dá sinais claros de competência na pele de Claire, e trafega por uma linha tênue entre o conformismo, a omissão e o desalento. Sua personagem começa o filme como uma grande tábua de apoio para a irmã, mas acaba sendo atravessada por um desespero tão grande – ou talvez maior – quanto o de Justine, que a segunda parte de Melancolia dá conta de mostrar. A estrutura episódica é um recurso caro a Von Trier, que já o havia utilizado em Dogville (idem, 2003), Manderlay (idem, 2005) e Anticristo. No filme em questão, a estrutura é típica, composta de um prólogo, e dois capítulos cujos títulos são Justine e Claire. Ambas as atrizes têm chance de demonstrar toda a sua diligência, e Gainsbourg demonstra certa intimidade com o universo de Von Trier, por ser esta a segunda vez consecutiva em que é dirigida por ele. Não se pode negar que haja traços de misoginia na condução do percurso feito pelas duas irmãs. Como já havia feito antes, o cineasta coloca as mulheres da vez em situações extremas, em que suas forças são colocadas à prova por uma série de acontecimentos extenuantes. É como se ele exercitasse novamente seu sadismo para temperar com requintes de crueldade a vida de duas mulheres em tensão crescente, cuja certeza do fim fere de morte e leva a atitudes descabidas e disparatadas. Tudo isso envolto em aspectos técnicos e cênicos que constituem uma coreografia bem articulada da dança mortal e faiscante que é viver e estar de pé.

11 de out. de 2011

O casamento de Rachel: o colapso familiar revisitado

O título engana à primeira vista. O casamento de Rachel (Rachel getting married, 2008) é, na verdade, um filme sobre o drama familiar detonado por Kym (Anne Hathaway), uma jovem que acaba de ser liberada de uma clínica de reabilitação e que foi convidada para ser madrinha de casamento de sua irmã, cujo nome está presente no tal título. É através de sua presença que Jonathan Demme, mais conhecido por O silêncio dos inocentes (The silence of the lambs, 1991) e Filadélfia (Philadelphia, 1993) espia as lutas inglórias que se travam no seio de um ajuntamento familiar, calcando-se numa espécie de subgênero cinematográfico que é pródigo em conflitos. Como de hábito em produções sobre o tema, a reunião do clã de Connecticut é a ocasião perfeita para a emersão de antigas mágoas e ressentimentos, e de como pode ser trabalhoso lidar com as incongruências que, ora distanciam, ora aproximam parentes.



A festa é o cenário onde transcorre a maior parte do filme, cujo diretor se vale de uma estética um tanto “poluída” para a concepção de uma radiografia dolorida das mazelas que cada um dos convidados daquela comemoração apresenta. A narrativa transporta o público diretamente para a tal festa, sem que se possa acompanhar a cerimônia religiosa ocorrida alguns minutos antes. Então, o desfile de personagens começa, e é quase certo que cada espectador se identifique com algum deles. Aqui, Demme é feliz em colocar na tela pessoas que fogem à classificação esquemática de “tipos”, e valoriza o que há de mais humano e universal em cada um, desde a mãe extremosa até a irmã que não está tão segura de si assim, passando pelo noivo e por outros agregados que contribuem para o andamento da história. É interessante notar que a tal estética mencionada confere um aspecto quase documental a O casamento de Rachel, que tem sua grande força atrelada à atuação de Anne Hathaway, que merece o parágrafo seguinte.

A atriz, uma das mais requisitadas de sua geração atualmente, consegue demonstrar grande força e vivacidade na pele daquela que é a verdadeira protagonista da história. Normalmente anêmica e irrelevante em seus papéis, como em O segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain, 2005), ela exibe autenticidade e entusiasmo interpretando uma jovem com um histórico de desentendimentos com a família, cuja presença é a dinamite que faz eclodir uma série de engasgos que saem das gargantas dos convivas do matrimônio que movimenta o filme. Antes de sua Kym, seu papel mais apreciável talvez tenha sido um só: a Andrea de O diabo veste Prada (The devil wears Prada, 2006), em que desempenhou uma grande dobradinha com Meryl Streep. No filme de Demme, como bem definiu um crítico, Hathaway está tensa, arisca e linda, magnetizando as atenções para si e comprovando que está em franca evolução. Ela escapa dos tiques mais óbvios de quem tem o papel de uma (ex-) dependente química nas mãos, e oferece uma composição honesta e admirável, que ganha força com seus parceiros de cena.



O roteiro tem um dado curioso a ser comentado: ele foi escrito em apenas sete semanas e, apesar de ser o quinto da carreira de Jenny Lumet, foi o primeiro a ser rodado. Feliz escolha de Demme a de levar para as telas tal texto, já que sua sinceridade é um de seus pontos fortes, e ajuda a pinçar o filme de uma extensa seara de títulos que trazem reuniões familiares que se tornam lavagens de roupas sujas. A aproximação do roteiro e da montagem de O casamento de Rachel é muito mais de Festa de família (Festen, 1998), o grande marco do movimento Dogma 95, que de Tudo em família (The family Stone, 2005), um compêndio de lugares comuns sobre o tema. A maneira como a câmera se posiciona em algumas sequências, exercitando um certo voyeurismo, assemelha-se ao comportamento de intrusa silenciosa da lente de Vinterberg, que passeia pelos espaços como quem conhece cada recanto ali apresentado. Nesse sentido, ambos os filmes, cada qual com sua intensidade, traz para o foco a discussão sobre uma família disfuncional. O filão, como já se disse, é bastante profícuo no cinema de um modo geral, mas os acertos talvez sejam maiores que os erros.

O casamento de Rachel não é um daqueles dramas cuja força se assemelha a de um petardo, mas há que se notar que muitos de seus aspectos permanecem majoritariamente por um motivo : todos têm uma família, e a identificação virá em maior ou menor grau. Os encontros e desencontros que atravessam a narrativa demonstram seu caráter permansivo, pois onde há família, há incongruência e dissensões. Cabe comentar também a envolvente trilha sonora assinada por Donald Harrison Jr. e Zefer Tawil. Em uma das sequências mais musicais do filme, os convidados da festa se entregam a uma espécie de embriaguez na qual deixam fluir seu comportamento hedonista e despreocupado. Essa é uma das cenas mais interessantes apresentadas e, embora soe um tanto deslocada do decorrer da ação, confere um ar divagante a tudo o que vem acontecendo até então. É também um dos índices de personalidade do filme, algo tão urgente e necessário em um ambiente cinematográfico de isomorfismos preocupantes e submissão a fórmulas e esquemas descarados.

Em O casamento de Rachel, não existe espaço para culpados ou inocentes. Cada personagem é revelado em sua amplitude e em sua complexidade, o que caracteriza a obra como um passo adiante em meio a produções que retratam personagens chapados e sem grandes fragmentações. Kym talvez seja a síntese da grande contradição que atravessa a condição humana, com seus rompantes de verdade, suas tiradas agridoces e sua capacidade de continuar demonstrando afeto pela família em meio a calorosas discussões. A comemoração é sempre entrecortada por momentos de colocação de opiniões não muito agradáveis, que vão sucedendo um após o outro. Ao final da sessão, sobra a certeza de que, em família, não há terreno para o cultivo de meios-termos, e é preciso se desapegar de máscaras e capas para que o outro saiba com quem está lidando. Ainda assim, muitas vezes prevalecem os vernizes que embelezam aritificialmente as relações familiares, nossas primeiras relações com outros seres humanos, e apresentam pessoas que são como sepulcros caiados.

4 de out. de 2011

Cinema Paradiso e o amor explícito à sétima arte

O imaginário cinéfilo coletivo, de tempos em tempos, acolhe filmes que se inscrevem em uma espécie de panteão que os leva à lembrança franca e recorrente. Com Cinema Paradiso (Nuovo cinema Paradiso, 1988) aconteceu exatamente esse processo. Sua inscrição no rol dos inesquecíveis se deu quase concomitantemente ao seu lançamento, e fez dele um ícone de uma geração de apaixonados pelo fazer cinematográfico e pela nobreza da experiência de estar diante de uma tela acompanhando uma boa história. À base de alguns clichês que podem ser abstraídos, Giuseppe Tornatore ofereceu ao público uma emocionante e sincera abordagem de filmes dentro de um filme, e nos outorgou uma bela carta de amor ao cinema.



No centro da trama se encontra Salvatore (Jacques Perrin, na fase adulta), um homem que está afastado do contato familiar há algum tempo. Sua mãe tenta restabelecer comunicação com ele para avisar da morte do padre da pequena cidade onde ele viveu, e a notícia aciona uma grande caixa de recordações que estavam adormecidas naquele que agora é um cineasta bem-sucedido. Então, somos transportados para uma clássica narrativa em flashback, o primeiro dos clichês irresistíveis empregados por Tornatore para trazer encanto ao seu conto. E o personagem principal passa a ser interpretado por Salvatore Cascio, um adorável garotinho que conduz uma bela jornada por uma vida simples e algo dolorida, cabível dentro uma conjuntura de conflito, como o era a Segunda Guerra Mundial. Ali, envoltos por uma série de limitações de ordem financeira, os habitantes não tem grandes esperanças, e o cinema surge como uma grande possibilidade de mergulho em uma outra dimensão, capaz de fazer as pessoas esquecerem suas mazelas por aproximadamente duas horas.

O grande impacto, porém, surge para Salvatore, graciosamente apelidado de Totò pela família e, por tabela, pela comunidade local. O menino desenvolve uma relação de amizade sublime com Alfredo (Philippe Noiret), o projecionista do Cinema Paradiso, uma modesta sala que apresenta filmes não tão recentes e se torna uma das raras alternativas de entretenimento para os moradores da região. Em meio às suas travessuras de criança, Totò faz constantes visitas a Alfredo, e esse contato contínuo faz brotar no coração dele um amor imenso pelo ofício exercido pelo amigo. Não por acaso, ele faz do cinema a sua profissão, como indica o roteiro nos primeiros minutos de filme. Para o personagem, a sétima arte é uma grande porta de entrada para mundos inimagináveis, romances avassaladores, espetáculos grandiosos e uma fuga voluntária e algo saudável de uma realidade tão perversa. O menino não sabe sequer se seu pai, distante por causa da guerra, retornará para casa, e resta a ele entretecer sonhos mirabolantes proporcionados pela sala de projeção de sua cidade, que ganha cada vez mais freqüentadores. Os filmes, porém, têm de passar pelo crivo do padre, que se escandaliza com todas as cenas de romance e as censura, incitando o imaginário dos meninos da idade de Totò.

A amizade do garoto com Alfredo é o outro grande encanto do filme. O projecionista, um pobre homem que não se vê em outra profissão senão aquela, é dado a alguns rompantes, no melhor estilo italiano – é preciso cuidar para não ter uma concepção enviesada por estereótipos -, causados pela presença insistente de Totò em seu local de trabalho. O menino é arguto em suas negociações com Alfredo, e consegue obter definitivamente a disposição em ensiná-lo a lidar com as projeções depois de ajudá-lo em uma árdua tarefa: um exame escolar. Daí em diante, Totò aprenderá todos os procedimentos necessários para transformar os rolos em imagens, o que o levará, posteriormente, a espalhar o seu encanto com uma multidão de espectadores. Nesse sentido, Cinema Paradiso se revela como um ensaio poético sobre o poder da imagem e suas reverberações na vida de um espectador. A paixão pelo cinema move a vida inteira do protagonista, e ajuda a alinhavar suas lembranças, como quem está o tempo inteiro vivendo uma sequência de fotogramas. Nas entrelinhas, Tornatore sustenta que a vida é cinematográfica, e oferece um painel rico de possibilidades para cada um, que é o mais importante de sua própria história.



Interessante é observar que, quando estava filmando o longa, o cineasta o concebera como uma espécie de epitáfio para o próprio cinema, que, já àquela época, sucumbia à crescente industrialização perpetrada por tantos nomes que se atrelam a ele unicamente por razões comerciais e pecuniárias, bem como buscara apontá-lo como um signo da resistência das salas tradicionais, cada vez mais suplantadas pela proliferação dos multiplexes que arrebanham tertúlias de espectadores que privilegiam ação desenfreada e pouca emoção. Essa ideia acabou sendo deixada de lado diante do sucesso alcançado pelo filme. Pelo menos, o diretor nunca mais tocou no assunto, o que parece indicar o abandono da defesa dessa bandeira. Aqui também cabe a citação de A rosa púpura do Cairo (The purple rose of Cairo, 1985), filmado alguns anos antes a também lembrado como um tratado sobre o fascínio exercido pela sétima arte.A verdade é que o filme italiano se abre em muitas portas e permite debater qual a relação que cada espectador tem com o cinema. Há quem o enxergue como fonte de fruição e plataforma para a reflexão sobre questões profundas. Há quem o conceba como um espaço para risadas desatadas, diante de uma vida tão hostil que, por si só, já é dramática. A despeito de qual seja a maneira com que se encara o cinema, é indiscutível o apelo que ele exerce sobre o público, especialmente em uma sociedade tão imagética e adepta de tecnologias que se desenvolvem em progressão geométrica como essa contemporânea.

Não se pode esquecer de se comentar a bela trilha sonora assinada por Andrea e Ennio Morricone para o filme, também sempre lembrada quando se menciona Cinema Paradiso. As canções pulsam a cada cena, e traduzem uma realidade de desalento e o apego ao cinema como uma válvula de escape para uma vida um pouco menos ordinária. O compositor selou uma parceria recorrente com Tornatore, em títulos subsequentes como A desconhecida (La sconosciuta, 2006) e o recente Baaría – A porta do vento (Baaría, 2009). No filme analisado, a música é um dos grandes trunfos de que a narrativa dispõe para conferir grandiosidade e emotividade à trajetória de Totò. Esse aspecto do filme leva a uma citação a Ezra Pound, teórico da literatura que postulou que a linguagem poética é carregada de energia graças a à conjunção de três elementos: melopeia, fanopeia, e logopeia. Os termos têm origem grega e definem, respectivamente, o poder de criação da música, da imagem e da palavra. Esses termos podem ter seu uso alargado e pensado para a linguagem cinematográfica, carregada de impacto e capacidade mobilizadora. A doce melopeia de Cinema Paradiso salta aos ouvidos como um canto mavioso e sensível, que envolve os sentimentos, evidenciando um filme que não tem a menor vergonha de ser um filme para se sentir.

Seus intérpretes também contribuem para a fluidez e comoção interna, sobretudo o menino Salvatore Cascio, que ganhou o papel depois de ser testado como tantas outras crianças do lugar em que se deram as filmagens. Na vida real, ele tem o mesmo nome e o mesmo apelido do personagem escrito por Tornatore, o que chamou a atenção do diretor. Entretanto, o que levou-o a eleger Cascio como Totò foi a grande habilidade do garoto em memorizar as falas e marcações de uma cena durante os testes de elenco. Que pessoa com um pingo de sentimento e emoção resiste ao encanto do personagem? Sempre envolvido em pequenas encrencas, mas também uma criança amorosa e compassiva, ele ganha o público quase à primeira vista, que começa a partilhar de seu enternecimento diante de um desfile de imagens filmadas. Com todos os fatores agrupados e uma sinceridade e eficiência no uso de alguns lugares comuns para os dramas, Cinema Paradiso atesta sua beleza em sua arquitetura cênica que nos leva a pensar no quão idílicos podem ser a infância e o cinema, levando à velha constatação emoldurada por uma memória edulcorante de que “éramos todos felizes e não sabíamos”.