22 de nov. de 2011

Lutando pela sobrevida em Direito de amar


Malgrado o seu título em português completamente ordinário, Direito de amar (A single man, 2009) é a auspiciosa estreia na direção de Tom Ford. O renomado estilista texano é o grande responsável por levar às telas a história de um homem cujo estado é o próprio retrato do desalento. George (Colin Firth) perdeu o companheiro com quem viveu por 16 anos em um acidente automobilístico. A tragédia vem se revelando devastadora para o professor de inglês, que encontra na amiga Charley (Julianne Moore) o único porto seguro, sendo ela capaz de compartilhar de alguma maneira de seu desespero. Em meio à dor que o consome, ele cogita a ideia de suicídio, que lhe parece a melhor alternativa para dar cabo de seu sofrimento. Entretanto, a vida vai lhe apresentado pessoas e pequenos momentos que talvez possam ser indícios de que seguir adiante ainda seja possível e valha a pena.

Baseado nesse argumento dolorido, Ford construiu uma história de dor universal, de sentimentos contraditórios e do peso que a ausência pode representar. George lida com os efeitos devastadores da morte de Jim (Matthew Goode), a quem os anos de convivência ensinaram a considerar a pessoa mais importante do mundo. Em um dia crucial do ano de 1962, o protagonista se vê aturdido pelos ecos desse passado recente de morte, e pela necessidade de podar as arestas que mantém em sua vida. Nessa data, ele precisa escolher entre morrer e lutar. A princípio, a primeira escolha parece ser a mais acertada, mas os fatos da vida se encarregam de redimensionar seu pensamento, e colocam—no em uma inesperada proximidade com um de seus estudantes. Para o mundo, ele ainda é a fortaleza que jamais se abala, um homem ilibado que exerce sua profissão com dignidade e firmeza. Por dentro, porém, George está destruído. Quem se achega bem junto a ele, como é o caso desse aluno, pode perceber.

Durante seus 101 minutos de duração, Direito de amar se demonstra um filme simples, mas de emoções complexas. Ford se propôs a apresentar um estudo meticuloso da dor, que não passa em um piscar de olhos. George vive dia após dia, existe mesmo aos sábados, domingos e feriados. Não há como escapar da tristeza sem antes passar por ela: só pode recuperar a alegria quem um dia a perdeu. E todo o filme particular de George, que só é exibido em sua cabeça e são seus pensamentos mais secretos, passa—se em um único dia. Essa estratégia de condensar a narrativa em apenas 24 horas é um recurso recorrente no cinema, que não perde a validade e contribui para concentrar um vasto campo de emoções em um curto arco temporal. Dessa decisão, já foram produzidos filmes maravilhosos, de origens e temáticas vizinhas à de Direito de amar, entre os quais se podem mencionar os densos e ditosos Na cama (En la cama, 2005) e A vida dos peixes (La vida de los peces, 2010), ambos de Matías Bize, um especialista em histórias de um único dia.



É inegável que a alma do longa seja Colin Firh. O ator cinquentão oferece um brilhante trabalho de entrega e dedicação ao seu personagem, e o mantém verossímil e quase palpável o tempo todo. Seu George é uma justa oportunidade de protagonismo, depois de uma longa carreira como coadjuvante, em títulos como Simplesmente amor (Love actually, 2003). Antes de Direito de amar, o mais perto que o ator tinha chegado do posto de principal havia sido com O diário de Bridget Jones (Bridget Jones’ diary, 2001) e Bridget Jones — No limite da razão (Bridget Jones: the edge of reason, 2004), nos quais era um dos pretendentes da personagem—título. Entretanto, é no filme de Ford que ele tem a chance magna de brilhar em um impressionante voo solo. Sua atuação é magnetizante, e ele consegue dar a ideia da consumição do personagem através de seu olhar. Mas Firth não está inteiramente sozinho nesse mergulho dolorido. Sua parceira de cena, ninguém menos que Julianne Moore, é perfeita em sua composição e, transpirando talento, é a síntese da guarida de que George tanto necessita em um dia difícil e aparentemente interminável. Ford acertou em cheio na escalação de ambos, maximizando suas chances de acerto com dois intérpretes cujo valor é indiscutível.

Sobressai-se, ainda a exuberante fotografia assinada por Eduard Grau. Os ambientes clicados pelas lentes poderosas desse talentoso rapaz qualificam ainda mais o filme. Nada mais adequado, por sinal, já que estamos diante de um cuidadoso trabalho de um estilista que debuta na direção. Grau tem um currículo relativamente curto, mas já obteve chances de demonstrar sua competência em títulos subsequentes a Direito de amar, como Enterrado vivo (Buried, 2010) e Finisterrae (idem, 2010), dois filmes de estirpes e intenções díspares que carregam seu nome dos créditos. Fica patente o quanto, num filme como o de Ford, a fotografia pode contar muitos pontos, e Grau demonstra ciência desse fato, amplificando a potência dramática de cada cena com sua direção fotográfica que lapida cada ambiente com a virtude de um esteta da imagem. A esse aspecto técnico se soma a belíssima direção de arte, a cargo de Ian Phillips, que, enfim, ganhou um sopro de dignidade em sua carreira, depois de uma sequência de filmes de gosto duvidoso, entre os quais se inclui até mesmo Crepúsculo (Twilight, 2008). E o que dizer dos figurinos assinados por Arianne Phillips, escandalosamente belos? Por esses motivos, Direito de amar se mostra como um drama bonito no sentido figurado da palavra, mas também em sua acepção plástica. Ford também exibe com seu primeiro filme como diretor uma forte preocupação com a fruição estética.

Em seu percurso lento e suave, o filme vai revelando suas camadas aos poucos, e consegue abarcar, com sua dita condensação temporal, uma série de questões cruciais para a existência humana, sem perder a dimensão estética que tanto se aponta e se reclama na arte. Direito de amar se revela como arte nessas duas dimensões, e decanta suas passagens de maneia garbosa e elegante, com cada uma de suas cenas em uma costura toda particular, evidenciando a autoralidade de seu criador. Para o filme, ele se baseou no livro de Christopher Isherwood, um importante escritor inglês naturalizado estadunidense, e imprimiu ao longa toda a sua veia de moda, equilibrando a estrutura dramática com a arquitetura visual, traduzida nos já comentados figurinos, fotografia e cenários. De todas essas digressões que derivam do filme, contudo, a mais importante talvez seja o longo percurso pelas lembranças que George vai trilhando no mais longo dia de sua vida. O que interessa não é a origem da dor, mas como ela se manifesta e se processa. Em seus minutos finais, Direito de amar se afirma em definitivo como um dolorido retrato particular da memória de um sobrevivente.

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