20 de dez. de 2011

Chagas profundas e difíceis de carregar apontadas em Submarino


Dolorido como poucos, Submarino (idem, 2010) assinala novamente a capacidade de Thomas Vinterberg de incomodar e impactar. Narrado com uma quase assepsia, o filme se foca nas dificuldades de relacionamento de dois irmãos com o mundo, bem como entre si mesmos. Nick (Jakob Cedergren) e Martin (Peter Plaugborg) foram profundamente marcados por um trauma na infância, envolvendo sua mãe e seu irmão mais novo, do qual nunca demonstram, na idade adulta, completa superação. Eles estão há muito tempo sem se ver, algo que fica claro depois que a narrativa do filme sai do curto flashback inicial e chega ao presente do enredo. Nick aparece desde o começo como um homem atormentado e arredio. Martin só retorna à cena com quase uma hora de filme.

Pautado pela lentidão, Vinterberg entregou mais um filme pungente, exibindo a mesma destreza na captura das discretas nuances que envolvem os seres humanos. A exemplo de sua faiscante estreia mais de uma década atrás, com o incisivo Festa de família (Festen, 1998), ele vislumbra o cotidiano de pessoas ligadas por laços sanguíneos e as derivações nem sempre tão benévolas desse tipo de relacionamento. Submarino é um trabalho denso, desprovido de boa parte da palatabilidade dos filmes comerciais que sempre têm espaço garantido no circuito exibidor, para dissabor de muito entusiastas de produções dessa estirpe. A situação piora quando se trata do cinema escandinavo, como é o caso do filme de Vinterberg, que foi exibido no Festival de Berlim de 2010 e chegou ao Brasil com um relativo atraso.

Na idade adulta de ambos os irmãos, o foco do longa, eles lidam com as limitações que a vida lhes impõe, cultivando comportamentos tantas vezes reprováveis. Nick flerta com a cafajestagem, fazendo de uma namorada um par descartável, ao passo que Martin trilha um caminho de vício em heroína, o que não o impede de se demonstrar um pai extremamente amoroso com o filho, embora, por seu problema, ele represente um grande perigo ao garoto. Como se pode perceber, a dupla de protagonistas caminha o tempo todo no fio da navalha, e angustia o público com suas escolhas errôneas e frustradas. Vinterberg espia um cotidiano dolorido, longe de qualquer floreio e edulcorante, como quem lança luz sobre as chagas de uma sociedade doente e aflita.



Um detalhe importante assinalado pela crítica é o amadurecimento do diretor no tratamento da temática que lhe é cara. Ele abandonou, ao longo da carreira, os preceitos do Dogma 95, e Submarino deixa isso muito claro, com sua estética mais límpida que a de Festa de família e a ausência dos tremores de câmera que entonteciam o público no seu primeiro filme. Não se trata, em princípio, de pontos negativos, mas, simplesmente de características que o diretor foi deixando de lado em prol de uma autorreinvenção em sua carreira. No fundo, são mostras de versatilidade no olhar para um assunto que é capaz de despertar comoção geral. Quando se trata de família, é possível afirmar que não há quem não tenha alguma sensação no peito e uma opinião formada. Aliás, esse é o calcanhar de Aquiles dos dois irmãos, que, em meio às dissonâncias que os circundam, ainda guardam afeição e carinho um pelo outro. Mesmo quando, em um instante de fúria vulcânica, Nick diga que só quer ajudar o sobrinho, salvando-o de Martin.

Distante de qualquer centelha de sentimentalismo, Submarino permanece na memória longamente, e se filia a outro exemplar bem-sucedido de filme sobre dor e sofrimento interiorizados: Reencontrando a felicidade (Rabbit hole, 2010). Assim como o filme de John Cameron Mitchell, o trabalho do dinamarquês é escavar o processo diário de lida com a realidade cruel que se impõe a protagonistas cuja desorientação é a própria bússola, com todo o oximoro que a observação carrega. Em Submarino, são raras as cenas pontuadas por uma trilha sonora, o que acaba por amplificar a sensação de nó na garganta que atravessa o espectador do filme. Vinterberg matiza discretamente o luto perene de Nick e Martin com uma luz esbranquiçada que, de longe, faz remeter a Ensaio sobre a cegueira (Blindness, 2008), que, obviamente, valeu-se do recurso de modo distinto, enquanto o objeto de análise deste texto segue por outra via com igual eficiência.

Por sua capacidade de enfrentar um dia a dia tão incômodo, o filme pode ser acusado de pessimista, mas há que se atentar para o seu subtexto não tem desacreditado quanto as aparências levam a concluir. Em verdade, Submarino exibe protagonistas com uma mescla de fúria, ternura e carência. Nick, por exemplo, é capaz de cometer um ato extremo para proteger um grande amigo de infância com quem retoma contato depois de tantos anos. E de sofrer terrivelmente por um novo evento chocante em sua idade adulta, sobre o qual afirma não ser plenamente capaz de suportar. Essa dualidade tão possível de habitar o coração dos homens assevera que o filme adota o realismo como sua rosa dos ventos, e resulta em uma tradução dolorida da dor e das pequenas e sutis alegrias que permeiam a vida de qualquer pessoa. Como qualquer outro filme, Submarino é um recorte e uma reinterpretação da vida. E a maneira com a qual Vinterberg a faz é verdadeiramente devastadora.

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