25 de nov. de 2011

Traídos pelo desejo, a vida e seus pontos de virada

Engenhosidade é um vocábulo adequadíssimo para se correlacionar com Traídos pelo desejo (The crying game, 1992), um trabalho dirigido e roteirizado por Neil Jordan que brinca com os descaminhos e dissabores que a vida pode apresentar. Não por acaso, o filme fez um grande barulho à época de seu lançamento, demonstrando que histórias originais e bem conduzidas realmente chamam a atenção do público e da crítica. Tudo começa quando um soldado inglês chamado Jody (Forest Whitaker) é sequestrado por um grupo de guerrilheiros do IRA, entre os quais está Fergus (Stephen Rea), um homem dotado de certa sensibilidade. Jody cai nas garras dos militantes radicais depois de se engraçar para o lado de Jude (Miranda Richardson, uma atriz injustiçada), que o seduz descaradamente para arrebanhá-lo para o grupo. Então, a proximidade entre ele e Fergus gera uma amizade, regada a longas conversas mantidas durante o tempo em que o soldado está sob a vigilância do guerrilheiro. Que fique bem claro: essa é apenas a ponta do iceberg filmado por Jordan.



Enquanto pretendem usar Jody como escudo e represália contra o governo irlandês, ele e Fergus vão desenvolvendo um relacionamento amistoso, que deixa entrever que Fergus não está tão satisfeito com as decisões tomadas por seu grupo. Mas a proximidade entre os dois desagrada os seus companheiros, que os afastam, até o dia em que Jody consegue escapar de seu cativeiro correndo floresta adentro, e um atropelamento totalmente inesperado tira a sua vida. Daí em diante, o título em português começa a ir se justificando aos poucos, e o personagem de Stephen Rea, a princípio coadjuvante, assume importância vital para a narrativa. Isso porque, antes de morrer, Jody fala para Fergus sobre a sua namorada, e o guerrilheiro promete para si mesmo que irá ao seu encontro para comunicar a morte do seu então amigo. Os dois acabam se encontrando e o envolvimento amoroso entre ambos acaba por se tornar inevitável.

Aos poucos, Jordan vai engendrando sua teia com Traídos pelo desejo, deixando o público ansioso pelos desdobramentos que a trama apresentará. O grande burburinho causado pelo filme ocorreu por causa do segredo que envolve a personagem Jil (Jaye Davidson), a ex-namorada de Jody. Quando o filme estava na corrida pelo Oscar de 1993, houve quem se chocasse com a revelação, o que não impediu a Academia, notadamente conservadora, de premiar o longa na categoria de melhor roteiro original. Nada mais justo, afinal Jordan se mostra, além de um competente diretor, um roteirista de mão cheia, com uma trama que não deixa pontas soltas e constroem personagens redondos, que vão revelando novas facetas à medida que vamos conhecendo-os mais. A despeito de saber ou não previamente qual é o mistério com relação a Jil, o filme reserva bons momentos. Mesmo os cinéfilos mais xiitas, que não admitem o menor sinal de spoiler, poderão desfrutar de uma ótima sessão se souberem de antemão que não se trata exatamente de uma pessoa do sexo feminino.



O filme conta com um colaborador recorrente de Neil Jordan no elenco. O talentoso Stephen Rea é o que se pode chamar de ator fetiche do diretor, e a parceria entre eles já rendeu até hoje nada menos do que dez filmes. Tudo começou com Angel (idem, 1982), passando por títulos como Fim de caso (End of the affair, 1999), até chegar ao recente Ondine (idem, 2010). Seu Fergus é um profundo poço de incógnitas, que deixa o espectador sempre na incerteza sobre seus desejos, especialmente no que tange ao seu relacionamento escrito por linhas tortas com Jil, por quem nutre um sentimento que não se sabe ao certo classificar. O ator é bastante competente no que faz, o que não impede que ele seja preterido pelos demais cineastas. Seu desempenho em Traídos pelo desejo lhe rendeu sua indicação ao Oscar de melhor ator, a única de sua carreira até hoje, perdida em favor de Al Pacino, que concorria naquele ano por Perfume de mulher (Scent of woman, 1992), o grande favorito daquela edição do prêmio. Trata-se de uma grande injustiça, pois cada fotograma do filme de Jordan se beneficia de sua atuação hipnótica, demonstrando um homem cheio de lacunas e carências que encontra na tortuosidade de seus sentimentos por uma espécie de outsider a razão de viver. Entre idas e vindas, encontros, desencontros e reencontros, as trajetórias dos dois, uma vez tendo se encontrado, tornam-se irremediavelmente entrelaçadas.

Enigmático, Traídos pelo desejo é um filme que permanece na memória e salta aos olhos como uma história que não descamba para o sensacionalismo ou para as viradas gratuitas de roteiro. Ainda que lide com um certo componente de estranheza na sua narrativa, Jordan demonstra ser hábil para revestir cada acontecimento de uma notória credibilidade, assinalando que a própria vida pode preparar grandes armadilhas das quais não se escapa facilmente. O filme pode ser entendido com um drama sobre a complexidade da natureza humana, bem como das peripécias que se pode viver mediado pelos golpes do coração. Tanto Fergus quanto Jil entram em uma relação de dependência, e esse mutualismo é o guia de seu percurso até que uma nova tragédia, semelhante à que vitimou Jody, venha se abater sobre eles. Na bela alquimia montada por Jordan, também há espaço para uma bela trilha sonora, uma incumbência de Anne Dudley, capaz de gerar poesia em vários contextos, inclusive no plano de abertura que exibe os créditos. As canções vão ao encontro dos espaços e das cenas, e arrematam o enredo algo inusitado e bem pensado por um diretor que merece, muito mais do que uns e outros, um lugar na ribalta.

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