15 de out. de 2011

Melancolia e o encontro com o desespero da alma



É ponto pacífico entre os componentes da comunidade cinéfila que Lars Von Trier é um diretor provocativo. Há quem diga, ainda, que ele seja uma grande fraude. Outros, que haja um forte traço de genialidade em seus trabalhos. Seja como for, Melancolia (Melancholia, 2011) merece ser conferido. O filme é um tratado dolorido da impossibilidade do ser humano de lidar razoavelmente com seus temores, e do quanto eles podem devorar a alma de quem os sente. Justine (Kirsten Dunst) é a prova cabal de que essa extrema dificuldade existe. Sua depressão está em uma fase crítica, da qual nem mesmo seu casamento com um homem muito amoroso parece ser capaz de tirar. Ela é uma mulhere consumida pelo tédio, pela monotonia e pela descrença em que tudo possa mudar, e seu desespero irradia por seus poros e para suas atitudes. Sua irmã, Claire (Charlotte Gainsbroug) está a seu lado para ajudá-la incondicionalmente, mas não há quem possa tirá-la de seu marasmo.

No começo do filme, somos apresentados a Justine, que domina toda a ação da narrativa em sua primeira metade, quando Claire assume o posto de protagonista. Melancolia segue essa divisão clara proposta por Von Trier e, antes disso, um belo plano de abertura funciona como vaticínio para o que o desenrolar da trama reserva. E o sentimento que intitula o filme também é o nome de um planeta que se encontra em rota de colisão com a Terra, podendo gerar o fim da humanidade a qualquer momento. Eis a grande metáfora pensada pelo realizador dinamarquês, que trafega por recônditos sombrios da alma com este novo trabalho, de uma forma diferente da que tinha feito em Anticristo (Antichrist, 2009), em que foi capaz de gerar ojeriza com as fartas doses de violência e masoquismo. Não significa dizer, entretanto, que Melancolia seja mais leve. Muito pelo contrário. Trata-se de um filme grave, intenso e desconcertante, que toca em feridas ardidas, que desesperam ao serem revolvidas. O tal plano de abertura se apresenta ao som de Wagner, numa composição que acompanhará todo o longa-metragem, sendo um dos índices de sua capacidade de embevecer e atordoar.

O diretor aposta em um clima de constante asfixia, resultante da escolha de uma trilha sonora que desperta agudeza de sentimentos, além de uma câmera trôpega que filma cores frias e uma luz pálida que dimensiona o público para um ambiente em que nada está bem. Portanto, estamos diante de um drama na acepção mais estrita do termo, sem qualquer brecha para o alívio. Melancolia confronta o tempo todo e levanta a questão da sensação de falta de sentido da vida. O questionamento de Justine ecoa por toda parte: por que estou aqui? Entretanto, ela não parece buscar respostas, e se encontra resignada com a proximidade cada vez maior do planeta da órbita terrestre. Não existe consolo para ela. Não existe consolo para ninguém. Sua depressão está crítica, e nem mesmo o bolo de carne de que ela tanto gostava a satisfazem. Claire chega a prepará-los para a irmã, mas ela diz que eles têm gosto de cinzas. De certa forma, essa é a condição de Justine: despedaçada, decomposta, decantada. Por outro lado, Claire demonstra ser um rochedo, mas essa força acaba por ruir em determinado momento. Na segunda parte do filme, é a vez de Claire sucumbir ao desespero.



Melancolia é um filme incômodo por uma série de fatores, do tema que aborda ao tratamento que lhe é dispensado, passado pela excelente montagem que ajuda a compor um quadro de lamento profundo. Ao mesmo tempo, é um filme lindíssimo, que tem sua importância pela abertura da possibilidade de encontro do ser humano consigo mesmo. À medida em que as personagens vão chorando suas mazelas, vai ficando claro para o espectador o quanto aquele movimento pode ser uma grande catarse também para ele. Esse efeito especular espetacular faz o filme crescer como cinema e o eleva patamar de arte genuína, se se adotar a perspectiva de que a arte o é quando fala do homem em sua acepção universal. O sofrimento que atravessa as duas irmãs pode ser lido para além de fronteiras geográficas ou linguísticas, pois todos estamos passíveis de experimentá-lo. Além disso, existe uma lógica e uma verdade que atravessa todo o filme e que aponta para um mundo desesperançado, em que a descrença do ser humano em uma fonte de acalento chegou ao seu apogeu. Por tantos motivos, o longa alcança as linhas do zênite cinematográfico e inscreve seu nome no rol de grandes produções que mantêm a fé na sétima arte, e que emergem com baixa frequência. Pode-se dizer que Von Trier tenha erigido um monumento ao desconsolo, que aponta para a necessidade de revisão de passos e de rearranjo de perspectivas no campo da forma sobre como se pode encarar a vida.

A associação do termo que designa profunda tristeza com um planete de potência destruidora é mais do que acertada, e abre terreno para uma narrativa que também se beneficia de grandes atores. Kirsten Dunst está magnífica como Justine, e prova que também é capaz de oferecer ótimos desempenhos quando não sucumbe às comédias de apelo sensual que empesteiam as salas de cinema. Seu prêmio de melhor atriz no festival de Cannes de 2011 está em boas mãos, e coroa uma trajetória de franca evolução. A tristeza está de tal forma impregnada em sua personagem que nada parece aplacar sua afasia. Até mesmo sua irmã mais velha, que parecia tão segura de si e capaz de ampará-la, também vê sua establidade desmoronar. Melancolia nos prova, assim, que estamos todos vulneráveis. Não há quem não tenha enfrentado a tristeza e, se ainda não a enfrentou, esse dia certamene chegará. Por sua coragem em dissecar esse mal, o filme demonstra correlação possível com Reencontrando a felicidade (Rabbit hole, 2010), que também discorre sobre a falência da alegria naqueles que se encontram com a dor. Dunst dá conta de captar essa intensidade dramática a cada cena que lhe foi dada, e ainda destila sua beleza angélica em lindos fotogramas. A cena em que sua personagem se banha à luz do luar é tão fugaz quanto encantadora.

Charlotte Gainsbourg é outra que dá sinais claros de competência na pele de Claire, e trafega por uma linha tênue entre o conformismo, a omissão e o desalento. Sua personagem começa o filme como uma grande tábua de apoio para a irmã, mas acaba sendo atravessada por um desespero tão grande – ou talvez maior – quanto o de Justine, que a segunda parte de Melancolia dá conta de mostrar. A estrutura episódica é um recurso caro a Von Trier, que já o havia utilizado em Dogville (idem, 2003), Manderlay (idem, 2005) e Anticristo. No filme em questão, a estrutura é típica, composta de um prólogo, e dois capítulos cujos títulos são Justine e Claire. Ambas as atrizes têm chance de demonstrar toda a sua diligência, e Gainsbourg demonstra certa intimidade com o universo de Von Trier, por ser esta a segunda vez consecutiva em que é dirigida por ele. Não se pode negar que haja traços de misoginia na condução do percurso feito pelas duas irmãs. Como já havia feito antes, o cineasta coloca as mulheres da vez em situações extremas, em que suas forças são colocadas à prova por uma série de acontecimentos extenuantes. É como se ele exercitasse novamente seu sadismo para temperar com requintes de crueldade a vida de duas mulheres em tensão crescente, cuja certeza do fim fere de morte e leva a atitudes descabidas e disparatadas. Tudo isso envolto em aspectos técnicos e cênicos que constituem uma coreografia bem articulada da dança mortal e faiscante que é viver e estar de pé.

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