14 de dez. de 2011

Humor ferino e neuroses atemporais flagradas em Dorminhoco



Em sua fase setentista, Woody Allen era dado a certas estripulias, não apenas de roteiro, mas também físicas. Isso explica a profusão de piadas que se compõem de referências corpóreas notada nos seus filmes dessa época, como é o caso de Dorminhoco (Sleeper, 1973). A comédia oferece uma leitura hilariante para o futuro, mas precisamente o século XXII, época na qual Miles Monroe (Allen) desperta depois de 200 anos de sono provocado pela criogenia. Tudo no mundo está muito diferente de quando ele dormira, e sua reação diante das mudanças sucedidas ao longo de tanto tempo é de espanto, naturalmente. E seu retorno ao convívio social se dá por causa de uma manobra de uma equipe médica que necessita de alguém sem registro, como ele, para uma reação em massa contra um governo totalitário. Está iniciada a série de peripécias que vai permear esse que é o quarto filme de uma longa e notável carreira.

Desde o início, fica evidente que Dorminhoco flerta com o melhor da tradição do cinema mudo, em especial aquele praticado por Charles Chaplin, figura de proa de um subgênero que viu seu prestígio naufragar com o advento do som nessa arte. É quase inevitável não se remeter ao grande Carlitos ao ver Miles correndo de um lado para o outro, quase sempre em fuga e tentando entender o que se tornou o mundo enquanto ele dormia profundamente. Nesse aspecto, pode-se perceber que os questionamentos basais da obra alleniana já estavam presentes aqui, mesmo que de forma embrionária. Miles é o arquétipo do sujeito deslocado, que se angustia pela ausência da sensação de pertencimento ao local em que se encontra. Dessa sensação, decorre todo tipo de neurose e de vagotonia, que o leva a caminhos e situações improváveis, como a condição temporária de robô doméstico de Luna (Diane Keaton, em sua primeira parceria com o diretor), uma poetisa inconsciente de sua falta de talento.

Torna-se cada vez mais interessante acompanhar os desdobramentos de uma trama que prima pelo riso frouxo, ainda demonstradora da associação do diretor com sua atuação no stand up comedy, estilo de humor no qual ele foi, sem dúvida, pioneiro. O futuro imaginado por Allen difere bastante daquele pensado por Stanley Kubrick, por exemplo, que partiu de uma obra literária para construir Laranja mecânica (Clockwork orange, 1971) apenas 2 anos antes, e fez da visão de um escritor a sua. O nova-iorquino decidiu caprichar na arquitetura cômica e entregou um dos retratos mais bem-humorados do porvir, do qual ninguém tem a menos certeza. E, de quebra, ainda refletiu sobre as mazelas de cada um de nós com relativo talento. É factual a observação de que ele ainda melhoraria muito na condução de suas tramas, mas há que se admitir que a argamassa com a qual ele ergue anualmente sua obra monumental já vinha sendo empregada aqui, bem como a presença de seu alter ego cinematográfico, por vezes interpretado por outros atores, com maior ou menor eficiência.




Ainda pensando na correlação possível entre Allen e Kubrick neste Dorminhoco, segue uma curiosidade interessantíssima por trás do filme: há um computador malvado presente na história, cuja voz foi feita por Douglas Rain, o que se tornou uma sátira a 2001 – Uma odisseia no espaço (A space odissey, 1968), pois foi esse mesmo ator que deu voz ao legendário HAL 9000. Especificamente no cotejo com esses dois filmes, o de Allen vai totalmente na contramão, elegendo as gags visuais e o festival de piadas para destilar sua visão contrária a regimes ditatoriais que geram um culto indefensável ao isomorfismo humano. Cabe comentar também o encontro feliz do diretor e ator com Keaton, que viria a se tornar sua musa em uma série de filmes posteriores, e que culminaria com um romance fora das telas. Sem sombra de dúvida, o ápice dessa parceria está em Noivo neurótico, noiva nervosa (Annie Hall, 1977), que viria a se tornar uma espécie de abecedário das relações amorosas, uma fonte de que muitas comédias românticas beberiam. No caso de Dorminhoco, ela apresenta franca beleza com Luna, característica que, machistamente falando, compensa sua inabilidade com as palavras, que ela jura ter.

Por vários momentos, este é um filme completamente de sua época, que investe em situações com contornos bizarros e expressam o pensamento de um época com relação a outra. Está patente que aquela é a visão de futuro de alguém que ainda vive na década de 70, e que, quando projetamos nosso pensamento para tempos anteriores ou posteriores ao nosso, a tendência sempre é a de enxergá-los com o olhar que temos no presente. Quem imaginaria o ano de 2173 como Allen hoje em dia? De qualquer modo, essa é a questão que menos importa no filme, que não está necessariamente entre as grandes obras do diretor, mas tem sua importância pela capacidade de reflexão que oferece, e pela deixa para boas risadas que apresenta ao longo de seus 87 minutos de duração. Trata-se de um filme leve, mas também com um quê de mordácia, que o livra do vale da banalidade pura e simples e contagia o espectador em diversos momentos. Allen é um exímio contador de histórias e um grande comediante, e essa sua faceta, ainda que, por vezes, dilua-se em seus filmes, é a grande tônica de toda a sua produção cinematográfica.

Dorminhoco, portanto, merece um lugar em qualquer lista de grandes comédias, por sua capacidade de diálogo com obras de seu tempo e pela prevalência de um discurso afiado que se complementa com uma sucessão de cenas verdadeiramente hilárias. Estão presentes ainda algumas referências à própria vida pessoal do cineasta, como a sua faceta de músico. Como muitos sabem, ele tem uma banda de jazz e toca clarineta semanalmente em Nova York há muitos anos, e o fato é citado através de Miles, que também toca o instrumento musical, embora nunca apareça fazendo, já que esse é um traço do outrora do personagem. Como curiosidade final, está a que envolve a veracidade das teorias científicas que aparecem na história: elas foram atestadas depois que o diretor as apresentou a Isaac Asimov em um almoço. Portanto, Allen não jogou conversa fora, e traduziu, em meio a angústias sintomáticas de um homem sem lugar, a loucura de cada um de nós, delineada aqui pelas imbricações com canhestros aparatos tecnológicos.

Nenhum comentário: