O imaginário cinéfilo coletivo, de tempos em tempos, acolhe filmes que se inscrevem em uma espécie de panteão que os leva à lembrança franca e recorrente. Com Cinema Paradiso (Nuovo cinema Paradiso, 1988) aconteceu exatamente esse processo. Sua inscrição no rol dos inesquecíveis se deu quase concomitantemente ao seu lançamento, e fez dele um ícone de uma geração de apaixonados pelo fazer cinematográfico e pela nobreza da experiência de estar diante de uma tela acompanhando uma boa história. À base de alguns clichês que podem ser abstraídos, Giuseppe Tornatore ofereceu ao público uma emocionante e sincera abordagem de filmes dentro de um filme, e nos outorgou uma bela carta de amor ao cinema.
No centro da trama se encontra Salvatore (Jacques Perrin, na fase adulta), um homem que está afastado do contato familiar há algum tempo. Sua mãe tenta restabelecer comunicação com ele para avisar da morte do padre da pequena cidade onde ele viveu, e a notícia aciona uma grande caixa de recordações que estavam adormecidas naquele que agora é um cineasta bem-sucedido. Então, somos transportados para uma clássica narrativa em flashback, o primeiro dos clichês irresistíveis empregados por Tornatore para trazer encanto ao seu conto. E o personagem principal passa a ser interpretado por Salvatore Cascio, um adorável garotinho que conduz uma bela jornada por uma vida simples e algo dolorida, cabível dentro uma conjuntura de conflito, como o era a Segunda Guerra Mundial. Ali, envoltos por uma série de limitações de ordem financeira, os habitantes não tem grandes esperanças, e o cinema surge como uma grande possibilidade de mergulho em uma outra dimensão, capaz de fazer as pessoas esquecerem suas mazelas por aproximadamente duas horas.
O grande impacto, porém, surge para Salvatore, graciosamente apelidado de Totò pela família e, por tabela, pela comunidade local. O menino desenvolve uma relação de amizade sublime com Alfredo (Philippe Noiret), o projecionista do Cinema Paradiso, uma modesta sala que apresenta filmes não tão recentes e se torna uma das raras alternativas de entretenimento para os moradores da região. Em meio às suas travessuras de criança, Totò faz constantes visitas a Alfredo, e esse contato contínuo faz brotar no coração dele um amor imenso pelo ofício exercido pelo amigo. Não por acaso, ele faz do cinema a sua profissão, como indica o roteiro nos primeiros minutos de filme. Para o personagem, a sétima arte é uma grande porta de entrada para mundos inimagináveis, romances avassaladores, espetáculos grandiosos e uma fuga voluntária e algo saudável de uma realidade tão perversa. O menino não sabe sequer se seu pai, distante por causa da guerra, retornará para casa, e resta a ele entretecer sonhos mirabolantes proporcionados pela sala de projeção de sua cidade, que ganha cada vez mais freqüentadores. Os filmes, porém, têm de passar pelo crivo do padre, que se escandaliza com todas as cenas de romance e as censura, incitando o imaginário dos meninos da idade de Totò.
A amizade do garoto com Alfredo é o outro grande encanto do filme. O projecionista, um pobre homem que não se vê em outra profissão senão aquela, é dado a alguns rompantes, no melhor estilo italiano – é preciso cuidar para não ter uma concepção enviesada por estereótipos -, causados pela presença insistente de Totò em seu local de trabalho. O menino é arguto em suas negociações com Alfredo, e consegue obter definitivamente a disposição em ensiná-lo a lidar com as projeções depois de ajudá-lo em uma árdua tarefa: um exame escolar. Daí em diante, Totò aprenderá todos os procedimentos necessários para transformar os rolos em imagens, o que o levará, posteriormente, a espalhar o seu encanto com uma multidão de espectadores. Nesse sentido, Cinema Paradiso se revela como um ensaio poético sobre o poder da imagem e suas reverberações na vida de um espectador. A paixão pelo cinema move a vida inteira do protagonista, e ajuda a alinhavar suas lembranças, como quem está o tempo inteiro vivendo uma sequência de fotogramas. Nas entrelinhas, Tornatore sustenta que a vida é cinematográfica, e oferece um painel rico de possibilidades para cada um, que é o mais importante de sua própria história.
Interessante é observar que, quando estava filmando o longa, o cineasta o concebera como uma espécie de epitáfio para o próprio cinema, que, já àquela época, sucumbia à crescente industrialização perpetrada por tantos nomes que se atrelam a ele unicamente por razões comerciais e pecuniárias, bem como buscara apontá-lo como um signo da resistência das salas tradicionais, cada vez mais suplantadas pela proliferação dos multiplexes que arrebanham tertúlias de espectadores que privilegiam ação desenfreada e pouca emoção. Essa ideia acabou sendo deixada de lado diante do sucesso alcançado pelo filme. Pelo menos, o diretor nunca mais tocou no assunto, o que parece indicar o abandono da defesa dessa bandeira. Aqui também cabe a citação de A rosa púpura do Cairo (The purple rose of Cairo, 1985), filmado alguns anos antes a também lembrado como um tratado sobre o fascínio exercido pela sétima arte.A verdade é que o filme italiano se abre em muitas portas e permite debater qual a relação que cada espectador tem com o cinema. Há quem o enxergue como fonte de fruição e plataforma para a reflexão sobre questões profundas. Há quem o conceba como um espaço para risadas desatadas, diante de uma vida tão hostil que, por si só, já é dramática. A despeito de qual seja a maneira com que se encara o cinema, é indiscutível o apelo que ele exerce sobre o público, especialmente em uma sociedade tão imagética e adepta de tecnologias que se desenvolvem em progressão geométrica como essa contemporânea.
Não se pode esquecer de se comentar a bela trilha sonora assinada por Andrea e Ennio Morricone para o filme, também sempre lembrada quando se menciona Cinema Paradiso. As canções pulsam a cada cena, e traduzem uma realidade de desalento e o apego ao cinema como uma válvula de escape para uma vida um pouco menos ordinária. O compositor selou uma parceria recorrente com Tornatore, em títulos subsequentes como A desconhecida (La sconosciuta, 2006) e o recente Baaría – A porta do vento (Baaría, 2009). No filme analisado, a música é um dos grandes trunfos de que a narrativa dispõe para conferir grandiosidade e emotividade à trajetória de Totò. Esse aspecto do filme leva a uma citação a Ezra Pound, teórico da literatura que postulou que a linguagem poética é carregada de energia graças a à conjunção de três elementos: melopeia, fanopeia, e logopeia. Os termos têm origem grega e definem, respectivamente, o poder de criação da música, da imagem e da palavra. Esses termos podem ter seu uso alargado e pensado para a linguagem cinematográfica, carregada de impacto e capacidade mobilizadora. A doce melopeia de Cinema Paradiso salta aos ouvidos como um canto mavioso e sensível, que envolve os sentimentos, evidenciando um filme que não tem a menor vergonha de ser um filme para se sentir.
Seus intérpretes também contribuem para a fluidez e comoção interna, sobretudo o menino Salvatore Cascio, que ganhou o papel depois de ser testado como tantas outras crianças do lugar em que se deram as filmagens. Na vida real, ele tem o mesmo nome e o mesmo apelido do personagem escrito por Tornatore, o que chamou a atenção do diretor. Entretanto, o que levou-o a eleger Cascio como Totò foi a grande habilidade do garoto em memorizar as falas e marcações de uma cena durante os testes de elenco. Que pessoa com um pingo de sentimento e emoção resiste ao encanto do personagem? Sempre envolvido em pequenas encrencas, mas também uma criança amorosa e compassiva, ele ganha o público quase à primeira vista, que começa a partilhar de seu enternecimento diante de um desfile de imagens filmadas. Com todos os fatores agrupados e uma sinceridade e eficiência no uso de alguns lugares comuns para os dramas, Cinema Paradiso atesta sua beleza em sua arquitetura cênica que nos leva a pensar no quão idílicos podem ser a infância e o cinema, levando à velha constatação emoldurada por uma memória edulcorante de que “éramos todos felizes e não sabíamos”.
4 de out. de 2011
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