11 de out. de 2011

O casamento de Rachel: o colapso familiar revisitado

O título engana à primeira vista. O casamento de Rachel (Rachel getting married, 2008) é, na verdade, um filme sobre o drama familiar detonado por Kym (Anne Hathaway), uma jovem que acaba de ser liberada de uma clínica de reabilitação e que foi convidada para ser madrinha de casamento de sua irmã, cujo nome está presente no tal título. É através de sua presença que Jonathan Demme, mais conhecido por O silêncio dos inocentes (The silence of the lambs, 1991) e Filadélfia (Philadelphia, 1993) espia as lutas inglórias que se travam no seio de um ajuntamento familiar, calcando-se numa espécie de subgênero cinematográfico que é pródigo em conflitos. Como de hábito em produções sobre o tema, a reunião do clã de Connecticut é a ocasião perfeita para a emersão de antigas mágoas e ressentimentos, e de como pode ser trabalhoso lidar com as incongruências que, ora distanciam, ora aproximam parentes.



A festa é o cenário onde transcorre a maior parte do filme, cujo diretor se vale de uma estética um tanto “poluída” para a concepção de uma radiografia dolorida das mazelas que cada um dos convidados daquela comemoração apresenta. A narrativa transporta o público diretamente para a tal festa, sem que se possa acompanhar a cerimônia religiosa ocorrida alguns minutos antes. Então, o desfile de personagens começa, e é quase certo que cada espectador se identifique com algum deles. Aqui, Demme é feliz em colocar na tela pessoas que fogem à classificação esquemática de “tipos”, e valoriza o que há de mais humano e universal em cada um, desde a mãe extremosa até a irmã que não está tão segura de si assim, passando pelo noivo e por outros agregados que contribuem para o andamento da história. É interessante notar que a tal estética mencionada confere um aspecto quase documental a O casamento de Rachel, que tem sua grande força atrelada à atuação de Anne Hathaway, que merece o parágrafo seguinte.

A atriz, uma das mais requisitadas de sua geração atualmente, consegue demonstrar grande força e vivacidade na pele daquela que é a verdadeira protagonista da história. Normalmente anêmica e irrelevante em seus papéis, como em O segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain, 2005), ela exibe autenticidade e entusiasmo interpretando uma jovem com um histórico de desentendimentos com a família, cuja presença é a dinamite que faz eclodir uma série de engasgos que saem das gargantas dos convivas do matrimônio que movimenta o filme. Antes de sua Kym, seu papel mais apreciável talvez tenha sido um só: a Andrea de O diabo veste Prada (The devil wears Prada, 2006), em que desempenhou uma grande dobradinha com Meryl Streep. No filme de Demme, como bem definiu um crítico, Hathaway está tensa, arisca e linda, magnetizando as atenções para si e comprovando que está em franca evolução. Ela escapa dos tiques mais óbvios de quem tem o papel de uma (ex-) dependente química nas mãos, e oferece uma composição honesta e admirável, que ganha força com seus parceiros de cena.



O roteiro tem um dado curioso a ser comentado: ele foi escrito em apenas sete semanas e, apesar de ser o quinto da carreira de Jenny Lumet, foi o primeiro a ser rodado. Feliz escolha de Demme a de levar para as telas tal texto, já que sua sinceridade é um de seus pontos fortes, e ajuda a pinçar o filme de uma extensa seara de títulos que trazem reuniões familiares que se tornam lavagens de roupas sujas. A aproximação do roteiro e da montagem de O casamento de Rachel é muito mais de Festa de família (Festen, 1998), o grande marco do movimento Dogma 95, que de Tudo em família (The family Stone, 2005), um compêndio de lugares comuns sobre o tema. A maneira como a câmera se posiciona em algumas sequências, exercitando um certo voyeurismo, assemelha-se ao comportamento de intrusa silenciosa da lente de Vinterberg, que passeia pelos espaços como quem conhece cada recanto ali apresentado. Nesse sentido, ambos os filmes, cada qual com sua intensidade, traz para o foco a discussão sobre uma família disfuncional. O filão, como já se disse, é bastante profícuo no cinema de um modo geral, mas os acertos talvez sejam maiores que os erros.

O casamento de Rachel não é um daqueles dramas cuja força se assemelha a de um petardo, mas há que se notar que muitos de seus aspectos permanecem majoritariamente por um motivo : todos têm uma família, e a identificação virá em maior ou menor grau. Os encontros e desencontros que atravessam a narrativa demonstram seu caráter permansivo, pois onde há família, há incongruência e dissensões. Cabe comentar também a envolvente trilha sonora assinada por Donald Harrison Jr. e Zefer Tawil. Em uma das sequências mais musicais do filme, os convidados da festa se entregam a uma espécie de embriaguez na qual deixam fluir seu comportamento hedonista e despreocupado. Essa é uma das cenas mais interessantes apresentadas e, embora soe um tanto deslocada do decorrer da ação, confere um ar divagante a tudo o que vem acontecendo até então. É também um dos índices de personalidade do filme, algo tão urgente e necessário em um ambiente cinematográfico de isomorfismos preocupantes e submissão a fórmulas e esquemas descarados.

Em O casamento de Rachel, não existe espaço para culpados ou inocentes. Cada personagem é revelado em sua amplitude e em sua complexidade, o que caracteriza a obra como um passo adiante em meio a produções que retratam personagens chapados e sem grandes fragmentações. Kym talvez seja a síntese da grande contradição que atravessa a condição humana, com seus rompantes de verdade, suas tiradas agridoces e sua capacidade de continuar demonstrando afeto pela família em meio a calorosas discussões. A comemoração é sempre entrecortada por momentos de colocação de opiniões não muito agradáveis, que vão sucedendo um após o outro. Ao final da sessão, sobra a certeza de que, em família, não há terreno para o cultivo de meios-termos, e é preciso se desapegar de máscaras e capas para que o outro saiba com quem está lidando. Ainda assim, muitas vezes prevalecem os vernizes que embelezam aritificialmente as relações familiares, nossas primeiras relações com outros seres humanos, e apresentam pessoas que são como sepulcros caiados.

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