15 de out. de 2012

Copacabana me engana, uma crônica da paixão na cidade


Copacabana me engana (idem, 1968) conta a história de Marquinhos (Carlo Mossy), um bom vivant da Zona Sul carioca que, levando a vida na flauta, adia seus compromissos com a realidade de um jovem adulto. No primeiro plano do filme, o protagonista caminha pelas ruas do bairro-título ao som de Baby, eternizada na voz aguda de Gal Costa, cujos versos aparentemente ingênuos dão conta de denunciar um estado de coisas desordenado que provém da submissão da nação brasileira a um regime ditatorial, iniciado poucos anos antes do momento em que se passa a trama. Aos poucos, o diretor Antônio Carlos da Fontoura situa o espectador no cotidiano frívolo de Marquinhos, que aprecia muito a esbórnia com os amigos e é daqueles que se deixa influenciar pelo que eles pensam e dizem que deve ser feito, como conquistar uma bela mulher. Aquela pressão típica dos companheiros, com vistas a garantir a masculinidade do rapaz sobre o qual eles a aplicam, parece não estar circunscrita a um tempo específico.

A principal fonte de deleite feminino de Marquinhos e seus amigos é o apartamento em frente ao dele. Da janela, eles podem observar os hábitos de belas vizinhas e torcer para vê-las se despindo diante dos seus olhos ávidos de mulheres formosas. Numa dessas espiadas, ele flagra Irene (Odete Lara), um tanto mais velha do ele e com uma sensualidade quase irresponsável que balança suas estruturas de jovem aprendiz de amante. Ele também a encontra em uma lanchonete, e ganha o incentivo dos amigos para se aproximar dela, o que acaba fazendo de um modo um tanto desastrado, mas eficaz. O envolvimento entre os dois não tarda a se concretizar e, durante um certo período, a vida de Marquinhos muda, fazendo-o adotar um comportamento menos imaturo, já que vai experimentando algumas benesses do amor.

Em pouco mais de 90 minutos, Copacabana me engana sintetiza com desenvoltura uma juventude sem perspectiva, que caminha a esmo pelas ruas da cidade e vive de improvisos, como se o amanhã fosse um tempo distante demais para ser necessário se preocupar com ele. Tanto Marquinhos quanto Irene têm suas vidas atravessadas pelo tédio e pela incompletude, e um relacionamento amoroso entre eles não dá conta de preencher essas lacunas interiores que eles carregam consigo. O romance entre ambos acaba sendo apenas um ensaio mal desenvolvido, tornando-o comparável à paixão desbotada dos personagens principais de A aventura (L’avventura, 1960), um dos olhares melancólicos de Michelangelo Antonioni para a apatia do homem moderno. Quando o vazio de Marquinhos se une ao vazio de Irene, o resultado só pode ser um abismo profundo de carências e pendências que eles precisam resolver consigo mesmos antes de mais nada, o que só comprova que ninguém pode funcionar como alternativa ao tédio de ninguém. Um relacionamento sólido não se constrói à base de escapismo.


Por muitos indícios, Copacabana me engana é um filme do seu tempo, mas consegue ultrapassá-lo ao abordar as questões citadas anteriormente. Por outro lado, ele se mostra como um típico filme brasileiro sessentista ao exibir um país ainda distante do prestígio perante as nações estrangeiras, enxergado como um reduto perene de desfiles carnavalescos e mulatas sestrosas. Sem falar na classe média de ecos provincianos que se evidencia no comportamento e nas falas dos pais de Marquinhos, que lutam para que o filho encontre um rumo na vida e siga o exemplo do irmão mais velho, interpretado por Cláudio Marzo. Com isso, o filme alcança um bom equilíbrio entre a comédia de costumes e o romance desengonçado que pende para o drama sem perder a leveza. Estamos diante de um crônica da paixão na cidade, dessas que acontecem em todo lugar todos os dias e que não chegarão a se tornar notícia no dia seguinte, a não ser que deem origem a um crime passional. O preto e branco da fotografia assinada por Affonso Beato e Jorge Bodansky, por sua vez, responde por boa parte do charme do filme, de alma indiscutivelmente carioca.

Existem traços autobiográficos em Copacabana me engana, devidamente pensados por Fontoura, também responsável pelo roteiro e que fazia a sua estreia em ambas as funções aqui. Paulista nascido em 1939, ele próprio se mudou para o bairro quando criança e cruzou algumas de suas referências pessoais com outras do lugar, engendrando uma apaixonante visão sobre a importância de ter paixão pela vida. Some-se a isso o ótimo trabalho de montagem de Mário Carneiro e a remissão de ideias cinemanovistas e temos quase uma pequena gema, daquelas que, muitas vezes só são descobertas após um certo esforço de garimpo. É uma pena que ele mesmo, com o passar dos anos, tenha se tornado um diretor de expressão pálida, com títulos pouco empolgantes em sua filmografia. Os personagens do longa são gente absolutamente comum, que se preocupa em ser correspondida no amor mas também com o preço da gasolina e do pãozinho, porque a vida tem seu lado pragmático que não pode ser perdido de vista. A mímese criativa de Fontoura, portanto, é hábil, e digna de ser conferida.

26 de set. de 2012

Jornadas de rumos previsíveis e desinteressantes em 360


O cruzamento de histórias paralelas compreende um nicho cinematográfico explorado com certa recorrência. Diretores de diferentes calibres já expuseram seus retratos de encontros e acasos envolvendo diversos personagens, e há exemplares bons e ruins desse que pode ser considerado um subgênero da sétima arte. Que o diga Alejandro González-Iñárritu, cuja filmografia é quase inteiramente composta de títulos que congregam múltiplas tramas. Fernando Meirelles também decidiu fazer o seu filme-painel, e o resultado, infelizmente, revela-se limítrofe entre o erro e o acerto. Com sua colagem de narrativas, 360 (idem, 2012) é um palco espaçoso para uma série de coincidências forçadas e personagens revestidos de um incômodo verniz a maior parte do tempo. Aos poucos, o roteiro de Peter Morgan, do ótimo A rainha (The queen, 2006) vai apresentando seus tipos e revelando as suas fragilidades, em um crescente preocupante de rumos óbvios.

Tudo começa com uma sessão de fotos que, de longe, remete a Closer – Perto demais (Closer, 2004), especificamente na cena em que Anna (Julia Roberts) fotografa Dan (Jude Law) em seu estúdio. Aqui, um cafetão de quinta categoria esquadrinha os olhares e demais expressões faciais de uma jovem que abraçou a prostituição como meio para ganhar a vida. Ela protege a irmã mais nova com unhas e dentes afiados, disposta a impedir que a garota se perca como já aconteceu com ela. No entanto, não hesita em ir para a cama com aquele homem asqueroso que lhe promete mais dinheiro em troca de relações sexuais. Mais adiante, a teia que a relaciona a outros personagens começa a ser tecida, e se chega a Michael (Jude Law, novamente ele), um homem em viagem de negócios que não se furta de contratar os serviços da tal jovem, mas tem o azar de encontrar com um colega de trabalho (Moritz Bleibtreu) que o está pressionando a aceitar uma proposta com a qual ele não concorda. A prostituta o espera e, na tentativa de se mostrar um homem íntegro e fiel a toda prova, ele discursa hipocritamente para o homem, dizendo-se terminantemente contra a ideia de sair com garotas de programa.

Daí para a frente, Meirelles continua levando sua câmera supostamente escrutinadora para passear em outros espaços, apresentando Rose (Rachel Weisz), a esposa de Michael, que também está longe de ser um poço de fidelidade e mantém um caso com Rui (Juliano Cazarré), brasileiro que vive há alguns anos em Londres e, por sua vez, está traindo a namorada Laura (Maria Flor) com Rose. A moça acaba descobrindo o erro cometido por ele e decide retornar ao Brasil. Em seu caminho no aeroporto, acaba conhecendo um senhor (Anthony Hopkins) que está à procura da filha há muito tempo, sempre sem sucesso, e Tyler McGregor (Ben Foster), um maníaco sexual recém-saído da cadeia que ainda não demonstra segurança suficiente para andar pelas ruas sem o risco de uma recaída. Com o primeiro, Laura ensaia os passos de uma relação filial, mas não a desenvolve porque seus caminhos se separam no momento em que ela decide conhecer melhor Tyler. Chega a irritar a ingenuidade da garota diante dele, que se esforça para não dar vazão ao seu instinto sexual deturpado enquanto está na sua companhia. Ela chega a ficar a sós com ele, que procura resistir bravamente aos próprios impulsos, em uma agonia quase animalesca. Flor, aliás, reafirma, com esse papel, a sua condição de atriz limitada, causando a sensação de que está sempre fazendo mais do mesmo. Ainda sobra espaço para um traficante de pessoas (Mark Ivanir), que está na cola da tal jovem prostituta apresentada lá no começo da história.


Espargidos em cenários multinacionais que incluem cidades como Londres, Bratislava, Paris e Viena, os personagens de 360 têm poucas chances de se mostrar para além de uma construção de tipos chapados. É de se espantar o quanto o elenco rende um pouco mais do que medianamente na pele de personagens de contornos esquemáticos e perfis rasos, que não são aprofundados principalmente por conta do excesso de tramas, constatação que soa óbvia diante da ambição do diretor e do roteirista em abraçar tantas realidades diferentes em tão pouco tempo. Mesmo os atores que costumam oferecer interpretações grandiosas, por vezes, beiram a canastrice aqui, como é o caso de Hopkins, cujas escolhas oscilam entre bons e maus papéis. Até mesmo Weisz, que ganhou o seu Oscar de melhor atriz coadjuvante na primeira vez em que foi dirigida por Meirelles, em O jardineiro fiel (The constant gardener, 2005) está constrangedora em cena a maior parte do tempo, a ponto de se parecer com uma boneca de porcelana em seu visual e em suas atitudes.

O diretor vinha do acerto de Ensaio sobre a cegueira (Blindness, 2008) quando decidiu dirigir 360, e se esperava que ele pudesse alcançar novamente um bom resultado. Afinal, seu currículo também apresenta Cidade de Deus (idem, 2002), grande projetor da internacionalização do cinema brasileiro que “arrancou” da Academia de Hollywood quatro indicações ao Oscar, ainda que não tenha trazido nenhuma estatueta para casa. Para quem carrega tão bons trabalhos pregressos, esse aqui é frustrante. Conjugar diferentes narrativas e administrar bem muitos personagens é possível. Era exatamente o que Robert Altman adorava fazer e ele sempre acertava, sobretudo quando cruzou as trajetórias de 22 pessoas em Short cuts – Cenas da vida (Short cuts, 1993), costurando uma série de tramas originalmente literárias. Nesse sentido, talvez o maior problema de 360, no fundo, nem seja o excesso de personagens, mas sim a maneira preguiçosa como eles são desenvolvidos na tela e o uso de acasos forçados, resultando em uma tentativa coxa de superposição de recortes urbanos contemporâneos. E, de propósito ou não, a grande ironia que depõe contra o filme está em seu próprio título. Afinal, o grande problema de se dar um giro de 360 graus é retornar exatamente ao lugar de onde se partiu.

18 de set. de 2012

Intocáveis, uma adorável ode à amizade


Corações sensíveis certamente aproveitarão muito melhor uma sessão de Intocáveis (Intouchables, 2011), segundo longa-metragem da dupla Olivier Nakache e Eric Toledano que se tornou uma das grandes bilheterias francesas de 2011. Sua trama é centrada nas figuras carismáticas de Philippe (François Cluzet) e Driss (Omar Sy), típicos sujeitos de personalidades antagônicas que se aproximam cada vez mais à medida que convivem. Na primeira sequência do filme, eles estão a toda velocidade pelas estradas parisienses madrugada adentro, sem medo de serem felizes. No volante, Driss comanda a corrida desenfreada, até que os policiais rodoviários passam a ficar no seu encalço, o que faz os dois terem uma brilhante ideia – que só é esclarecida como simulação pouco depois. Ao serem parados pelas autoridades, Driss explica que Philippe está tendo um derrame cerebral, daí o automóvel a tantos quilõmetros por hora. Convencidos, os policiais passam de seus acusadores a seus escoltadores, fazendo de Driss o ganhador da aposta que havia feito com Philippe antes de parar o carro.

À essa primeira sequência, seguem-se vários outros momentos da história desses dois amigos, contados de modo retroativo. Driss e Philippe se conhecem depois que o primeiro vai à casa do segundo – um milionário – para pedir uma assinatura que lhe garanta mais um período de seguro desemprego. Philippe está em uma série de entrevistas para contratar um novo enfermeiro que o acompanhe em jornada integral, algo estritamente necessário, dada a sua condição de tetraplégico. Ao irromper na sala de onde Philippe convoca os candidatos, Driss demonstra toda a sua audácia diante do futuro amigo, dizendo-se cansado de esperar pela sua vez na fila. E ainda encontra tempo para flertar com a assistente de Philippe, uma ruiva estonteante, diante da qual é fácil ficar embasbacado. Nasce ali o primeiro contato entre os protagonistas, que, mais tarde, serão unha e carne.

É certo que Intocáveis lança mão de alguns lugares comuns na construção de sua narrativa, sobretudo por colocar dois homens que não têm nada em comum e, aos poucos, vão se tornando amigos inseparáveis. Essa premissa é recorrente no cinema, com leves variações – às vezes, a birra inicial é entre um homem e uma mulher, que tempos depois, estarão irremediavelmente apaixonados. Entretanto, os clichês, por si só, não devem afugentar o espectador nesse filme. Nakache e Toledano sabem utilizá-los a favor da história, e a conduzem de modo irresistível, celebrando as diferenças de personalidade que temperam tão bem as relações interpessoais. E o melhor de tudo é que eles sabem dirigir as sequências entre os personagens com muita sensibilidade, um elemento primordial no trato com o outro. Pouco a pouco, Driss e Philippe vão reconhecendo a importância um do outro, e ultrapassando aquele velho chavão do abismo social que acentua diferenças. Tanto um quanto o outro tem várias de suas resistências quebradas pela amizade, experimentando momentos e sensações que lhes tocam de alguma forma, contrariando cada vez mais o título da obra.


Nesse sentido, Intocáveis é um filme bastante abrangente, que cativa nos seus primeiros instantes e discute valores fundamentais para uma boa convivência e um relacionamento amigável duradouro. No seu transcorrer, o filme traz à tona carinho, respeito, admiração, cuidado, apreço, bondade, sinceridade e tantas outras virtudes que, vez por outra, parecem confinadas a um espaço-tempo distante dos nossos dias. E todos esses sentimentos vêm entremeados de boas doses de riso, o que torna o longa uma eficiente comédia dramática sobre a importância de se permitir ter sensações. Para além de qualquer interdição milenarmente imposta ao relacionamento de amizade entre dois homens, Intocáveis assegura que é possível desenvolver o amor fraternal entre dois amigos, sem qualquer receio ou vergonha. Amigos devem se livrar de todas as bobagens que possam amarrar seu contato. Por que não abraçar e beijar quando se tem vontade? Por que deixar passar a oportunidade de declarar ao seu amigo o quanto ele é importante para você, seja com palavras, seja com gestos? Por que cultivar uma “distância de segurança” toda vez que você encontra seu bom amigo para evitar “suspeitas” da parte dele?

A mensagem do longa de Nakache e Toledano é simples e extremamente atual, não se restringindo apenas ao campo da amizade: ela se desdobra e encampa diversos tipos de relações inter e intrapessoais. E quem consegue resistir ao carisma de Cluzet e Sy? Os dois conquistaram uma maravilhosa empatia em cena e entregam interpretações preciosas, colocando seus corações em cada sequência em que contracenam. As regras de etiqueta de Philippe vão sucumbindo aos poucos à invasão de efusividade proposta por Driss, que, por sua vez, também vai exercitando o seu olhar para prazeres mais sofisticados. Boas amizades são assim: uma ponte para o mundo. Você apresenta o seu mundo a mim e eu apresento o meu mundo a você. Eventuais discordâncias, e até algumas discussões, fazem parte desse caminho. O importante é nunca perder de vista aqueles valores tão importantes comentados anteriormente. São eles que sedimentam o contato e tornam a presença do outro tão desejada. Pontuado por momentos adoráveis, Intocáveis renova a tese de que bons amigos valem ouro – sem se ater a questões étnicas, que até caberiam na história – e convida a deixar todas as reservas e simplesmente sentir.

11 de set. de 2012

Prosseguindo com a vida o amor em Antoine e Colette


Ao longo de cinco filmes, François Truffaut colocou nas telas um personagem que viria a ser conhecido como o seu alter ego, o multifacetado Antoine Doinel, interpretado com grande desenvoltura por Jean-Pierre Léaud, o seu ator-assinatura. O ponto de partida é o inesquecível Os incompreendidos (Les 400 coups, 1959), em que conhecemos o cotidiano do protagonista quando ele ainda é um adolescente problemático que cabula aulas e se refugia no cinema. Alguns anos se passam, porém, e temos Antoine e Colette (Antoine et Colette, 1962), o segundo tomo dessa espécie de pentalogia sobre um sujeito absolutamente comum e seus problemas banais. Trata-se, na verdade, de um curta-metragem que compõe uma coletânea intitulada O amor aos 20 anos, que conta com visões de diferentes cineastas sobre o sentimento nessa idade tão marcante e mágica. São cinco filmetes no total, cada qual com sua trama independente.

No caso de Antoine e Colette, o foco está nos primeiros passos de independência ensaiados por Antoine, que está longe da casa dos pais e mora em um modesto apartamento no subúrbio parisiense. Sua rotina é das mais básicas, e compreende o trabalho em uma loja de discos e eventuais encantamentos e conquistas amorosas. Por seu caminho, passam lindas garotas que aceleram seus batimentos cardíacos, e eles experimenta vários momentos de paixão à primeira vista, ao menos na sua concepção. E, assim, temos uma série de pequenos improvisos comuns às vidas de todos. Afinal, qualquer um precisa de trabalho e de amor, e alguns precisam dos dois na mesma proporção. Não há nada de mirabolante ou surreal no curta. Truffaut prefere expor a vida em pequenos instantâneos, demonstrando que sua fama de cineasta do amor não é descabida. Quase sempre, ele preferiu flagrar as ocasiões simples e as situações mais prosaicas, sobretudo nos films estrelados por seu alter ego. E aqui, ele dá conta dessa percurso singelo em pouco mais de meia hora, provando que poucos minutos podem bastar para se contar uma boa história.

Para espectadores apaixonados por histórias mínimas e direções sem grandes estripulias visuais, Antoine e Colette é um adorável presente, cuja beleza nasce justamente dos instantes de simplicidade. É como se não houvesse muito a se dizer a respeito do filme, apenas a se sentir. Antoine é um garoto como qualquer outro, principalmente como outros de sua geração e de seu tempo: ama, se engana, procura, se decepciona, insiste, recomeça. É tão jovem mas, ao mesmo tempo, já é capaz de perceber que, na vida, os sentimentos podem ser tão instáveis quanto um punhado de moléculas, que jamais sossegam e se dispõem em configurações distintas a todo momento. Para ele, o amor vem, normalmente, assim: como um golpe de vento, que revira os objetos da casa-coração e desestabiliza o que parecia estar colocado em seu devido lugar. Não é de se estranhar, portanto, o seu sorriso bobo e a sua fixidez diante da visão de uma bela jovem em uma de suas idas habituais ao cinema. Nem importa o filme naquele momento. Apenas os cabelos negros e brilhantes da garota, que tira seu fôlego e sua concentração mesmo diante de sua paixão pela sétima arte. Parece ou não com algo que muitos de nós já vivemos ao menos uma vez?


O tal emprego de Antoine na loja de discos serve como uma grande deixa para a execução de lindas canções que, naturalmente, falam de amor, esse sentimento do qual tanto se fala e que, muitas vezes, basta ser vivido e sentido, como sentimento que é. E Colette? A outra personagem-título, vivida por Marie-France Pisier, é a grande paixão de Antoine nesse curta, mas não demonstra interesse no rapaz como homem, restringindo a relação entre eles à amizade. Em certos casos, é assim: a amizade é tudo o que se tem, há que se conformar com ela. Mas quem disse que ele se conforma? Seus esforços são sempre na direção do coração de Colette, que ele procura degelar para o amor e, assim, ser correspondido. A péssima e velha ideia do amor unilateral... Quem nunca amou sem ser amado talvez não possa entender o drama de Antoine, mas ele está lá, impresso na inquietude do personagem, sempre à procura de pequenos momentos para viver ao lado de Colette, e colecioná-los para manter emoldurados em quadros que, posteriormente, ocuparão lugar de destaque nas paredes de sua jovem memória de aprendiz de amante.

A personagem que fragmenta o coração de Antoine reaparece em O amor em fuga (L’amour em fuite, 1979), o último filme da série, que traz o protagonista à volta com alguns ônus e bônus da idade adulta. Sua intérprete, por sua vez, é uma das talentosas atrizes cuja carreira emergiu quase simultaneamente com a Nouvelle Vague, de que Truffaut fazia parte, vale lembrar. Atualmente, ela segue distante dos papéis no cinema, e seu trabalho mais recente é o da mãe dos personagens principais de Em Paris (Dans Paris, 2006), uma das homenagens de Christophe Honoré justamente à Nouvelle Vague. Na pele de Colette, ela invade a tela com uma beleza hipnótica, que fustiga os sentimentos de Antoine e o faz viver seu primeiro grande sofrimento amoroso – tantos outros viriam pela frente. Mas a vida amorosa do jovem não é feita somente de desencontros: ele também vive, ao longo de sua trajetória, alguns imbróglios, umas paixonites efêmeras e romances arrebatadores. Colette acaba sendo um desses desencontros, muito importante como experiência na arte de amar. E nós, como espectadores, acabamos um pouco cúmplices de Antoine e nos identificamos, em alguma medida, com seus movimentos, intenções e atitudes, inscritas em um filme tão curto quanto intenso e cruelmente belo.

27 de ago. de 2012

Humor genuinamente divertido em Um assaltante bem trapalhão


Celebrado por entusiastas fiéis na contemporaneidade, Woody Allen galgou o primeiro degrau de uma carreira profícua há mais de quarenta anos. Nascia com Um assaltante bem trapalhão (Take the money and run, 1969) um realizador exímio, de capacidade admirável para conceber retratos apurados de pessoas e fatos inusitados inseridos no cotidiano. Nessa estreia, ele apostou em piadas rápidas e eficientes, uma clara contribuição dos anos precedentes em que poliu sua verve cômica nos palcos, como um dos precursores do stand-up comedy que foi. A trama do filme gira em torno de Virgil Starkwell (o próprio Allen), um ladrão sem qualquer talento para exercer seu ofício. Sua história é narrada no melhor estilo mockumentary, que ele voltaria adotar outras duas vezes, a saber: em Zelig (idem, 1983) e Poucas e boas (Sweet and lowdown, 1999). Com isso, tudo sugere que o protagonista realmente tenha existido e acaba por deixar o longa com um gostinho mais divertido.

O título em um português é um tanto infeliz, mas tem lá a sua cota de pertinência. Afinal, os roubos de Virgil são sempre frustrados, devido a circunstâncias diversas que, ora o impedem de concluí-los, ora não permitem que ele escape impunemente do local do delito. E essas dificuldades têm potencial para gerar risadas deliciosas no espectador, que se vê diante de um filme curto e fluido, ainda com poucas marcas autorais que viriam a se multiplicar e desenvolver ao longo dos anos. É possível afirmar que esse seja um filme despretensioso e descompromissado, de um estética semelhante aos trabalhos da década seguinte de Allen, como Bananas (idem, 1971). Por outro lado, é possível notar que a argúcia do diretor já estava presente em Um assaltante bem trapalhão, sobretudo nas falas do narrador onisciente que pontua os passos da trajetória errática de Virgil e tece comentários nem sempre positivos a respeito dele. É como se Allen estivesse plantando as primeiras sementes do que viria a ser o seu cinema, e as regasse com um timing cômico que anda raro nos dias de hoje.

Virgil pode ser analisado como o protótipo do sujeito deslocado e em dificuldades amorosas que Allen refinaria ao longo de sua carreira, normalmente sendo interpretado por ele mesmo e que viria a ser considerado como o seu alter ego – para muitos, aliás, aquele seria o próprio cineasta, o que ele já fez questão de desmentir em entrevistas, e que também é um dos argumentos que seus detratores utilizam com demasiada frequência, chamando-o egocêntrico. Entre uma e outra tentativa de roubo, esse sujeito desencaixado de certas convenções sociais passa temporadas na cadeia, e só pensa em novas possibilidades de acertar com um novo crime. E, enquanto não o vemos se dar mal mais uma vez, conhecemos um pouco mais de sua vida e personalidade através dos depoimentos “colhidos” para o filme, sobretudo os de seus pais, hilariamente disfarçados por conta da vergonha que sentem do filho. A mãe tenta contemporizar e defender Virgil, dizendo que, apesar dos pesares, trata-se de um bom rapaz, enquanto o pai demonstra sua indignação por ter tentado colocar Deus no coração do filho e não ter obtido sucesso.



É bem verdade que a entrada de Virgil para o mundo do crime deriva diretamente de seu complexo de inferioridade, desenvolvido desde a infância, em sequências que o mostram ainda como um garotinho ruivo e de óculos, sempre em fuga e desejoso de ser aceito. Trata-se de mais um indício das futuras recorrências allenianas: a leitura (algo) psicanalítica de um personagem que, (quase) inevitavelmente, desemboca em traumas e eventos dos primeiros anos de vida. Para seus admiradores, é um exercício bastante interessante e produtivo buscar essas referências ao longo do filme, e elas se tornam mais claras para quem já tiver conferido previamente um ou mais filmes seguintes do diretor, que permitem a adoção de parâmetros de comparação. Entretanto, Um assaltante bem trapalhão dispensa pré-requisitos, mesmo porque é a obra inaugural de Allen, o qual entraria em um ritmo de produção de tirar o fôlego poucos anos mais tarde, que se traduz no lançamento de um filme por ano desde o início da década de 80, mais precisamente com Sonhos eróticos de uma noite de verão (A midsummer night's sex comedy, 1982). De lá para cá, surgiram inúmeros trabalhos que conquistaram público e crítica, embora ele nunca tenha se firmado como uma unanimidade: opiniões heterogêneas a respeito de qualquer coisa sempre existirão.

Allen teria estreado como diretor, segundo alguns, três anos antes com O que há, tigresa? (What's Up, Tiger Lily?, 1966), mas é difícil falar em direção para esse filme quando, na verdade, ele apenas redublou as falas dos personagens, tendo concebido um roteiro juntamente com Senkichi Taniguchi. Portanto, Um assaltante bem trapalhão é que acaba por atender às prerrogativas daquilo que se pode chamar de filme próprio de um diretor, sendo muito mais sensato apontá-lo como sua estreia no celuloide. Entre as curiosidades relativas ao filme, está o fato de a data de nascimento de Virgil ser a mesma de Allen: 1 de dezembro de 1935, o que leva o personagem a ter seus 34 anos. Nessa idade, sobrava disposição no cineasta para a comédia física, e ele se desdobrou em várias cenas de correria e perseguições, muitas delas bastante divertidas – a sequência em que ele tenta assaltar uma loja de animais e sai correndo de lá com um macaco atrás dele é um achado do humor nonsense. Com o tempo, ele abandonaria a interpretação de personagens que exigissem muito de sua envergadura física, preferindo os tipos hipocondríacos e com ataques de pânico. Outro detalhe interessante dos bastidores é que Allen decidiu dirigir o filme por medo que as filmagens se tornassem caóticas como as de Cassino Royale (idem, 1966). Assim, ele teria o controle da produção e nasceria aqui um cineasta de olhar clínico, bom piadista, verborrágico, cheio de autorreferências e vários ingredientes que o fariam conquistar um séquito de entusiastas leais.

23 de ago. de 2012

As peripécias de um devotado ao humor ou O mundo de Andy


James Eugene Carrey – mais conhecido como Jim Carrey - é dono de um currículo bem fornido de comédias com forte apelo popular, sobretudo as que estrelou na década de 90. Diante da indisposição da quase totalidade da crítica para os filmes do gênero, o ator demorou a ser levado a sério, com o perdão do trocadilho. Somente no final da década ele começou a ser mais respeitado, exatamente quando Milos Forman o recrutou para O mundo de Andy (Man on the moon, 1999), cinebiografia de um obstinado pelo riso que caiu como uma luva para o arsenal de caretas do intérprete, que soube usá-las novamente a seu favor para engendrar um ponto de virada em sua carreira. Entretanto, dessa vez, quem mais se entusiasmou com seu trabalho foi a crítica, visto que as bilheterias não responderam a contento. O filme aborda vários anos da vida desse que foi considerado um dos mais excêntricos artistas do humor, com capacidade para comprar brigas sérias em nome de sua vocação para satirizar a tudo e a todos.

Cinebiografias são uma especialidade de Forman, que, três anos antes, havia dirigido O povo contra Larry Flynt (The people vs. Larry Flynt, 1996) e arrancado o que talvez seja o melhor desempenho da carreira de Woody Harrelson até hoje. Em O mundo de Andy, essa habilidade do realizador é novamente sublinhada desde a sequência inicial, em que o protagonista discorre sobre a dificuldade de se aturá-lo, propondo que o espectador abandone a sessão antes que se arrependa. Trata-se de um monólogo divertidíssimo, que sentencia o quanto Andy não está disposto a sacrificar suas convicções sarcásticas para agradar a quem quer que seja, nem mesmo o público que foi conquistando ao longo de sua ascensão sob a condição de comediante. Seu caminho é trilhado a duras penas, traduzindo-se em um percurso quixotesco em vários sentidos, inclusive pela presença de uma espécie de Sancho Pança, o seu incasável e fidedigno agente George Shapiro, vivido por um Danny DeVito na flor da inspiração. Boa parte dos êxitos alcançados pelo humorista no que se refere a espaço na mídia vem dos esforços contínuos de Shapiro.

Vale ressaltar que Carrey não era a única opção que Forman tinha em mente. Ele chegou a cogitar Edward Norton, com quem já havia trabalhado em seu longa anterior, para o papel. Incapaz de decidir, passou a bola para o estúdio, que bateu o martelo e elegeu Carrey para o personagem, o que se revelou uma escolha bastante acertada, justificável pelo desempenho memorável do ator, devidamente indicado e premiado com o Globo de Ouro de ator cômico. Aliás, O mundo de Andy se firma como uma comédia heterodoxa, cujos frouxos de riso despertados no público advêm de uma série de situações bizarras e surpreendentes. Cada espetáculo de Andy era uma caixinha de surpresas também no que se refere às reações da plateia de seus shows: ele era capaz de provocar risos, lágrimas, brigas e muitos outros tipos de desdobramentos com suas piadas e pantomimas, o que lhe rendeu a antonomásia de gênio da comédia estadunidense. Para o público do filme, cada um desses momentos é fonte de deliciosas gargalhadas, e nem é preciso concordar com a ideia de que Andy foi genial para, no mínimo, simpatizar com a figura.


Entre os coadjuvantes, também se encontram Paul Giamatti, ótimo na pele de Bob Zmuda, o grande parceiro de palco de Andy, capaz de embarcar em todas as suas ideias mirabolantes, fruto de suas idiossincrasias bem-humoradas, que incluem uma simulação épica de sua própria morte. O filme é uma bela oportunidade para conferir Giamatti em um dos papéis anteriores à sua atual zona de conforto interpretativa, iniciada com o superestimado Sideways – Entre umas e outras (Sideways, 2004). Seu tônus dramático estava em dia aqui, ainda que a função básica de seu personagem seja servir de escada para o de Carrey. Além dele, Forman reeditou sua parceria com Courtney Love, dando-lhe o papel da namorada de Andy, ela mesma incapaz de lidar o tempo todo com as mil peripécias do artista. É uma pena que, poucos anos depois, a carreira de atriz de Love tenha entrado em declínio por conta de uma série de escolhas equivocadas que levaram seu nome a figurar em títulos como Encurralada (Trapped, 2002), que não trazem qualquer relevância para o currículo de ninguém.

O alto grau de realismo alcançado pela direção de Forman e pelo roteiro concebido a quatro mãos por Scott Alexander e Larry Karaszewski é decorrente de três anos de uma pesquisa que inclui entrevistas com amigos, familiares e inimigos declarados de Andy. Cada uma delas serviu de contribuição para a feitura do texto, de acabamento meticuloso e – o mais importante – excelente timing cômico. A dupla de roteiristas do filme, aliás, sempre trabalha junta, e são mais dois dos colaboradores que o diretor trouxe de seu filme precedente. Contudo, ele não voltaria a dirigir um longa escrito por ambos, e entraria em um jejum de sete anos, quebrado com Sombras de Goya (Goya’s ghosts, 2006), outro exemplo de sua predileção por retratos biográficos. Ao longo de suas quase duas horas de duração, O mundo de Andy nos faz ver que uma das palavras-chave da vida do comediante era intensidade, sobretudo no tocante ao seu ofício da vida inteira, do qual não abria mão até mesmo quando caberia um ou outro mea culpa. Guardadas as devidas proporções, Sacha Baron Cohen faz algo semelhante a cada vez que promove um de seus filmes de humor negro declarado e não sai de seu personagem. O filme é, enfim, um intenso, apaixonante e comovente retrato acidentado da carreira e da vida de um homem que fez do humor a sua incógnita, despertando gargalhadas entusiásticas (ou não) em seu público sempre atordoado.

15 de ago. de 2012

Efeitos da contemplação retratados em Blow-up – Depois daquele beijo


Depois de concluir o seu triunvirato de filmes sobre a incomunicabilidade e filmar um epílogo estupefaciente para eles, Michelangelo Antonioni partiu para a Inglaterra, onde concebeu Blow-up – Depois daquele beijo (Blow-up, 1996), mais um estudo profundo dos efeitos da contemplação levada a altos graus. Não se deixe enganar pelo subtítulo nacional “sedutor”: ele não acrescenta nada à narrativa; antes, serve para confundir o público, que pode ser levado a esperar uma história de amor cujo marco inicial é puro romance. Na verdade, o cineasta direciona o seu olhar para Thomas (David Hemmings), um fotógrafo de moda que leva a vida na maciota, transitando pelo mundinho artístico da Londres de seu tempo. Dono de uma postura algo lânguida, ele só sai de sua apatia quando se vê na necessidade de ser rude com as modelos que fotografa, as quais trata como meros seres passíveis de foco e enquadramento para suas lentes.

Toda a trama do filme transcorre em um pequeno arco de tempo, uma das especialidades de Antonioni, haja vista a sua proposta em títulos como A noite (La notte, 1961) e O eclipse (L’eclisse, 1962). Em um único dia, Thomas passa por uma manifestação de jovens que defendem a liberdade – espécie de precursores do que viria a ser conhecido poucos anos depois como flower power -, cumpre sua agenda de compromissos de trabalho – uma sessão de fotos para um livro de arte - e testemunha o enlace amoroso de um casal que se encontrava furtivamente em um parque. Sempre atento a detalhes, ele clica alguns momentos desse casal, até que sua presença é notada por Jane (Vanessa Redgrave), a mulher, que não gosta nada de saber que está sendo fotografada por aquele desconhecido. As fotos tiradas por Thomas são uma arma perigosa para os amantes, e ela insiste em ter as imagens, o que ele nega peremptoriamente.

Mais tarde, ele se dá conta de um detalhe crucial presente na foto, o qual decide investigar a fundo por conta própria, e esse é o nó da narrativa do longa. A sua base está no conto de Julio Cortázar, escritor cuja prosa se revela incômoda e permeada por aspectos um tanto bizarros que constam do próprio cotidiano. Bebendo diretamente dessa fonte, Antonioni faz uma exegese do olhar, envolvendo o filme com uma atmosfera ebúrnea e altamente contemplativa, que pode ter um efeito sonífero para alguns espectadores: são os famigerados tempos mortos, que, aqui, têm toda a relevância. O andamento lento da trama é ditado pela dificuldade de Thomas em desvendar o mistério da foto ao mesmo tempo em que lida com procura de Jane, que não desiste de ter nas mãos as provas de sua infidelidade, que nunca é declarada, mas sempre sugerida. Dessa característica de Blow-up – Depois daquele beijo, nasce sua beleza e seu magnetismo oscilante.


Também é interessante notar que, exatamente 15 anos depois, outro diretor se valeu de uma premissa semelhante para um filme: foi Brian De Palma, que, ao filmar Um tiro na noite (Blow out, 1981), estabeleceu um diálogo muito interessante não apenas com a obra hitchcockiana, mas também com esse trabalho de Antonioni. A diferença mais imediata entre ambos, porém, é que o foco de De Palma está nos sons, e não nas imagens. De qualquer maneira, o longa em questão é um pouco menos inspirado que os anteriores do italiano. Coincidentemente, é o seu primeiro filme rodado em língua inglesa e filmado em parte fora de seu país de origem, e também conquistou um bom retorno financeiro nas bilheterias, chegando a um faturamento quase 20 vezes maior que o seu orçamento. A crítica da época louvou a ousadia do filme, que, com seu sucesso comercial, cooperou com o processo de libertação de Hollywood de sua “lascívia puritana”, nas palavras daquele tempo. Nada que hoje possa realmente surpreender nossa visão, porém. Ainda assim, houve quem o vislumbrasse como uma obra seminal, comparável a títulos como Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941). Se se trata de um exagero, fica por conta de cada um dizer após ver o filme.

Subjetividades à parte, o fato é que Blow-up – Depois daquele beijo representou uma mudança de ares na carreira de Antonioni, que deixou de lado boa parte da introspecção flagrante de seus filmes anteriores para abraçar uma estética mais vibrante e jovial, por assim dizer. Ainda que tenha investido novamente em uma conjuntura de contemplação, aqui há espaço para arroubos visuais e sonoros que não se encontravam antes em sua obra, o que, para o bem ou para o mal, demonstra a sua versatilidade. Para efeitos de comparação, o filme está para Antonioni como Ponto final (Match point, 2005) está para Woody Allen e, curiosamente, ambos partiram para o mesmo país ao engendrar sopros de renovação para suas respectivas filmografias em seus respectivos tempos. No caso do filme do italiano, o que mais depõe contra ele é a sua mornidão, que pode levar até mesmo ao desvio dos olhos da tela em alguns instantes por pura falta de interesse. É como se a languidez que havia funcionado tão bem com os protagonistas da Trilogia da Incomunicabilidade incomodasse de outra maneira aqui. Ainda assim, estamos diante de um bom filme, que consegue nos remover da indiferença com sua pulsação lenta e seus ingrediente enigmáticos.


7 de ago. de 2012

Três é demais: uma abordagem cáustica da vida


Não se deixe enganar pelo título nacional ridículo. Três é demais (Rushmore, 1998) é a segunda incursão de Wes Anderson por trás das câmeras, e se revela uma obra espirituosa e inusitada sobre a multipolaridade de uma pessoa. No caso, a de Max Fischer (Jason Schwartzman), que reúne em si várias características que o tornam o arquétipo perfeito do CDF e, quiçá, do loser – aquele conceito tão nefasto engendrado nos EUA que caiu no uso popular dalém das fronteiras do país. Sua trajetória é acompanhada de perto pela câmera de Anderson, que o flagra no ambiente de uma escola de ensino médio, dentro do qual ele tem de lidar com a animosidade de seus colegas, que manifestam constante intento de atormentá-lo. Entretanto, Max não é exatamente (ou somente) daqueles jovens tímidos que experimentam o vilipêndio de forma omissa. Quando vê necessidade, ele adota uma conduta pró-ativa e faz acontecer para vingar seu orgulho nerd.

O tal título nacional boboca ganha um leve sentido quando entram em cena os outros dois vértices daquilo que, em pouco tempo, configura-se como um triângulo amoroso. Max se torna amigo e, em seguida, apaixona-se pela Srta. Rosemary Cross (Olivia Williams), uma complicada professora da pré-escola. Para chegar junto dela, Max busca uma ajudinha de Herman Blume (Bill Murray, sensacional), um milionário cuja felicidade é inversamente proporcional à quantia pecuniária de que dispõe. Inicialmente o seu mentor, Herman logo se apaixona por Rosemary também, e a parceria entre ele e Max é inevitavelmente rompida: os dois passam a se digladiar, ocupando lados ostensivamente opostos em uma espécie de trincheira sentimental. A verdade é que ambos sucumbem às armadilhas de seus corações e demonstram grande falta de tato para lidar com elas. Com isso, surgem momentos engraçadíssimos em Três é demais.

Muitos dos elementos que se tornariam marcas registradas do realizador mais adiante se encontram presentes nesse filme. O principal deles é o olhar de sensibilidade e humor acurados sobre seus personagems, que coloca suas mazelas e pequenas bizarrices e contradições em alto-relevo. Tanto Max quanto Herman apresentam traços um tanto cartunescos, mas não é nada que comprometa a verossimilhança de ambos e impeça uma leve ou profunda identificação por parte do espectador. Max é do tipo multitalentos: já gastou boa parte de seu tempo livre em atividades extracurriculares das mais diversas possíveis, como cuidar da edição do jornal da escola ou presidir um clube de astronomia, e que são mostradas em uma sequência divertida e curiosa. Essa inclinação do personagem para ocupações tão díspares é um dos índices de sua personalidade complexa, difícil de encampar e resumir em duas ou três palavras. E é exatamente essa confluência de contradições que o tornam tão próximo do espírito de multiplicidade de tantos outros jovens. Seu jeito de ser leva até mesmo a pensar que ele poderia perfeitamente ser um sobrinho ou um neto do Boris Yellnikoff (Larry David) de Tudo pode dar certo (Wheatever works, 2009), outro sujeito de vários talentos e que, como Max, exibia um comportamento algo misantropo.


Por sua vez, Murray faz misérias interpretativas na pele e no corpo de Herman, iniciando aqui uma parceria altamente produtiva com Anderson, a qual permanece até hoje e já rendeu seis filmes contando com esse e passando pela animação O fantástico Sr. Raposo (The fantastic Mr. Fox, 2009), na qual usou apenas sua voz para dar vida ao Texugo. No filme em questão, ele confere uma mistura de graça e impavidez ao seu Herman, somada a alguns espasmos melancólicos que fazem oscilar o sentimento de apreço pelo personagem. Afinal de contas, ele entra no meio da jogada de Max – com quem, àquela altura, já simpatizávamos – e tira tudo de seu lugar. Por outro lado, não chega a ser possível classificar um ou outro como vilão ou mocinho: esse tipo de nomenclatura não encontra respaldo na filmografia de Anderson, cujo nome, aliás, traz as mesmas iniciais de Woody Allen, outro mestre no árduo trabalho de construção de caricaturas plausíveis. A comparação entre Max e Boris, portanto, é mais uma das associações possíveis e imagináveis entre as obras de ambos, de qualidade e relevância bem próximas.

O campo de Anderson foi e continua sendo o cinema independente. Seus filmes não demontram a menor preocupação em alcançar platerias numerosas: antes, trazem consigo toda a fidelidade do diretor a um estilo próprio, particular e que dialoga com outras referências ao mesmo tempo. Três é demais se mostra exatamente assim. Com seus 90 e poucos minutos de duração, o filme destila uma narrativa fluente e personagens cômicos e multidimensionais com quem se poderia facilmente esbarrar nos corredores da vida, além de meditar, com discreta irreverência, sobre nossas tendências a falas e atitudes tantas vezes incoerentes. Anderson também gosta de colaborações duradouras, daí a recorrência de Murray e do próprio Schwartzman em sua filmografia, assim como Owen Wilson, com quem também conserva uma relação de co-autoria em vários de seus trabalhos, incluindo esse. E ainda sobra espaço para as pontas de Connie Nielsen e Luke Wilson, atores subestimados para boa parte da crítica que têm lá o seu valor. Com Três é demais, Anderson nos faz perceber que, quando o assunto são as querelas do coração, atos inesperados vêm como cartas na manga. E os absurdos da vida são melhor analisados com umas boas pitadas de sarcasmo.

3 de ago. de 2012

Kramer vs. Kramer, um eficiente retrato de família


O conceito de família remonta aos tempos bíblicos. Desde que foi criada, a instituição já foi transformada pelo homem de várias maneiras, e o cinema, em seu componente de imitador da realidade, apropriou-se dessas transformações ao longo de sua existência. Kramer vs. Kramer (idem, 1979) é um dos filmes que se debruça sobre essa temática com grande eficiência. Rodado em uma época na qual o divórcio já se encontrava à disposição dos cônjuges insatisfeitos, o longa de Robert Benton mira suas lentes em direção a Ted (Dustin Hoffman) e Joanna Kramer (Meryl Streep). Um dia, ela demonstra todo o seu fastio em estar casada com ele e simplesmente vai embora de casa, alegando que lutou o máximo que podia para evitar que a situação chegasse àquele ponto. A notícia cai como um balde de água fria sobre a cabeça de Ted, que tinha acabado de chegar em casa contente e ansioso para contar à esposa que havia conseguido uma colocação melhor no trabalho.

Com a partida de Joanna, da qual não consegue demovê-la, Ted se vê, de repente, com a obrigação de cuidar de Billy (Justin Henry), o filho do ex-casal. O cotidiano de Ted passa, então, por uma reviravolta, que lhe faz reavaliar suas prioridades e colocar o menino em primeiro lugar no pódio das suas responsabilidades. Ele sempre deu grande importância ao trabalho, a ponto de privar a família de sua presença em momentos cruciais, e essa é uma das razões que Joanna aponta, logo nos primeiros minutos de filme, para deixá-lo. Nesse detalhe da personalidade do protagonista, encontra-se um pequeno clichê que ainda seria bastante explorado pelo cinema nos anos seguintes: o do pai que precisa levar um baque para se dar conta de que a família precisa estar acima de tudo na lista de cuidados de um homem. Seja no drama, seja na comédia, o tema já rendeu filmes como Click (idem, 2006). Entretanto, Benton conduz seu filme de forma honesta e orgânica, sem torná-lo um mero produto industrial cheio de palavrórios sobre o assunto.


O aprendizado de Ted vem na marra, dia após dia, em meio a muitos improvisos e pequenos incidentes diante dos quais ele tem que se virar, como quando o café da manhã que tenta preparar para Billy se torna um desastre ou quando o menino sofre uma queda no parquinho em que costuma brincar. Todas essas lições só se tornam possíveis em virtude da ausência de Joanna, e servem para Ted exercitar o seu amor paternal. Até o dia em que ela volta, dizendo-se arrependida e disposta a recuperar o tempo que perdeu afastada do filho, trazendo-lhe benefícios decorrentes da situação financeira mais confortável que seu trabalho lhe proporciona. O retorno de Joanna pega Ted tão de surpresa quanto a sua partida, e não é nada fácil para aquele pai de família que assumiu o seu lugar encarar a mudança de ideia da ex-mulher. E ambos vão parar diante de um juiz para defender seus respectivos lados e conquistar a guarda do menino, ainda incapaz de decidir com qual dos genitores é melhor estar a maior parte do tempo.

A essa altura, Kramer vs. Kramer ganha traços de filme de tribunal e coloca o espectador em contato com os pontos de vista dos protagonistas para que tome sua decisão particular. Quem está com a razão? O que é realmente melhor para Billy? A dúvida pode surgir mesmo diante do fato de Joanna ter abandonado o seu lar. Afinal, o roteiro do próprio Benton, escrito a partir do romance de Avery Corman, foge de cair na malha fina do maniqueísmo, e apresenta argumentos convincentes para ser favorável a um ou a outro. Recentemente, A separação (Jodaeiye Nader az Simin, 2011), produção israelense premiada com o Oscar de melhor filme estrangeiro, tratou acerca do mesmo assunto com mais habilidade e inquietação. Mas o longa de Benton também exibe muitos aspectos positivos além dos que já foram apontados. Os desempenhos de Hoffman e Streep são outros deles. Ambos defendem seus papéis com intensidade e emoção, tornando difícil apoiar apenas um deles. Ted é o pai de prioridades redimensionadas, ao passo que Joanna é a mãe arrependida de um mau passo. Como conciliar ambas as verdades em prol do bem-estar de Billy? Nesse sentido, o filme se mostra conclusivo em relação ao seu “descendente” oriental, chegando à sua sequência derradeira com um acerto de contas emotivo e sincero entre o ex-casal, em plena coadunância com o espírito que guiou todo o filme até ali.

30 de jul. de 2012

Traços de uma realidade obtusa em As consequências do amor


Os dias de glória do cinema italiano podem ter ficado para trás. Entretanto, vez por outra, surgem obras que lançam luz sobre ele, como é o caso de As consequências do amor (Le conseguenze dell’amore. 2004), exercício de autoralidade dos bons proposto por Paolo Sorrentino que vai muito além do que o seu título sugere. Sua narrativa está centrada na figura enigmática de Titta di Girolamo (Toni Servillo), um homem cuja principal característica é o silêncio. Ele mora há anos em um hotel na Suíça e faz questão de manter uma distância considerável das pessoas, como quem acredita que não deva estreitar laços com ninguém. Seu olhar é sempre fugidio e sua expressão é de tédio constante. Certamente, existe muito o que se descobrir a seu respeito, mas com sua economia de palavras, inclusive na narração em off de que ele mesmo se ocupa, torna-se muito difícil adentrar seu passado e suas particularidades. O diretor, portanto, lança o público em uma nuvem espessa de mistério, fazendo de seu filme uma espécie de flerte bem-sucedido entre o drama e o suspense.

Não é muito fácil simpatizar com Titta, haja vista o seu ar um tanto esnobe e evasivo. Mas, aos poucos, pode brotar um estranho sentimento de identificação com o personagem, que, no fundo, tem lá os seus motivos para ser e agir dessa maneira. E, exatamente por ele se mostrar ao espectador como uma esfinge, surge a vontade de conhecer mais daquele homem que, nos olhares, diz muito mais do que com suas frases, quase sempre secas e cortantes. Às tentativas de aproximação de interlocutores, ele entrega réplicas sucintas, traduções de um espírito altamente defensivo. E as perguntas só crescem em quantidade: Por que ele mora naquele hotel? Qual a razão do seu silêncio sistemático e de poucos cortes? Do que ele pode ter se arrependido? Sorrentino não está preocupado em responder a todas elas, e conduz a obra, cujo roteiro também lhe coube, com um tom grave e lento, distante da prerrogativa estrondosa que guia a percepção de um público ávido de histórias básicas pontuadas por interregnos revolucionários.

Indo na contramão da verborragia, As consequências do amor é uma bela experiência de contemplação. O longa traz à tona a questão dos segredos que todos nós temos, e que é importante conservar apenas para nós mesmos. Titta faz questão de guardar o(s) seu(s). Ele é categórico ao lidar com um homem que lhe propõe um acordo: em troca de um segredo seu, o tal homem lhe contaria algo de que ninguém sabe, um segredo inconfessável. Impassível, Titta não lhe revela o que guarda de mais valioso, afirmando que, se ele contar, deixará de ser um segredo. O público, porém, pode inferir algumas respostas às indagações sobre o protagonista, através de flashbacks discretos e pontuais. Em grande parte, certos mistérios de Titta vão se esclarecendo quando de sua decisão de se aproximar da linda garçonete que trabalha no hotel, a quem ele não costumava sequer dirigir um “bom dia”. A jovem, inclusive, demonstra surpresa no dia em que ele finalmente a saúda, já que sempre obteve o seu silêncio em resposta ao mesmo cumprimento. Ela se chama Sofia (Olivia Magnani) e, com seus penetrantes olhos verdes, faz que Titta enfim sucumba ao seus encantos, ainda que ele nunca demonstre seu interesse pela moça por meio de arroubos sentimentais. De alguma forma, é Sofia quem dá algum sentido à sua vida já há tanto tempo esvaziada de significado.


A propósito da atriz, ela é neta de ninguém menos que Anna Magnani, como sugere o seu sobrenome. Trata-se de uma ascendência e tanto, afinal estamos falando de um dos nomes mais importantes do cinema italiano de décadas passadas, sobretudo por seu papel em Roma, cidade aberta (Roma, città aperta, 1945), icônico até os dias de hoje. No caso de Olivia, ainda estamos diante de uma atriz em seus primeiros passos no celuloide, sendo As consequências do amor o seu segundo filme. Ela foi uma feliz escolha de Sorrentino, por sua capacidade de aliar beleza e magnetismo a um talento notável. Sua Sofia é o contraponto ideal para a sisudez de Titta, que desabrocha sutilmente diante dela, desejoso de acolhê-la em seus braços. De qualquer modo, não há espaço para um romance propriamente dito entre eles. A aproximação de Titta serve muito mais para que ele chegue perto de uma espécie de redenção e de um autossacrifício a certa altura da história.

No circuito comercial brasileiro, não houve espaço para As consequências do amor, o que é mais umas das tremendas injustiças que as distribuidoras vêm cometendo ao longo dos anos, com cada vez mais frequência. O filme seguinte de Sorrentino, O divo (Il divo, 2008), padeceu do mesmo mal, tendo sido exibido, em solo carioca, apenas no Festival do Rio, sem muita repercussão. Portanto, ele é um diretor a ser descoberto em nossa pátria. Sua filmografia ainda é curta, mas ele já chegou a Hollywood com o recente Aqui é o meu lugar (This must be the place, 2011), celebrado e elogiado por onde já passou. Cannes lhe demonstrou especial apreço, incluindo-o entre os grandes nomes surgidos no cinema italiano nos últimos dez anos. Também houve quem sentisse ares tarantinescos em As consequências do amor, o que não deixa de ser plausível, por elementos como a presença de um anti-herói no papel principal e o embaralhamento da narrativa, além dos toques de máfia cuja relevância para a trama é descoberta por quem assiste a ela. Contudo, as marcas autorais de Sorrentino também são notórias, como o rigor formal, apresentado em planos algo geométricos e a escrita permeada por alguns elementos excêntricos, índices que dão a entender que mais um grande artista da imagem nasceu em nosso tempo, com sensibilidade e tensão para veicular traços de uma realidade obtusa.

16 de jul. de 2012

O túmulo dos vagalumes e a realidade dolorida de um tempo


O cinema é uma pérola de grande valor. Filmes, certas vezes, não são simples entretenimento ou escapismo. Não. Há filmes que vão além dessa perspectiva, alçando voos tão altos e distantes que alcançam as nossas almas, repercutindo longamente dentro de nós. Com O túmulo dos vagalumes (Hotaru No Haka, 1988), acontece exatamente isso. Quando sua narrativa chega ao fim, mal podemos acreditar no quanto de nós mudou ao longo da sessão, tamanho o impacto que a obra causa. Concebido em forma de animação, o longa acompanha a vida de um casal de irmãos japoneses durante a época da guerra. Seita, o menino, e Setsuko, a menina, vivem uma relação de muita proximidade. Ele é uma espécie de pai para a garotinha, cumprindo com louvor o seu papel de irmão mais velho diante das dificuldades cotidianas advindas da doença da mãe deles. A situação adversa exige a coragem e o empenho de Seita, que busca proteger a irmã dos males daquela realidade tão atroz, num esforço comovente para o público que, desde muito cedo, já vai se afeiçoando a esses adoráveis protagonistas.

Entretanto, o desenrolar dos acontecimentos dessa história vão se revelando cada vez mais devastadores. O túmulo dos vagalumes é um filme muito dolorido, que desafia a capacidade do espectador de resistir às lágrimas, sem qualquer apelação ao maniqueísmo, entretanto. Os rumos tomados pelos personagens são plenamente verossimeis, e é difícil ficar indiferente à pungência que os atravessa cena após cena. As dificuldades só aumentam, e Setsuko precisa cada vez mais de Seita. A guerra traz medo, sobressalto, incerteza, doença, morte e muitos outros malefícios cujos efeitos drásticos são bastante difíceis de mensurar, sobretudo aqueles que acometem suas vítimas psicologicamente. Os irmãos têm de aprender a lidar precocemente com muita violência, algo que os priva de momentos simples da vida, que fazem falta justamente pela simplicidade. São dias que, uma vez perdidos, não retornam mais. Embora crescer seja uma dor inevitável, ela não precisa ser amplificada ainda mais, daí a sensação de que Seita e Setsuko são atingidos por uma crueldade imensa.

Em meio à dor e ao sofrimento, está a beleza do filme. É impressionante constatar o quanto o diretor Isao Takahata não se intimidou em expor o lado mais selvagem e covarde do conflito bélico, apresentando corpos mortos, escassez de alimentos, exploração de mão-de-obra infantil e outros elementos que não figuram normalmente em animações. Não deixa de ser um filme infantil, mas é daqueles que abala ilusões e incita a sobreviver durante grandes intempéries da vida e não perder a capacidade de sonhar, sem recorrer a didatismos e a pieguice para dar conta de trazer a sua mensagem à tona. E a veracidade com que tudo é apresentado leva a pensar no quanto seria difícil explicitar as mesmas chagas através de atores de carne e osso. Ainda assim, houve essa tentativa, quando Toya Sato decidiu refilmar a história com um elenco real. Talvez o resultado não tenha sido igualmente belo.


Um dos muitos pontos altos de O túmulo dos vagalumes é transformar sua história em algo universal. Takahata não está interessado em focalizar o lado político da guerra, colocando mocinhos e vilões frente a frente, mas em examinas as feridas profundas que um confronto dessa natureza pode causar nas vidas de pessoas que não tinham nada a ver com ele. Assim como em Vá e veja (Idi i smotri, 1985), o horror e a desolação podem estampar a face do espectador, devido a cenas de alto impacto que impregnam na memória. Quando menos se espera, é possível ter os olhos marejados, até que as lágrimas finalmente sejam vertidas. É um filme que pede a nossa entrega, que atinge a nossa sensibilidade e se afasta das produções cheias de piadinhas de duplo sentido com cara de diversão indireta para os adultos que levam seus filhos ao cinema. Este aqui não: a construção de cada cena é um trabalho árduo, dotado de uma delicadeza que dialoga com nossos sentidos mais básicos. É uma história de sobrevivência, de inocência roubada, de um estupro metafórico ao regozijo e ao contentamento. Viver dias de guerra é perder muito mais do que ganhar, se é que existe a possibilidade de ganhar algo, como o diretor sentencia poetica e veementemente.

A alternativa para lidar melhor com tanta desolação talvez seja atentar para os ingredientes mais básicos de que a vida é composta. Assim, os vagalumes, insetos tão banais e pouco considerados, transformam-se em alento para os dois irmãos, especialmente Setsuko, a quem Seita tenta poupar o máximo que pode, especialmente quando a doença vem e mina as forças da garotinha pouco a pouco. Com suas luzes naturais, eles produzem uma espécie de magia hipnótica para a menina, que se desliga por breves instantes do desconcerto do mundo. A relação dos dois é de forte cumplicidade, e é lindo ver o quanto eles gostam um do outro. Ela costuma chamá-lo de Irmãozão, numa demonstração de apego e reconhecimento da sua autoridade. É uma menina comum, sem poderes extraordinários ou uma inteligência acima da média, cuja vida vai perdendo a estabilidade a cada novo baque que sobrevém a ela e a Seita. O poder de comoção de O túmulo dos vagalumes é imenso e só tendo o filme diante dos olhos é possível entender o quanto ele é dolorido e lindo ao mesmo tempo. É através de um filme como esse que podemos pensar que carinho, fraternidade e proteção valem muito nessa vida e em como ausências de pessoas queridas podem machucar e doer. Diante do desconforto extremo que pode tomar conta do espectador nas cenas derradeiras, essa constatação pode ser tudo o que resta.

5 de jul. de 2012

Minha noite com ela e as indagações pontuais de um inquieto


Eric Rohmer sempre gostou de retratar sujeitos cindidos. Seu interesse em protagonistas que indagam e discorrem longamente sobre aspectos basais da existência se revela novamente em Minha noite com ela (Ma nuit chez Maud, 1969), um hábil estudo de personagem centrado na figura de Jean-Louis (Jean-Louis Trintignant). Ele é um católico fervoroso que sustenta convicções firmes a respeito dos relacionamentos amorosos, e que se vê, de improviso, confrontado com a atual namorada de seu amigo. Antes de iniciar um caloroso debate com ela, porém, ele conhece a mulher de sua vida em uma das missas que frequenta. A bela Françoise (Marie-Christine Berrault) é requintada, passiva e dócil, e se mostra a escolha perfeita para uma vida a dois aprazível. Em um primeiro momento, Jean-Louis apenas a observa, sem ter o seu olhar correspondido. Para que se encontrem e dialoguem, de fato, ele passa antes pelo “estágio” na casa de Maud.

A presença do nome dessa personagem no título original da obra deixa entrever o grau de importância que ela assume ao longo da narrativa. Maud é a imagem da cisão que acomete Jean-Louis pela capacidade que tem de colocar em xeque boa parte de suas crenças primordiais. Ele chega até a sua casa convidado pelo amigo Vidal (Antoine Vitez), e o que parecia uma agradável reunião a três se transforma, de repente, em um confronto de ideias e intenções opostas entre ele e Maud. Essa é a premissa altamente simples de Minha noite com ela, e é através dela que o público é novamente enredado pelo discurso de Rohmer colocado nas falas de cada personagem, aliado a um rigor formal que tornam seu cinema inscrito em um modus operandi relegado a enésimo plano por muitos realizadores, mas cuja correlação com o termo “datado” é falsa. O cinema de Rohmer é perene em termos de reflexões, e a lentidão que caracteriza boa parte dos seus filmes permite pensá-los como sessões de hipnose esclarecedora, por mais paradoxal que essa afirmação possa soar.

Minha noite com ela é o terceiro exemplar de série de Contos Morais do diretor. O que une os filmes pertencentes a esse filo, por assim dizer, são as coincidências prosaicas da vida e o peso das interdições que são atravessadas pelo componente de moralidade, indispensável à boa convivência. Rohmer justapõe esses dois ingredientes instigantes e oferece mais um filme de digestão demorada, que pode enfrentar a ojeriza de muitos espectadores. Sua obra, em linhas gerais, é um banquete para ser degustado por paladares ávidos de sensações duradouras, pregnantes, e não por descargas de adrenalina transitórias, por mais que a segunda alternativa não se constitua um demérito. Assim o é também a trajetória de Jean-Louis. Seu diálogo com Maud toma conta da tela por boa parte da duração do filme, e exponencia uma série de comentários sobre como os relacionamentos amorosos podem ser a soma de dúvidas individuais sobre a própria essência, na acepção mais helênica do termo. À palavra, Rohmer acrescenta o olhar tênue, que procura os olhos do interlocutor para se certificar de que a interação com o outro não é apenas verbal. E quem se embevece é o público que abre o coração para a sua proposta.


É com alegria que se comenta que o longa chegou a ser levado em conta pela Academia, que lhe conferiu as indicações nas categorias de filme estrangeiro e roteiro original, também assinado por Rohmer, embora ele não tenha sido vitorioso em nenhuma delas. Prêmios à parte, Minha noite com ela é mais um exercício vigoroso de cinema de autor, que não está preocupado em submeter sua obra ao condicionamento da facilidade requerida por espectadores lobotomizados cujo parâmetro cinematográfico se resume aos arrasa-quarteirões hollywoodianos. Longe de atacar esse império de sonhos, Rohmer constrói seu próprio castelo de incertezas, que lhe rendeu um pequeno séquito de fãs ardorosos, de que faz parte o autor desta crítica. Diante de Maud, os questionamentos de Jean-Louis pulsam a plenos pulmões, e se tornam discussões oportunas e atraentes. Ela é perspicaz, uma interlocutora perfeita para alguém tão ávido de respostas quanto ele. Durante toda a noite que passam juntos, Jean-Louis passa por momentos de desconcerto provenientes da capacidade que ela tem de atiçar, desafiando o seu senso de amizade e esmiuçando suas centelhas de fragilidade.

Como dica de um espectador com certa experiência em assistir a filmes de Rohmer, cabe dizer que é sempre bom estar de olhos bem abertos para entrar em contato com eles. Afinal, encarar uma sessão de Minha noite com ela depois de uma noite maldormida pode ser fatal para a fruição do sutil espetáculo estético e dialogal proporcionado pelo diretor, cujas grandes inimigas, nesse caso, serão as pálpebras do próprio espectador. Portanto, nada melhor do que se entregar sem reservas ao convite do filme e conhecer uma de suas várias exegeses do homem pluripartido, decomposta em mais filigranas que as faces de um diamante em processo de lapidação e adornada pelas belezas afrodisíacas, com o perdão da tautologia proposital, das atrizes que personificam Maud e Françoise. A tal predileção do diretor por retratos de protagonistas assinalados por rachaduras sentimentais e psicológicas se traduz aqui, afinal, em planos deslumbrantes e diálogos sinceros e banais sobre fé, amor e chances a casualidades, numa condução lenta e irresistível.

20 de jun. de 2012

Hair e os delírios musicados de uma geração



Musicais podem ser muito charmosos quando se investe em uma trama consistente nas quais as canções não são meros adornos. Demonstrando consciência dessa premissa, Milos Forman concebeu Hair (idem, 1979), a versão cinematográfica da peça teatral homônima que se tornou o hino de toda uma geração de alternativos. O longa-metragem se baseia no espírito libertário trazido pela década de 70 e, de certa forma, antecipa os excessos que viriam a se tornar imediatamente associáveis à década posterior com um senso de humor aguçadíssimo. Tudo tem início a partir do momento em que Claude (John Savage), um jovem de Oklahoma, é recrutado para fazer parte da tropa de soldados estadunidenses da Guerra do Vietnã. Logo que chega a Nova York, é recebido por um grupo de hippies cheios de conceitos avessos ao status quo, e eles tentam demonstrar para o rapaz o quanto a sociedade convencional está cheia de problemas. Esse encontro é a deixa para a primeira de muitas canções nada politicamente corretas que pontuam a narrativa, com leves pitadas de reflexão e crítica social.

Sem dúvida, muito da força de Hair vem de sua trilha sonora brilhante e envolvente, mas o filme não sobreviveria se essa fosse a sua única qualidade. O elenco também tem méritos, e se mostra afiadíssimo nas cenas e nos diálogos mais saidinhos, por assim dizer. Sem falar nas coreografias muito bem orquestradas e executadas, que transformam o contato com o filme em algo equivalente a uma ida a qualquer evento dançante. A mais icônica das canções talvez seja a que faz menção à Era de Aquário, um conceito propalado pelos hippies para se referir a um novo tempo, pontuado pela fraternidade e pelo prazer particular acima de tudo, que ganhou adeptos com alta velocidade. É difícil não se contagiar pela performance dos personagens ao cantá-la e dançá-la, sendo franca demonstração do campo magnético atrativo emanado por Hair. Essa tribo de “bichos-grilos” é liderada por Berger (Treat Williams), que acaba seduzindo Claude a se juntar a eles e a promover deliciosas arruaças cidade afora.

Cumpre destacar que a peça da Broadway serviu de inspiração, mas não de base, para o filme de Forman. Há uma série de apropriações particulares do diretor aqui, desde as canções entoadas até a maneira com que alguns personagens são retratados, passando pela ordem de execução das músicas. Portanto, é uma versão livre e divertida do musical, cuja atemporalidade é atestada pela possibilidade de identificação que o filme pode despertar. Hair não se importa em ser desbocado, e faz frente a certo conservadorismo vigente em seu tempo, o que se trata, a princípio, de uma constatação, não de uma crítica ou um elogio. Por meio de seus números musicais algo ousados, o filme cospe na cara de uma sociedade cínica e pseudopuritana, arrancando gargalhadas pelo inusitado de suas situações. Uma das mais curiosas delas é, sem dúvida, a que mostra o processo de alistamente de Claude e outros jovens no Exército. Durante os procedimentos padrão, surge mais uma canção, que coloca em xeque a sexualidade de boa parte dos militares presentes na cena. Não se pode negar que é uma sequência dotada de um alto grau de senso de humor que, aliás, é uma das cenas-síntese da verve sarcástica que domina o filme.



A escolha de Forman para a direção também se revelou acertada. Ainda no começo da década de 70, o estúdio pensou em George Lucas para assumir o cargo, mas ele já se ocupara com as filmagens de Loucuras de verão (American Graffiti, 1973) e Hair acabou sendo rodado somente seis anos depois. Quando se confere de perto o trabalho do cineasta tcheco, entende-se que ele o desenvolveu muito bem, colocando sua câmera como observadora de um cenários de múltiplas transformações e exibindo um certo carinho no trato com seus protagonistas, verdadeiros paladinos da contracultura. A essa altura, ele já tinha imigrado para o solo estadunidense, onde já tinha assinado e ainda assinaria obras de grande relevância para o cinema tal como esta, entre as quais se podem citar Um estranho no ninho (One flew over the cuckoo's nest, 1975) e O povo contra Larry Flynt (The people vs. Larry Flynt, 1996). Forman também a evita a caricatura e apresenta as contradições de uma juventude que, antes de qualquer coisa, mostrava-se à procura de um lugar no mundo e de uma ideologia à qual se filiar. Tal qual a geração que lhe é precursora, o que faz de Hair uma espécie de primo de segundo grau de longas como Os sonhadores (The dreamers, 2003) e uma sutil inspiração para Aconteceu em Woodstock (Taking Woodstock, 2009).

Em meio à ode dionisíaca proporcionada por Hair, existe espaço para a descoberta do amor e do desejo, que se reflete no interesse crescente de Claude por Sheila (Beverly D’Angelo), que, mesmo parecendo corresponder aos seus sentimentos, hesita em explicitá-los e o leva a um quase inocente jogo de gato e rato. São temas universais que ganham uma roupagem muito bem-humorada, e que, com leveza, seduzem o público atento às histórias bem contadas com um ritmo contagiante, com o perdão do trocadilho. A fotografia, por outro lado, é menos deslumbrante que a da maioria dos musicais, o que não significa afirmar que é descuidada. Para uma trama que visita o ambiente de preparação para a guerra, a escolha por cliques menos alegóricos é sensata e eficiente, e faz o público prestar atenção nos outros elementos comentados aqui. Aliás, a peleja dos novos amigos de Claude é para impedir que ele faça parte do balé cruento que uma guerra como a que os ianques estavam travando contra os vietcongues representava. E, quando Berger consegue se infiltrar no QG dos soldados e resgatar Claude dessa iminência, o filme se aproxima de seu desfecho e inscreve seu nome na galeria de musicais divertidos, reflexivos e relevantes, exibindo os delírios musicados de uma geração.

15 de jun. de 2012

O curioso registro do nonsense em Durval discos



Despretensão e charme atípico regem Durval discos (idem, 2002), a estreia de Anna Muylaert na direção de longa-metragens. Esse seu primeiro filme é temperado por uma bela dose de humor negro e lascas de nonsense, que o tornam uma alternativa muito interessante em meio a seara nacional. O título remete à simpática e anacrônica loja de LPs do protagonista, encarnado por um inspirado Ary França. Ele se recusa a abdicar de seu negócio ou mesmo a modernizá-lo com a inclusão gradual de CDs ao acervo. Com isso, o lugar fica às moscas a maior parte do tempo, e parece mais que a loja é para ele mesmo do que para clientes em potencial. Durval se sente em casa ali, e não se trata de uma simples metáfora: a loja fica dentro de sua casa mesmo, em que ele mora com a mãe Carmita (Etty Fraser), uma adorável senhora que flerta com um nível um tanto saudável de insanidade.

Muylaert constrói uma atmosfera de inusitado muito bem-vinda em Durval discos. A narrativa transcorre em uma São Paulo modorrenta, de transeuntes lânguidos e personagens pitorescos, a começar pelo protagonista em si. E a soma dessas características incomuns resulta em uma personalidade carismática, capaz de manter o espectador risonho por boa parte da sessão, seja pelos hábitos curiosos desses tipos cuidadosamente pensados, seja pelas tiradas que eles emitem, algumas delas icônicas. O melhor dessa composição é que tudo tem um sabor de cotidiano, por mais que uma ou outra bizarrice cruze a tela. E, acredite, elas realmente surgem, exatamente depois que Durval e sua mãe decidem contratar Célia (Letícia Sabatella), a única empregada doméstica que aceita trabalhar para eles em troca de um salário irrisório. Aquela moça tão subserviente não está ali por acaso, e tudo tem a ver com uma garotinha que ela deixa aos cuidados de Durval e Carmita para, em seguida, desaparecer.

Então, de repente, eles se veem diante da necessidade de tomar conta de Kiki (Isabela Guasco), a tal garotinha, que não tem a menor noção do que está acontecendo. Mesmo sabendo que não pode ficar com a menina, Carmita se apega a ela de tal maneira que é capaz de atender a todos os seus caprichos, sejam eles quais forem. Esse apego leva Durval à loucura, já que ele não se conforma com o sumiço repentino de Célia e sente que existe algo de muito estranho no fato de aquela menina estar ali, uma suspeita que se confirma mais adiante. Além da senilidade da mãe, ele tem que lidar com a curiosidade excessiva de Elizabeth (Marisa Orth), a funcionária da sorveteria ao lado, que o visita regularmente para fumar e se interessa por saber mais a respeito de Kiki, pensando, a princípio, que se trata de uma sobrinha sua. Os diálogos travados entre ela e Durval são o mais banais possível, regando a mistura de Muylaert com um tipo de humor improvisando, que incorpora o ordinário do cotidiano com leveza e um quê de politicamente incorreto.



Nos seus traços psicológicos, Durval é uma espécie de herói da resistência de certa descartabilidade contemporânea, prosseguindo como amante de elementos que a maior parte das pessoas considera circunscrita a uma época específica. Essa sua atitude é demonstrada de forma divertida pelo roteiro, escrito pela própria diretora, e faz o público simpatizar com Durval sem qualquer forçação de barra. E o que dizer de Dona Carmita? Completamente entregue à sua adoração por Kiki, ela oferece os grandes insights de nonsense do filme, pontuando suas cenas por uma interpretação irretocável que alude a muitas avós espalhadas por aí... A sua vitória na categoria de melhor atriz no atual Festival de Recife foi um merecido reconhecimento a um trabalho tão bem executado. O filme também passou por Gramado, de onde saiu com sete Kikitos de Ouro, entre os quais se encontram direção e roteiro, uma prova de que simplicidade pode e deve rimar com qualidade. Ainda sobra espaço para uma participação relâmpago de Rita Lee, como uma cliente excêntrica que, ao que tudo indica, passa a perna em Durval.

O longa também conquista pelo carinho com que retrata seus personagens, constituindo-se como uma simpática homenagem a saudosistas e amantes de antiguidades. É o próprio Durval que sintetiza a relevância do vinil em uma espécie de discurso elucidativo para um cliente que o considera obsoleto: o LP oferece a possibilidade de escolher exatamente o trecho da música que se quer ouvir, além de apresentar lado A e lado B – de um lado, estão as faixas mais comerciais e “estouradas”, de outro, as canções menos badaladas, que só fãs de carteirinha costumam conhecer e apreciar. A defesa apaixonada não convence o comprador potencial, mas representa todo o fascínio de uma tribo por um signo de seu objeto de culto, e se coaduna com o percurso insólito do filme, um inteligente aglomerado de divertidos momentos assinalados por canções para paladares musicais ligados à atemporalidade. É uma terrível pena que, no epílogo do filme, o bunker em que reside essa resistência tenha de ruir: não há espaço para olhar atrás e reter o passado no mundo em que vivemos hoje.

11 de jun. de 2012

Ironias no mundo do teatro e das artes em Tiros na Broadway



O impedimento moral é uma temática extremamente cara a Woody Allen. Vez por outra, ele se debruça sobre o assunto e produz obras de requinte verborrágico como ninguém ou pouquíssimos de seu naipe. Em Tiros na Broadway (Bullets over Broadway, 1994), ele volta a mirar suas lentes sobre um protagonista cujo flerte com o que se convencionou denominar jeitinho brasileiro ou saída pela tangente resulta em reflexões agridoces sobre o impasse derivado da necessidade de escolher. David Shayne (John Cusack), alter ego do diretor dessa vez, é um autor teatral que ainda não conheceu o sucesso de público. Sua peças um tanto herméticas e rebuscadas só encontram respaldo entre seus colegas de métier, mas ele anseia por um alcance maior de sua obra, um reconhecimento ainda em vida. A oportunidade para que seu desejo se concretize, entretanto, surge de modo pouco convencional e agradável.

David consegue o apoio financeiro necessário para levar seu novo texto ao palco, mas isso envolve uma barganha que fere de morte um dos seus princípios artísticos. Ele só obterá a soma de dinheiro caso aquiesça em conceder um papel à namorada de um mafioso, que vem a ser exatamente o homem que lhe está oferecendo a alta quantia. Trata-se de uma ofensa ao que David acredita porque Olive Neal (Jennifer Tilly), a mulher em questão, é terrivelmente ruim para qualquer personagem, algo de que ele se dá conta logo nos primeiros minutos de um encontro com ela. Mas ninguém ali está falando a língua do talento: pelo contrário, interessa a Nick (Joe Viterelli), o tal mafioso, satisfazer o capricho da sua parceira sexual afoita. Está formado, assim, o cenário de indecisão que atormentará David até que ele tome partido de um dos lados. E é com base nessa interessante premissa que Allen vai pontuando uma série de observações sarcásticas sobre o papel do artista no mundo, outra de suas fortes recorrências.

Dito isso, o espectador de Tiros na Broadway pode esperar por um punhado de referências eruditas e metalinguísticas, bem como por tiradas de alto teor cômico. A batalha de David para se conservar imune à mediocridade é inglória e lhe traz uma espécie de culpa. Depois que ele responde à oferta para montar sua peça, uma série de eventos – alguns, pequenas catástrofes – se desenrolam sobre o seu trabalho. Ele quer fazer o melhor possível e, para isso, não abre mão da grande estrela Helen Sinclair (Dianne Wiest, inspiradíssima), uma veterana dos palcos que já interpretou textos de gênios teatrais. Para David, ela representa o farol de inteligência e sensibilidade artística de que seu espetáculo tanto carece. E os encontros entre eles são ocasiões formidáveis para que Allen destile lascas de seu humor arguto, colocando nos lábios de Helen um bordão cuja simplicidade, graça e eficiência são igualmente proporcionais (“Don’t speak!”) e cujo uso está diretamente relacionado a um contexto de paixonite que passa a envolvê-los.




A questão do papel do artista no mundo, mencionada anteriormente, tem grande força em Tiros na Broadway. Não somente porque David se vende para o mafioso, fazendo a vontade de sua namorada, mas também porque ele passa a ouvir os pitacos de Cheech (Chazz Palminteri), o guarda-costas da garota. Diante da obrigação de seguir seus passos por toda parte, o brucutu acaba revelando o seu gosto pela arte de escrever, chegando a funcionar quase como um ghost writter para David, a quem “acusa” de escrever diálogos excessivamente formais e romanceados. A parceria inusitada dos dois é o grande insight de sarcasmo trazido por Allen, que zomba dos grandes artistas e, por conseguinte, de si mesmo. Não é a primeira vez que o diretor aborda o assunto: em Interiores (Interiors, 1978), Renata (Diane Keaton) se questionava sobre a relevância de seu trabalho como escritora, bem como sobre a pregnância de sua obra literária. Contudo, o caso de David é pontuado pela comicidade, o que não deixa de oferecer um percurso reflexivo sobre quem escreve, sejam livros, sejam peças. Ele, um ser fleumático e embaraçado, vê-se diante de um parceiro que, sob a aridez de sentimentos que sua profissão exige, mantém um oásis de sensibilidade. Então, surge a dúvida: até onde um artista como David faz falta ao público?

Não se pode deixar de mencionar o ótimo trabalho de Cusack diante das câmeras. Pela segunda vez, ele foi recrutado por Allen para reunir parte das agruras que permeiam sua filmografia em forma de personagem, como já havia acontecido em Neblina e sombras (Shadows and fog, 1991). Raramente se viu o ator em um desempenho tão inspirado e, por que não dizer, brilhante. O retrato do desespero, da confusão e do remorso está ali diante de nós, impresso sob os olhares e os gestos exacerbados mas não caricato de Cusack, revelando o quanto ele foi uma feliz escolha do diretor que, apesar de ter um certo clube de atores diletos, quase nunca repete parcerias fora desse eixo. Aliás, a direção de atores de Allen não costuma decepcionar, o que faz dele um dos grandes também nesse sentido. O que dizer do esplendor da interpretação de Wiest, merecidamente premiada com o Oscar de coadjuvante? Ela está puro charme como uma atriz de franco talento cuja queda para tipos complicados encontra espaço na atração que causa em David. Tilly é outra que se sai maravilhosamente bem, compondo uma aspirante a diva em um timbre esganiçado adoravelmente enervante, a quem se odeia deliciosamente. Como ela, no quesito tom de voz acutíssimo veio logo em seguida a Linda Ash de Poderosa Afrodite (Mighty Aphrodite, 1995).

Toda essa trama inteligente e sarcástica ainda está envolta na atmosfera algo idílica da década de 20, o que possibilita uma fotografia esplêndida cujo responsável é Carlo Di Palma, velho colaborador de Allen, com quem trabalhou consecutivamente de Simplesmente Alice (Alice, 1990) a Desconstruindo Harry (Deconstructing Harry, 1997), para nunca mais retomar a parceria e morrer em 2004. Com efeito, nota-se uma cuidadosa composição de planos e figurinos deslumbrantes, evidenciando que o visual também faz parte das preocupações do realizador. Sem falar que toda a ação transcorre na sua amada Nova York, cuja roupagem à moda antiga redobra o seu charme. Até hoje, o filme permanece como a última de suas colaborações com Wiest, uma atriz que cai tão bem em seus filmes – particularmente, torço para que esse jejum entre os dois ainda se que quebre. Valeria a pena tê-los juntos ao menos mais uma vez, pois que , juntos, eles já nos trouxeram também, por exemplo, o cinicamente terno Hannah e suas irmãs (Hannah and her sisters, 1984). Para além dos elementos da narrativa levemente citados aqui, Tiros na Broadway ainda reserva ótimas soluções dramáticas até o seu epílogo, resultando em uma obra de deliciosos comentários sarcásticos e satíricos.