16 de jul. de 2012

O túmulo dos vagalumes e a realidade dolorida de um tempo


O cinema é uma pérola de grande valor. Filmes, certas vezes, não são simples entretenimento ou escapismo. Não. Há filmes que vão além dessa perspectiva, alçando voos tão altos e distantes que alcançam as nossas almas, repercutindo longamente dentro de nós. Com O túmulo dos vagalumes (Hotaru No Haka, 1988), acontece exatamente isso. Quando sua narrativa chega ao fim, mal podemos acreditar no quanto de nós mudou ao longo da sessão, tamanho o impacto que a obra causa. Concebido em forma de animação, o longa acompanha a vida de um casal de irmãos japoneses durante a época da guerra. Seita, o menino, e Setsuko, a menina, vivem uma relação de muita proximidade. Ele é uma espécie de pai para a garotinha, cumprindo com louvor o seu papel de irmão mais velho diante das dificuldades cotidianas advindas da doença da mãe deles. A situação adversa exige a coragem e o empenho de Seita, que busca proteger a irmã dos males daquela realidade tão atroz, num esforço comovente para o público que, desde muito cedo, já vai se afeiçoando a esses adoráveis protagonistas.

Entretanto, o desenrolar dos acontecimentos dessa história vão se revelando cada vez mais devastadores. O túmulo dos vagalumes é um filme muito dolorido, que desafia a capacidade do espectador de resistir às lágrimas, sem qualquer apelação ao maniqueísmo, entretanto. Os rumos tomados pelos personagens são plenamente verossimeis, e é difícil ficar indiferente à pungência que os atravessa cena após cena. As dificuldades só aumentam, e Setsuko precisa cada vez mais de Seita. A guerra traz medo, sobressalto, incerteza, doença, morte e muitos outros malefícios cujos efeitos drásticos são bastante difíceis de mensurar, sobretudo aqueles que acometem suas vítimas psicologicamente. Os irmãos têm de aprender a lidar precocemente com muita violência, algo que os priva de momentos simples da vida, que fazem falta justamente pela simplicidade. São dias que, uma vez perdidos, não retornam mais. Embora crescer seja uma dor inevitável, ela não precisa ser amplificada ainda mais, daí a sensação de que Seita e Setsuko são atingidos por uma crueldade imensa.

Em meio à dor e ao sofrimento, está a beleza do filme. É impressionante constatar o quanto o diretor Isao Takahata não se intimidou em expor o lado mais selvagem e covarde do conflito bélico, apresentando corpos mortos, escassez de alimentos, exploração de mão-de-obra infantil e outros elementos que não figuram normalmente em animações. Não deixa de ser um filme infantil, mas é daqueles que abala ilusões e incita a sobreviver durante grandes intempéries da vida e não perder a capacidade de sonhar, sem recorrer a didatismos e a pieguice para dar conta de trazer a sua mensagem à tona. E a veracidade com que tudo é apresentado leva a pensar no quanto seria difícil explicitar as mesmas chagas através de atores de carne e osso. Ainda assim, houve essa tentativa, quando Toya Sato decidiu refilmar a história com um elenco real. Talvez o resultado não tenha sido igualmente belo.


Um dos muitos pontos altos de O túmulo dos vagalumes é transformar sua história em algo universal. Takahata não está interessado em focalizar o lado político da guerra, colocando mocinhos e vilões frente a frente, mas em examinas as feridas profundas que um confronto dessa natureza pode causar nas vidas de pessoas que não tinham nada a ver com ele. Assim como em Vá e veja (Idi i smotri, 1985), o horror e a desolação podem estampar a face do espectador, devido a cenas de alto impacto que impregnam na memória. Quando menos se espera, é possível ter os olhos marejados, até que as lágrimas finalmente sejam vertidas. É um filme que pede a nossa entrega, que atinge a nossa sensibilidade e se afasta das produções cheias de piadinhas de duplo sentido com cara de diversão indireta para os adultos que levam seus filhos ao cinema. Este aqui não: a construção de cada cena é um trabalho árduo, dotado de uma delicadeza que dialoga com nossos sentidos mais básicos. É uma história de sobrevivência, de inocência roubada, de um estupro metafórico ao regozijo e ao contentamento. Viver dias de guerra é perder muito mais do que ganhar, se é que existe a possibilidade de ganhar algo, como o diretor sentencia poetica e veementemente.

A alternativa para lidar melhor com tanta desolação talvez seja atentar para os ingredientes mais básicos de que a vida é composta. Assim, os vagalumes, insetos tão banais e pouco considerados, transformam-se em alento para os dois irmãos, especialmente Setsuko, a quem Seita tenta poupar o máximo que pode, especialmente quando a doença vem e mina as forças da garotinha pouco a pouco. Com suas luzes naturais, eles produzem uma espécie de magia hipnótica para a menina, que se desliga por breves instantes do desconcerto do mundo. A relação dos dois é de forte cumplicidade, e é lindo ver o quanto eles gostam um do outro. Ela costuma chamá-lo de Irmãozão, numa demonstração de apego e reconhecimento da sua autoridade. É uma menina comum, sem poderes extraordinários ou uma inteligência acima da média, cuja vida vai perdendo a estabilidade a cada novo baque que sobrevém a ela e a Seita. O poder de comoção de O túmulo dos vagalumes é imenso e só tendo o filme diante dos olhos é possível entender o quanto ele é dolorido e lindo ao mesmo tempo. É através de um filme como esse que podemos pensar que carinho, fraternidade e proteção valem muito nessa vida e em como ausências de pessoas queridas podem machucar e doer. Diante do desconforto extremo que pode tomar conta do espectador nas cenas derradeiras, essa constatação pode ser tudo o que resta.

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