5 de jul. de 2012

Minha noite com ela e as indagações pontuais de um inquieto


Eric Rohmer sempre gostou de retratar sujeitos cindidos. Seu interesse em protagonistas que indagam e discorrem longamente sobre aspectos basais da existência se revela novamente em Minha noite com ela (Ma nuit chez Maud, 1969), um hábil estudo de personagem centrado na figura de Jean-Louis (Jean-Louis Trintignant). Ele é um católico fervoroso que sustenta convicções firmes a respeito dos relacionamentos amorosos, e que se vê, de improviso, confrontado com a atual namorada de seu amigo. Antes de iniciar um caloroso debate com ela, porém, ele conhece a mulher de sua vida em uma das missas que frequenta. A bela Françoise (Marie-Christine Berrault) é requintada, passiva e dócil, e se mostra a escolha perfeita para uma vida a dois aprazível. Em um primeiro momento, Jean-Louis apenas a observa, sem ter o seu olhar correspondido. Para que se encontrem e dialoguem, de fato, ele passa antes pelo “estágio” na casa de Maud.

A presença do nome dessa personagem no título original da obra deixa entrever o grau de importância que ela assume ao longo da narrativa. Maud é a imagem da cisão que acomete Jean-Louis pela capacidade que tem de colocar em xeque boa parte de suas crenças primordiais. Ele chega até a sua casa convidado pelo amigo Vidal (Antoine Vitez), e o que parecia uma agradável reunião a três se transforma, de repente, em um confronto de ideias e intenções opostas entre ele e Maud. Essa é a premissa altamente simples de Minha noite com ela, e é através dela que o público é novamente enredado pelo discurso de Rohmer colocado nas falas de cada personagem, aliado a um rigor formal que tornam seu cinema inscrito em um modus operandi relegado a enésimo plano por muitos realizadores, mas cuja correlação com o termo “datado” é falsa. O cinema de Rohmer é perene em termos de reflexões, e a lentidão que caracteriza boa parte dos seus filmes permite pensá-los como sessões de hipnose esclarecedora, por mais paradoxal que essa afirmação possa soar.

Minha noite com ela é o terceiro exemplar de série de Contos Morais do diretor. O que une os filmes pertencentes a esse filo, por assim dizer, são as coincidências prosaicas da vida e o peso das interdições que são atravessadas pelo componente de moralidade, indispensável à boa convivência. Rohmer justapõe esses dois ingredientes instigantes e oferece mais um filme de digestão demorada, que pode enfrentar a ojeriza de muitos espectadores. Sua obra, em linhas gerais, é um banquete para ser degustado por paladares ávidos de sensações duradouras, pregnantes, e não por descargas de adrenalina transitórias, por mais que a segunda alternativa não se constitua um demérito. Assim o é também a trajetória de Jean-Louis. Seu diálogo com Maud toma conta da tela por boa parte da duração do filme, e exponencia uma série de comentários sobre como os relacionamentos amorosos podem ser a soma de dúvidas individuais sobre a própria essência, na acepção mais helênica do termo. À palavra, Rohmer acrescenta o olhar tênue, que procura os olhos do interlocutor para se certificar de que a interação com o outro não é apenas verbal. E quem se embevece é o público que abre o coração para a sua proposta.


É com alegria que se comenta que o longa chegou a ser levado em conta pela Academia, que lhe conferiu as indicações nas categorias de filme estrangeiro e roteiro original, também assinado por Rohmer, embora ele não tenha sido vitorioso em nenhuma delas. Prêmios à parte, Minha noite com ela é mais um exercício vigoroso de cinema de autor, que não está preocupado em submeter sua obra ao condicionamento da facilidade requerida por espectadores lobotomizados cujo parâmetro cinematográfico se resume aos arrasa-quarteirões hollywoodianos. Longe de atacar esse império de sonhos, Rohmer constrói seu próprio castelo de incertezas, que lhe rendeu um pequeno séquito de fãs ardorosos, de que faz parte o autor desta crítica. Diante de Maud, os questionamentos de Jean-Louis pulsam a plenos pulmões, e se tornam discussões oportunas e atraentes. Ela é perspicaz, uma interlocutora perfeita para alguém tão ávido de respostas quanto ele. Durante toda a noite que passam juntos, Jean-Louis passa por momentos de desconcerto provenientes da capacidade que ela tem de atiçar, desafiando o seu senso de amizade e esmiuçando suas centelhas de fragilidade.

Como dica de um espectador com certa experiência em assistir a filmes de Rohmer, cabe dizer que é sempre bom estar de olhos bem abertos para entrar em contato com eles. Afinal, encarar uma sessão de Minha noite com ela depois de uma noite maldormida pode ser fatal para a fruição do sutil espetáculo estético e dialogal proporcionado pelo diretor, cujas grandes inimigas, nesse caso, serão as pálpebras do próprio espectador. Portanto, nada melhor do que se entregar sem reservas ao convite do filme e conhecer uma de suas várias exegeses do homem pluripartido, decomposta em mais filigranas que as faces de um diamante em processo de lapidação e adornada pelas belezas afrodisíacas, com o perdão da tautologia proposital, das atrizes que personificam Maud e Françoise. A tal predileção do diretor por retratos de protagonistas assinalados por rachaduras sentimentais e psicológicas se traduz aqui, afinal, em planos deslumbrantes e diálogos sinceros e banais sobre fé, amor e chances a casualidades, numa condução lenta e irresistível.

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