11 de jun. de 2012

Ironias no mundo do teatro e das artes em Tiros na Broadway



O impedimento moral é uma temática extremamente cara a Woody Allen. Vez por outra, ele se debruça sobre o assunto e produz obras de requinte verborrágico como ninguém ou pouquíssimos de seu naipe. Em Tiros na Broadway (Bullets over Broadway, 1994), ele volta a mirar suas lentes sobre um protagonista cujo flerte com o que se convencionou denominar jeitinho brasileiro ou saída pela tangente resulta em reflexões agridoces sobre o impasse derivado da necessidade de escolher. David Shayne (John Cusack), alter ego do diretor dessa vez, é um autor teatral que ainda não conheceu o sucesso de público. Sua peças um tanto herméticas e rebuscadas só encontram respaldo entre seus colegas de métier, mas ele anseia por um alcance maior de sua obra, um reconhecimento ainda em vida. A oportunidade para que seu desejo se concretize, entretanto, surge de modo pouco convencional e agradável.

David consegue o apoio financeiro necessário para levar seu novo texto ao palco, mas isso envolve uma barganha que fere de morte um dos seus princípios artísticos. Ele só obterá a soma de dinheiro caso aquiesça em conceder um papel à namorada de um mafioso, que vem a ser exatamente o homem que lhe está oferecendo a alta quantia. Trata-se de uma ofensa ao que David acredita porque Olive Neal (Jennifer Tilly), a mulher em questão, é terrivelmente ruim para qualquer personagem, algo de que ele se dá conta logo nos primeiros minutos de um encontro com ela. Mas ninguém ali está falando a língua do talento: pelo contrário, interessa a Nick (Joe Viterelli), o tal mafioso, satisfazer o capricho da sua parceira sexual afoita. Está formado, assim, o cenário de indecisão que atormentará David até que ele tome partido de um dos lados. E é com base nessa interessante premissa que Allen vai pontuando uma série de observações sarcásticas sobre o papel do artista no mundo, outra de suas fortes recorrências.

Dito isso, o espectador de Tiros na Broadway pode esperar por um punhado de referências eruditas e metalinguísticas, bem como por tiradas de alto teor cômico. A batalha de David para se conservar imune à mediocridade é inglória e lhe traz uma espécie de culpa. Depois que ele responde à oferta para montar sua peça, uma série de eventos – alguns, pequenas catástrofes – se desenrolam sobre o seu trabalho. Ele quer fazer o melhor possível e, para isso, não abre mão da grande estrela Helen Sinclair (Dianne Wiest, inspiradíssima), uma veterana dos palcos que já interpretou textos de gênios teatrais. Para David, ela representa o farol de inteligência e sensibilidade artística de que seu espetáculo tanto carece. E os encontros entre eles são ocasiões formidáveis para que Allen destile lascas de seu humor arguto, colocando nos lábios de Helen um bordão cuja simplicidade, graça e eficiência são igualmente proporcionais (“Don’t speak!”) e cujo uso está diretamente relacionado a um contexto de paixonite que passa a envolvê-los.




A questão do papel do artista no mundo, mencionada anteriormente, tem grande força em Tiros na Broadway. Não somente porque David se vende para o mafioso, fazendo a vontade de sua namorada, mas também porque ele passa a ouvir os pitacos de Cheech (Chazz Palminteri), o guarda-costas da garota. Diante da obrigação de seguir seus passos por toda parte, o brucutu acaba revelando o seu gosto pela arte de escrever, chegando a funcionar quase como um ghost writter para David, a quem “acusa” de escrever diálogos excessivamente formais e romanceados. A parceria inusitada dos dois é o grande insight de sarcasmo trazido por Allen, que zomba dos grandes artistas e, por conseguinte, de si mesmo. Não é a primeira vez que o diretor aborda o assunto: em Interiores (Interiors, 1978), Renata (Diane Keaton) se questionava sobre a relevância de seu trabalho como escritora, bem como sobre a pregnância de sua obra literária. Contudo, o caso de David é pontuado pela comicidade, o que não deixa de oferecer um percurso reflexivo sobre quem escreve, sejam livros, sejam peças. Ele, um ser fleumático e embaraçado, vê-se diante de um parceiro que, sob a aridez de sentimentos que sua profissão exige, mantém um oásis de sensibilidade. Então, surge a dúvida: até onde um artista como David faz falta ao público?

Não se pode deixar de mencionar o ótimo trabalho de Cusack diante das câmeras. Pela segunda vez, ele foi recrutado por Allen para reunir parte das agruras que permeiam sua filmografia em forma de personagem, como já havia acontecido em Neblina e sombras (Shadows and fog, 1991). Raramente se viu o ator em um desempenho tão inspirado e, por que não dizer, brilhante. O retrato do desespero, da confusão e do remorso está ali diante de nós, impresso sob os olhares e os gestos exacerbados mas não caricato de Cusack, revelando o quanto ele foi uma feliz escolha do diretor que, apesar de ter um certo clube de atores diletos, quase nunca repete parcerias fora desse eixo. Aliás, a direção de atores de Allen não costuma decepcionar, o que faz dele um dos grandes também nesse sentido. O que dizer do esplendor da interpretação de Wiest, merecidamente premiada com o Oscar de coadjuvante? Ela está puro charme como uma atriz de franco talento cuja queda para tipos complicados encontra espaço na atração que causa em David. Tilly é outra que se sai maravilhosamente bem, compondo uma aspirante a diva em um timbre esganiçado adoravelmente enervante, a quem se odeia deliciosamente. Como ela, no quesito tom de voz acutíssimo veio logo em seguida a Linda Ash de Poderosa Afrodite (Mighty Aphrodite, 1995).

Toda essa trama inteligente e sarcástica ainda está envolta na atmosfera algo idílica da década de 20, o que possibilita uma fotografia esplêndida cujo responsável é Carlo Di Palma, velho colaborador de Allen, com quem trabalhou consecutivamente de Simplesmente Alice (Alice, 1990) a Desconstruindo Harry (Deconstructing Harry, 1997), para nunca mais retomar a parceria e morrer em 2004. Com efeito, nota-se uma cuidadosa composição de planos e figurinos deslumbrantes, evidenciando que o visual também faz parte das preocupações do realizador. Sem falar que toda a ação transcorre na sua amada Nova York, cuja roupagem à moda antiga redobra o seu charme. Até hoje, o filme permanece como a última de suas colaborações com Wiest, uma atriz que cai tão bem em seus filmes – particularmente, torço para que esse jejum entre os dois ainda se que quebre. Valeria a pena tê-los juntos ao menos mais uma vez, pois que , juntos, eles já nos trouxeram também, por exemplo, o cinicamente terno Hannah e suas irmãs (Hannah and her sisters, 1984). Para além dos elementos da narrativa levemente citados aqui, Tiros na Broadway ainda reserva ótimas soluções dramáticas até o seu epílogo, resultando em uma obra de deliciosos comentários sarcásticos e satíricos.

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