30 de jul. de 2012

Traços de uma realidade obtusa em As consequências do amor


Os dias de glória do cinema italiano podem ter ficado para trás. Entretanto, vez por outra, surgem obras que lançam luz sobre ele, como é o caso de As consequências do amor (Le conseguenze dell’amore. 2004), exercício de autoralidade dos bons proposto por Paolo Sorrentino que vai muito além do que o seu título sugere. Sua narrativa está centrada na figura enigmática de Titta di Girolamo (Toni Servillo), um homem cuja principal característica é o silêncio. Ele mora há anos em um hotel na Suíça e faz questão de manter uma distância considerável das pessoas, como quem acredita que não deva estreitar laços com ninguém. Seu olhar é sempre fugidio e sua expressão é de tédio constante. Certamente, existe muito o que se descobrir a seu respeito, mas com sua economia de palavras, inclusive na narração em off de que ele mesmo se ocupa, torna-se muito difícil adentrar seu passado e suas particularidades. O diretor, portanto, lança o público em uma nuvem espessa de mistério, fazendo de seu filme uma espécie de flerte bem-sucedido entre o drama e o suspense.

Não é muito fácil simpatizar com Titta, haja vista o seu ar um tanto esnobe e evasivo. Mas, aos poucos, pode brotar um estranho sentimento de identificação com o personagem, que, no fundo, tem lá os seus motivos para ser e agir dessa maneira. E, exatamente por ele se mostrar ao espectador como uma esfinge, surge a vontade de conhecer mais daquele homem que, nos olhares, diz muito mais do que com suas frases, quase sempre secas e cortantes. Às tentativas de aproximação de interlocutores, ele entrega réplicas sucintas, traduções de um espírito altamente defensivo. E as perguntas só crescem em quantidade: Por que ele mora naquele hotel? Qual a razão do seu silêncio sistemático e de poucos cortes? Do que ele pode ter se arrependido? Sorrentino não está preocupado em responder a todas elas, e conduz a obra, cujo roteiro também lhe coube, com um tom grave e lento, distante da prerrogativa estrondosa que guia a percepção de um público ávido de histórias básicas pontuadas por interregnos revolucionários.

Indo na contramão da verborragia, As consequências do amor é uma bela experiência de contemplação. O longa traz à tona a questão dos segredos que todos nós temos, e que é importante conservar apenas para nós mesmos. Titta faz questão de guardar o(s) seu(s). Ele é categórico ao lidar com um homem que lhe propõe um acordo: em troca de um segredo seu, o tal homem lhe contaria algo de que ninguém sabe, um segredo inconfessável. Impassível, Titta não lhe revela o que guarda de mais valioso, afirmando que, se ele contar, deixará de ser um segredo. O público, porém, pode inferir algumas respostas às indagações sobre o protagonista, através de flashbacks discretos e pontuais. Em grande parte, certos mistérios de Titta vão se esclarecendo quando de sua decisão de se aproximar da linda garçonete que trabalha no hotel, a quem ele não costumava sequer dirigir um “bom dia”. A jovem, inclusive, demonstra surpresa no dia em que ele finalmente a saúda, já que sempre obteve o seu silêncio em resposta ao mesmo cumprimento. Ela se chama Sofia (Olivia Magnani) e, com seus penetrantes olhos verdes, faz que Titta enfim sucumba ao seus encantos, ainda que ele nunca demonstre seu interesse pela moça por meio de arroubos sentimentais. De alguma forma, é Sofia quem dá algum sentido à sua vida já há tanto tempo esvaziada de significado.


A propósito da atriz, ela é neta de ninguém menos que Anna Magnani, como sugere o seu sobrenome. Trata-se de uma ascendência e tanto, afinal estamos falando de um dos nomes mais importantes do cinema italiano de décadas passadas, sobretudo por seu papel em Roma, cidade aberta (Roma, città aperta, 1945), icônico até os dias de hoje. No caso de Olivia, ainda estamos diante de uma atriz em seus primeiros passos no celuloide, sendo As consequências do amor o seu segundo filme. Ela foi uma feliz escolha de Sorrentino, por sua capacidade de aliar beleza e magnetismo a um talento notável. Sua Sofia é o contraponto ideal para a sisudez de Titta, que desabrocha sutilmente diante dela, desejoso de acolhê-la em seus braços. De qualquer modo, não há espaço para um romance propriamente dito entre eles. A aproximação de Titta serve muito mais para que ele chegue perto de uma espécie de redenção e de um autossacrifício a certa altura da história.

No circuito comercial brasileiro, não houve espaço para As consequências do amor, o que é mais umas das tremendas injustiças que as distribuidoras vêm cometendo ao longo dos anos, com cada vez mais frequência. O filme seguinte de Sorrentino, O divo (Il divo, 2008), padeceu do mesmo mal, tendo sido exibido, em solo carioca, apenas no Festival do Rio, sem muita repercussão. Portanto, ele é um diretor a ser descoberto em nossa pátria. Sua filmografia ainda é curta, mas ele já chegou a Hollywood com o recente Aqui é o meu lugar (This must be the place, 2011), celebrado e elogiado por onde já passou. Cannes lhe demonstrou especial apreço, incluindo-o entre os grandes nomes surgidos no cinema italiano nos últimos dez anos. Também houve quem sentisse ares tarantinescos em As consequências do amor, o que não deixa de ser plausível, por elementos como a presença de um anti-herói no papel principal e o embaralhamento da narrativa, além dos toques de máfia cuja relevância para a trama é descoberta por quem assiste a ela. Contudo, as marcas autorais de Sorrentino também são notórias, como o rigor formal, apresentado em planos algo geométricos e a escrita permeada por alguns elementos excêntricos, índices que dão a entender que mais um grande artista da imagem nasceu em nosso tempo, com sensibilidade e tensão para veicular traços de uma realidade obtusa.

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