15 de jun. de 2012
O curioso registro do nonsense em Durval discos
Despretensão e charme atípico regem Durval discos (idem, 2002), a estreia de Anna Muylaert na direção de longa-metragens. Esse seu primeiro filme é temperado por uma bela dose de humor negro e lascas de nonsense, que o tornam uma alternativa muito interessante em meio a seara nacional. O título remete à simpática e anacrônica loja de LPs do protagonista, encarnado por um inspirado Ary França. Ele se recusa a abdicar de seu negócio ou mesmo a modernizá-lo com a inclusão gradual de CDs ao acervo. Com isso, o lugar fica às moscas a maior parte do tempo, e parece mais que a loja é para ele mesmo do que para clientes em potencial. Durval se sente em casa ali, e não se trata de uma simples metáfora: a loja fica dentro de sua casa mesmo, em que ele mora com a mãe Carmita (Etty Fraser), uma adorável senhora que flerta com um nível um tanto saudável de insanidade.
Muylaert constrói uma atmosfera de inusitado muito bem-vinda em Durval discos. A narrativa transcorre em uma São Paulo modorrenta, de transeuntes lânguidos e personagens pitorescos, a começar pelo protagonista em si. E a soma dessas características incomuns resulta em uma personalidade carismática, capaz de manter o espectador risonho por boa parte da sessão, seja pelos hábitos curiosos desses tipos cuidadosamente pensados, seja pelas tiradas que eles emitem, algumas delas icônicas. O melhor dessa composição é que tudo tem um sabor de cotidiano, por mais que uma ou outra bizarrice cruze a tela. E, acredite, elas realmente surgem, exatamente depois que Durval e sua mãe decidem contratar Célia (Letícia Sabatella), a única empregada doméstica que aceita trabalhar para eles em troca de um salário irrisório. Aquela moça tão subserviente não está ali por acaso, e tudo tem a ver com uma garotinha que ela deixa aos cuidados de Durval e Carmita para, em seguida, desaparecer.
Então, de repente, eles se veem diante da necessidade de tomar conta de Kiki (Isabela Guasco), a tal garotinha, que não tem a menor noção do que está acontecendo. Mesmo sabendo que não pode ficar com a menina, Carmita se apega a ela de tal maneira que é capaz de atender a todos os seus caprichos, sejam eles quais forem. Esse apego leva Durval à loucura, já que ele não se conforma com o sumiço repentino de Célia e sente que existe algo de muito estranho no fato de aquela menina estar ali, uma suspeita que se confirma mais adiante. Além da senilidade da mãe, ele tem que lidar com a curiosidade excessiva de Elizabeth (Marisa Orth), a funcionária da sorveteria ao lado, que o visita regularmente para fumar e se interessa por saber mais a respeito de Kiki, pensando, a princípio, que se trata de uma sobrinha sua. Os diálogos travados entre ela e Durval são o mais banais possível, regando a mistura de Muylaert com um tipo de humor improvisando, que incorpora o ordinário do cotidiano com leveza e um quê de politicamente incorreto.
Nos seus traços psicológicos, Durval é uma espécie de herói da resistência de certa descartabilidade contemporânea, prosseguindo como amante de elementos que a maior parte das pessoas considera circunscrita a uma época específica. Essa sua atitude é demonstrada de forma divertida pelo roteiro, escrito pela própria diretora, e faz o público simpatizar com Durval sem qualquer forçação de barra. E o que dizer de Dona Carmita? Completamente entregue à sua adoração por Kiki, ela oferece os grandes insights de nonsense do filme, pontuando suas cenas por uma interpretação irretocável que alude a muitas avós espalhadas por aí... A sua vitória na categoria de melhor atriz no atual Festival de Recife foi um merecido reconhecimento a um trabalho tão bem executado. O filme também passou por Gramado, de onde saiu com sete Kikitos de Ouro, entre os quais se encontram direção e roteiro, uma prova de que simplicidade pode e deve rimar com qualidade. Ainda sobra espaço para uma participação relâmpago de Rita Lee, como uma cliente excêntrica que, ao que tudo indica, passa a perna em Durval.
O longa também conquista pelo carinho com que retrata seus personagens, constituindo-se como uma simpática homenagem a saudosistas e amantes de antiguidades. É o próprio Durval que sintetiza a relevância do vinil em uma espécie de discurso elucidativo para um cliente que o considera obsoleto: o LP oferece a possibilidade de escolher exatamente o trecho da música que se quer ouvir, além de apresentar lado A e lado B – de um lado, estão as faixas mais comerciais e “estouradas”, de outro, as canções menos badaladas, que só fãs de carteirinha costumam conhecer e apreciar. A defesa apaixonada não convence o comprador potencial, mas representa todo o fascínio de uma tribo por um signo de seu objeto de culto, e se coaduna com o percurso insólito do filme, um inteligente aglomerado de divertidos momentos assinalados por canções para paladares musicais ligados à atemporalidade. É uma terrível pena que, no epílogo do filme, o bunker em que reside essa resistência tenha de ruir: não há espaço para olhar atrás e reter o passado no mundo em que vivemos hoje.
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