27 de ago. de 2012

Humor genuinamente divertido em Um assaltante bem trapalhão


Celebrado por entusiastas fiéis na contemporaneidade, Woody Allen galgou o primeiro degrau de uma carreira profícua há mais de quarenta anos. Nascia com Um assaltante bem trapalhão (Take the money and run, 1969) um realizador exímio, de capacidade admirável para conceber retratos apurados de pessoas e fatos inusitados inseridos no cotidiano. Nessa estreia, ele apostou em piadas rápidas e eficientes, uma clara contribuição dos anos precedentes em que poliu sua verve cômica nos palcos, como um dos precursores do stand-up comedy que foi. A trama do filme gira em torno de Virgil Starkwell (o próprio Allen), um ladrão sem qualquer talento para exercer seu ofício. Sua história é narrada no melhor estilo mockumentary, que ele voltaria adotar outras duas vezes, a saber: em Zelig (idem, 1983) e Poucas e boas (Sweet and lowdown, 1999). Com isso, tudo sugere que o protagonista realmente tenha existido e acaba por deixar o longa com um gostinho mais divertido.

O título em um português é um tanto infeliz, mas tem lá a sua cota de pertinência. Afinal, os roubos de Virgil são sempre frustrados, devido a circunstâncias diversas que, ora o impedem de concluí-los, ora não permitem que ele escape impunemente do local do delito. E essas dificuldades têm potencial para gerar risadas deliciosas no espectador, que se vê diante de um filme curto e fluido, ainda com poucas marcas autorais que viriam a se multiplicar e desenvolver ao longo dos anos. É possível afirmar que esse seja um filme despretensioso e descompromissado, de um estética semelhante aos trabalhos da década seguinte de Allen, como Bananas (idem, 1971). Por outro lado, é possível notar que a argúcia do diretor já estava presente em Um assaltante bem trapalhão, sobretudo nas falas do narrador onisciente que pontua os passos da trajetória errática de Virgil e tece comentários nem sempre positivos a respeito dele. É como se Allen estivesse plantando as primeiras sementes do que viria a ser o seu cinema, e as regasse com um timing cômico que anda raro nos dias de hoje.

Virgil pode ser analisado como o protótipo do sujeito deslocado e em dificuldades amorosas que Allen refinaria ao longo de sua carreira, normalmente sendo interpretado por ele mesmo e que viria a ser considerado como o seu alter ego – para muitos, aliás, aquele seria o próprio cineasta, o que ele já fez questão de desmentir em entrevistas, e que também é um dos argumentos que seus detratores utilizam com demasiada frequência, chamando-o egocêntrico. Entre uma e outra tentativa de roubo, esse sujeito desencaixado de certas convenções sociais passa temporadas na cadeia, e só pensa em novas possibilidades de acertar com um novo crime. E, enquanto não o vemos se dar mal mais uma vez, conhecemos um pouco mais de sua vida e personalidade através dos depoimentos “colhidos” para o filme, sobretudo os de seus pais, hilariamente disfarçados por conta da vergonha que sentem do filho. A mãe tenta contemporizar e defender Virgil, dizendo que, apesar dos pesares, trata-se de um bom rapaz, enquanto o pai demonstra sua indignação por ter tentado colocar Deus no coração do filho e não ter obtido sucesso.



É bem verdade que a entrada de Virgil para o mundo do crime deriva diretamente de seu complexo de inferioridade, desenvolvido desde a infância, em sequências que o mostram ainda como um garotinho ruivo e de óculos, sempre em fuga e desejoso de ser aceito. Trata-se de mais um indício das futuras recorrências allenianas: a leitura (algo) psicanalítica de um personagem que, (quase) inevitavelmente, desemboca em traumas e eventos dos primeiros anos de vida. Para seus admiradores, é um exercício bastante interessante e produtivo buscar essas referências ao longo do filme, e elas se tornam mais claras para quem já tiver conferido previamente um ou mais filmes seguintes do diretor, que permitem a adoção de parâmetros de comparação. Entretanto, Um assaltante bem trapalhão dispensa pré-requisitos, mesmo porque é a obra inaugural de Allen, o qual entraria em um ritmo de produção de tirar o fôlego poucos anos mais tarde, que se traduz no lançamento de um filme por ano desde o início da década de 80, mais precisamente com Sonhos eróticos de uma noite de verão (A midsummer night's sex comedy, 1982). De lá para cá, surgiram inúmeros trabalhos que conquistaram público e crítica, embora ele nunca tenha se firmado como uma unanimidade: opiniões heterogêneas a respeito de qualquer coisa sempre existirão.

Allen teria estreado como diretor, segundo alguns, três anos antes com O que há, tigresa? (What's Up, Tiger Lily?, 1966), mas é difícil falar em direção para esse filme quando, na verdade, ele apenas redublou as falas dos personagens, tendo concebido um roteiro juntamente com Senkichi Taniguchi. Portanto, Um assaltante bem trapalhão é que acaba por atender às prerrogativas daquilo que se pode chamar de filme próprio de um diretor, sendo muito mais sensato apontá-lo como sua estreia no celuloide. Entre as curiosidades relativas ao filme, está o fato de a data de nascimento de Virgil ser a mesma de Allen: 1 de dezembro de 1935, o que leva o personagem a ter seus 34 anos. Nessa idade, sobrava disposição no cineasta para a comédia física, e ele se desdobrou em várias cenas de correria e perseguições, muitas delas bastante divertidas – a sequência em que ele tenta assaltar uma loja de animais e sai correndo de lá com um macaco atrás dele é um achado do humor nonsense. Com o tempo, ele abandonaria a interpretação de personagens que exigissem muito de sua envergadura física, preferindo os tipos hipocondríacos e com ataques de pânico. Outro detalhe interessante dos bastidores é que Allen decidiu dirigir o filme por medo que as filmagens se tornassem caóticas como as de Cassino Royale (idem, 1966). Assim, ele teria o controle da produção e nasceria aqui um cineasta de olhar clínico, bom piadista, verborrágico, cheio de autorreferências e vários ingredientes que o fariam conquistar um séquito de entusiastas leais.

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