2 de abr. de 2011

O escafandro e a borboleta, um tratado sobre a limitação da dor

Nas mãos do diretor Julian Schnabel, a história real de Jean- Dominique Bauby ganhou contornos poéticos e emocionantes, e seu título vem a ser O escafandro e a borboleta (Le scaphandre e le papillon, 2007). O filme é o novo trabalho do diretor sete anos após Antes do anoitecer (Before night falls, 2000), e é uma cinebiografia, como o longa anterior. Aqui, tem-se a trajetória do editor da revista Elle, um dos veículos de informação sobre a moda mais influentes em toda a Europa e também no mundo. Sempre talentoso e uma referência no mundo fashion, ele se vê em um estado de quase completa imobilidade depois de ser acometido de um derrame cerebral. E essa doença que se instala sem um aviso prévio é a mola propulsora para o desenvolvimento da narrativa do filme do realizador francês.

Bauby é interpretado com economia de gestos por Matthieu Amalric, um dos atores mais requisitados do cinema francês atual, ao lado de Daniel Auteuil. Ele passa quase todo o filme confinado à prostração, por conta da condição extrema que tem de enfrentar em decorrência de sua doença. Se antes o editor era um home solar e muito charmoso, com o acidente vascular cerebral ele se torna totalmente dependente da ajuda dos outros, situação contra a qual luta com bravura, mas da qual não consegue escapar. Schnabel, nesse ponto, oferece uma reflexão urgente sobre a necessidade de se viver tudo o que for possível e aceitável, e transmite essa sensação ao espectador por meio do confinamento do protagonista. O teor da trama, por si só, é uma armadilha em termos de potencia para a pieguice, mas o realizador foge o tempo todo de cair no sentimentalismo barato, contando a história de um homem possível e imaginável. Aos poucos, fica visível a opção de Schnabel por uma abordagem quase asséptica do sofrimento de Bauby, mas nem por isso menos acalentadora.
Logo no começo do filme, o editor já se encontra vitimado pelo derrame, e todas as pessoas e objetos que o cercam são filtrados pelo seu olhar perscrutador, que busca retomar as referências que perdeu logo depois de sua tragédia particular. O filme é feito de recortes, que vão sendo alinhavados a partir da memória de Bauby, seriamente afetada pelo derrame, e que vai voltando aos poucos, mas nunca totalmente. A sensação de agonia diante dos procedimentos adotados pelos médicos é inevitável. Schabel filma a profilaxia como quem está diante de algo trivial, e é por isso que vemos, entre outras coisas, o olho direito de Bauby sendo costurado, de modo que sua visão se torna ainda mais restrita. Se antes ele apenas podia ver o que estava à sua volta, por estar sempre deitado sobre a cama do hospital, com apenas um olho para enxergar sua condição se torna ainda pior. Originalmente, o papel do editor tinha sido oferecido a Johnny Depp. Diante da recusa do ator, que estava envolvido com as filmagens de Piratas do Caribe – No fim do mundo (Pirates of Caribeen – At world’s end, 2007), o cineasta decidiu convidar Amalric, e o desempenho dele em cena atestam que a escolha foi acertada. O escafandro e a borboleta se configura como um poderoso tratado sobre a limitação gerada pela dor, e de como é possível se reinventar diante das adversidades que a vida impõe.

Um dos aspectos mais emocionantes do filme é, sem dúvida, a decisão de Bauby de escrever sua autobiografia. Para tanto, ele precisa se valer de um recurso um tanto insólito. Como não tem mais nenhum movimento em todo o corpo, a não ser o do olho esquerdo, ele conta com a ajuda de sua enfermeira, Henriette (Marie Josée Croze), que apresenta para ele um mecanismo possível para que ele se comunique. Como se mantém lúcido, ela lhe propõe que ele pisque uma vez para indicar qual letra deseja que seja escrita, e duas vezes para quando não for a letra que ele quer que se escreva. É dessa maneira que ele vai ditando sua autobiografia, algo que requer a máxima paciência, atividade para a qual a enfermeira se mostra bastante solícita.
As pessoas à volta do protagonista também tentam, cada qual à sua maneira, lidar com a sua nova situação. Sua esposa Céline (Emmanuelle Seigner, esposa de Roman Polanski), é uma das que sentem a dificuldade de estar próxima do marido depois do acontecimento fatídico, e isso se demonstra no movimento de progressivo afastamento empreendido por ela a cada nova visita que lhe faz. Seu pai Papinou é interpretado por Max Von Sydow, e a cena na qual eles se falam ao telefone é de uma delicadeza atroz, diante da qual é difícil conter as lágrimas. O ator, um habitué de Ingmar Bergman, passa pouco tempo em cena, mas é o suficiente para nos arrebatar com a imagem de pai impotente.
Em seu título, o filme traz uma certa estranheza, por unir elementos aparentemente desconexos. Mas a junção dessas duas palavras faz todo o sentido quando se observa a postura de Bauby diante de sua atual condição. Por não ser mais capaz de movimentar seu corpo, ele se encontra preso em uma espécie de escafandro, aquele equipamento pesado que serve para a respiração subaquática, mas sua alma e seu espírito encontram-se livres para voar como uma borboleta. A poesia do título, antes implícita, fica mais nítida em uma sequência em que o próprio personagem faz a comparação. Por conta de sua temática de superação diante de um fato extremo, O escafandro e a borboleta se aproxima de Mar adentro (idem, 2004), que também retrata a jornada de um homem para quem os movimentos já foram praticamente extintos. Aliás, Javier Bardem, protagonista de Mar adentro, já trabalhou com Schabel, na cinebiografia do escritor Reinaldo Arenas. Por pouco, não foi também uma escolha do diretor para a saga do editor de moda. No filme analisado nesta crítica, um detalhe importante chama a atenção: como membro do movimento neo-expressionista, o diretor imprime ao seu filme uma estética pictórica intensa, acentuada pela fotografia estupenda de Janusz Kaminski, colaborador recorrente de Steven Spielberg, em títulos como Amistad (idem, 1997) e O terminal (Terminal, 2004). O polonês também tem em seu currículo a direção de comédias, incluindo a vindoura Como você sabe (How do you know , 2010). Através de seu trabalho primoroso em O escafandro e a borboleta, o público é transportado para uma atmosfera de poesia e reflexão, que permanecem na cabeça muito tempo depois do fim do filme. E através de sua análise apurada da dor de não ser mais como antes, Shnabel construiu uma ode à vida e a opulência de bons sentimentos, pintando um quadro doloroso e emotivo, sempre verossímil e tocante.

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