19 de abr. de 2011

Construindo um mito em Poucas e boas


De vez em quando, Woody Allen gosta de lançar mão de certas estratégias narrativas que conferem ainda mais vitalidade e surpresa a seus filmes. Com Poucas e boas (Sweet and lowdown, 1999), o diretor retoma uma investida que fizera na década de 80, quando dirigira Zelig (idem, 1983): o pseudocumentário. Se no filme em preto e branco em que ele encarnava o personagem-título a apreensão de tal gênero cinematográfico era explícita, em Poucas e boas esse detalhe é espargido, na medida em que não são inseridos tantos depoimentos ou imagens de arquivos do biografado. E o suposto personagem real de que Allen fala dessa vez é Emmet Ray, vivido por um inspirado Sean Penn. Ele é um importante e famoso guitarrista de jazz – o estilo musical preferido do cineasta, vale lembrar – que vive nos anos 30, outra década homenageada por Allen, depois da menção aos anos 40 feita com A era do rádio (Radio days, 1987).
Esse personagem singular é radiografado com riqueza de detalhes pelo realizador, especialmente no tocante aos seus relacionamentos amorosos tumultuados, questão que permeia o cinema alleniano, à qual ele sempre dá especial atenção. Ao longo do recorte temporal de sua vida exibido na tela, Emmet conhece inúmeras mulheres, e vive entre paixões e desenlaces com uma facilidade absolutamente incrível. Entretanto, as duas grandes mulheres que atravessam sua vida são a doce Hattie (Samantha Morton) e a intempestiva Blanche (Uma Thurman) – note-se a homonímia com a personagem de Um bonde chamado desejo. Por conta delas, o personagem se perde e se acha, e parte seus corações, o de cada uma de um modo distinto. A história supostamente real de Emmet Ray é ambientada na amada Nova York natal de Woody Allen, que aqui aparece novamente emoldurada por uma maravilhosa fotografia, cuja assinatura é de Fei Zhao, um chinês que colabora recorrentemente com o diretor. Ambos se entendem graças à mediação de um intérprete, e esse fato um tanto bizarro já foi satirizado por Allen em Dirigindo no escuro (Hollywood ending, 2002), filme em que ele chega mais perto do que realmente é como artista.
O subgênero de Poucas e boas é denominado na linguagem cinematográfica como mockumentary, um termo emprestado do inglês que designa basicamente um filme que apresenta pessoas ou fatos como se fossem reais, valendo-se da estrutura narrativa e visual de um documentário legítimo. Há outros exemplares de filmes assim, entre os quais podem ser citados Um dia sem mexicanos (A day without a mexican, 2004) e o anárquico Borat – O segundo melhor repórter do glorioso país Cazaquistão viaja à América (Borat: cultural learnings of America for make benefit glorious nation of Kazakhstan, 2006). Poucas e boas, contudo, matiza discretamente esse aspecto de falso documentário, dando um ar de maior dramaticidade à sua narrativa. Outrossim, vários dos temas que aparecem em outros trabalhos do diretor, sejam anteriores, sejam posteriores, estão presentes também aqui. É inevitável associar a imagem de Penn com a de uma outra versão dos personagens interpretados pelo diretor. Seu Emmet transmite a insegurança típica dos homens baixos e míopes que Allen encarna tão bem, e carrega consigo uma certa aura de frustração.
Há um detalhe que chama a atenção na carreira do protagonista. Ele é, na verdade, o segundo melhor guitarrista do país, ficando atrás do lendário Django Reinhardt (Michael Sprague), perto de quem desmaiou em todas as ocasiões. Aos poucos, o diretor vai fornecendo ao público um ou outro indício da vida particular de seu biografado, como a informação de que, antes de se tornar um músico de renome, ele ganhava a vida como cafetão. É um dado tragicômico de sua trajetória que Allen insere na narrativa fazem dele alguém tão sujeito a acidentes de percurso como qualquer outra pessoa. Emmet é alguém para quem o amor está em constante mudança, daí sua incapacidade de permanecer muito tempo com Hattie, a quem ele conhece praticamente por acaso. Cabe assinalar aqui a interpretação marcante de Samantha Morton, que encara com desenvoltura o desafio de viver uma mulher muda, que se encanta pelo guitarrista tão logo está diante dele. Hattie consegue namorá-lo, mas muitos problemas fazem a relação naufragar, e o principal deles é a arrogância de Emmet, que se julga melhor que a parceira, que acaba por se comportar de modo excessivamente submisso. Todos esses elementos são transmitidos com acerto pela maneira com que Morton interpreta a personagem.

Outra que surge na tela como um furacão, quando a história já está cruzando sua primeira hora de duração, é Uma Thurman. Na pele de Blanche, ela é o castigo que Emmet merece, já que apresenta um comportamento muito semelhante ao seu no que se refere ao trato com o sexo oposto. O músico é um amante incorrigível, que não se furta de lançar olhares maliciosos para qualquer espécime do sexo feminino, e Blanche não fica atrás nesse quesito, exibindo a mesma ausência de vocação para a fidelidade. Essa questão logo abre os olhos do protagonista para o erro que ele cometeu ao preterir Hattie, mas para voltar atrás em sua atitude talvez seja tarde demais. A personagem de Uma Thurman é mais uma entre tantos na galeria de escritores dos filmes de Woody Allen. Sua Blanche sintetiza a agonia do artista diante de sua própria arte, assim como o guitarrista vivido por Penn o faz. Eles são o retrato da insatisfação constante do ser humano, que se expressa em uma volúpia quase incontrolável de se deslocar e buscar outros e outros seres para sua autorrealização, numa agonia de querer que é universal.
Entretanto, Poucas e boas está longe de ser um dos trabalhos mais celebrados de Allen. Quando citado, vem posto entre os filmes ditos menores de sua carreira, e poucos espectadores, principalmente os que não são fãs de sua obra. Mas, como já foi demonstrado acima, o filme tem méritos e vale ser conferido. Sua edição de som e sua trilha sonora são adoráveis, e reúnem belas canções do jazz dos anos 30, a época do filme. Aliás, esse estilo sempre permeia a filmografia do diretor, e no caso específico de Poucas e boas, um personagem músico é também um alter ego do diretor, que tem uma banda na qual toca clarineta há décadas. Ainda que o resultado final deste longa fique aquém de outros trabalhos mais famosos, não se trata de uma decepção. É tão-somente mais uma faceta da crônica perseguição de Allen às suas fontes de inquietude.

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