27 de abr. de 2011

O mosaico inspirador de Short cuts – Cenas da vida


O cinema estadunidense deu uma grande mostra de qualidade por meio de Robert Altman, quando este dirigiu Short cuts – Cenas da vida (Short cuts, 1993). E as razões que atestam essa qualidade são inúmeras, tantas quantas são seus personagens. O filme é uma proposta de deliciosa de quebra-cabeça para ser montado lenta e extaticamente, cuja conclusão talvez seja o menos importante. Para se ter noção do que há na tela durante sua projeção, uma simples menção de sua sinopse já é o bastante. Em 188 minutos, os cotidianos de 22 personagens são entrelaçados por obra do acaso. É essa premissa trivial que vai dar conta de embevecer o público do começo à derradeira cena.
A base para as tramas abordadas em Short cuts – Cenas da vida são oito contos escritos por Raymond Carver. O autor viveu apenas 50 anos, tendo morrido na década de 80, o que bastou para que seus textos servissem de inspiração para Altman. E sua obra é conhecida exatamente por poemas e contos minimalistas. De posse de oito textos de Carver, Altman recrutou um elenco de tirar o fôlego – com o perdão do clichê – para interpretar os vários cruzamentos de trajetórias que se vão alinhavando por meio do roteiro escrito pelo próprio diretor em parceria com Frank Barhydt. Nessas mais de três horas de filme, desfila um conjunto heterogêneo de personagens, cada um transpirando verossimilhança à sua maneira. Não há protagonistas, apenas pessoas que vão e vêm, e que podem ser as mais importantes em um determinado momento, para depois se colocarem como coadjuvantes.
Tão longa duração permite que o filme aborde temas diversos e urgentes no dia a dia de qualquer pessoa, mesmo que ele tenha sido filmado há exatos 18 anos. Estão lá a comunicação imprecisa entre cônjuges, as diferenças de perspectivas que geram conflitos geracionais, as tentativas desesperadas de preenchimento de afeto, a busca desenfreada pela realização no outro e tantos outros tópicos que chamam a atenção da obra para si. Logo no começo do filme, Altman apresenta uma sequência literal que depois pode passar a ser empregada metaforicamente: um avião sobrevoa a cidade de Los Angeles e vários de seus cidadãos acompanham mais uma edição do noticiário, no qual se anunciam mudanças no tempo local. Mais à frente, entender-se-á esse aviso, porquanto surge um terremoto que abala algumas certezas concretas de certos personagens. É inevitável não associar a sequência em que a terra treme no filme com a chuva de sapos apresentada em Magnólia (Magnolia, 1999), filme de Paul Thomas Anderson, apontado como um discípulo claro de Altman. Ambos os eventos carregam seus simbolismos, consonânticos com o ponto de vista que o espectador eleger, e aproximam a obra de dois diretores que se debruçaram muitas vezes sobre as vozes veladas que ecoam em nossa sociedade. O que Short cuts – Cenas da vida traz pode ser perfeitamente estendido para qualquer metrópole contemporânea e soar totalmente verdadeiro. Um dos grandes méritos do filme é justamente esse: por mais que se saiba que ele é ambientado em Los Angeles, essa referência espacial raramente é retomada ao longo da narrativa. Depreende-se, daí, um caráter universal da obra, que se abre em vária possibilidades e meios de análise, comprovando suas facetas múltiplas.

Entre os personagens que compõem esse grande painel épico da natureza humana estão Ann Finnigan (Andie McDowell) e Paul Finnigan (Jack Lemmon), que sofrem de inconformismo pela morte do filho pequeno. Sua busca por consolo os leva a um comportamento de culpa muito forte, expresso principalmente no contato diário com um comerciante que trabalha perto de sua casa. É bom ver ambos os atores em cena, especialmente McDowell, que enche a tela com sua beleza, graça, vitalidade e talento. Depois de Ann, foram pouquíssimos os bons papéis oferecidos a essa grande atriz, que faz falta nos filmes. Lemmon, por sua vez, nos deixou há dez anos, e esta é uma das últimas aparições do ator em cena. Eles são acompanhados pela presença magnética de Julianne Moore, que dá vida a Marian Wyman, e se mostra à vontade como nunca em sua personagem. Ela é responsável por momentos de êxtase dramático, especialmente quando contracena com Matthew Modine, que aqui personifica Ralph, seu marido, um homem incapaz de traduzir as emoções da esposa para um linguagem que ele seja hábil em entender. Mais do que qualquer outro casal do filme, esse é a expressão genuína da falta de correspondência entre as palavras e as coisas, dada a inutilidade de tanta verborragia em seu relacionamento. Moore encara, inclusive, uma rápida cena de nu frontal, despindo-se também literalmente de pudores e reservas para mergulhar na alma aflita de sua Marian. A atriz, aliás, é uma grande especialista nesse tipo de personagem, e daria vida a mulheres igualmente atormentadas em Chegadas e partidas (The shipping news, 2001) e As horas (The hours, 2002).
O elenco numeroso careceria de muitos parágrafos para que pudesse ser comentado a contento, mas é uma forma de surpresa para o espectador conhecê-los a partir do momento em que puser os olhos no filme. Mas cabe também mencionar o desempenho fantástico de Tim Robbins na pele de Gene Shepard, um homem canalha que não hesita em trair a esposa Sherri (Madeleine Stowe) no maior cinismo, elegendo como amante a voluptuosa Betty Weathers (Frances McDormand), de idade próxima à de sua esposa. É de partir o coração o modo com o qual Gene engana Sherri, deixando-a ligada somente aos filhos. A princípio, cada um desses núcleos está isolado e, como a sinopse do filme informa, em algum momento eles se encontrarão. Descobrir os meios pelos quais esses homens e mulheres se tornarão um quebra-cabeça completo é um dos atrativos do filme, que se ocupa dessa assemblage ao logo de toda a sua duração. Altman não tem pressa em cruzar as tramas que apresenta. E sua condução paciente aproxima cada um dos minutos do filme em uma valsa lenta e poética da vida real. Não há acasos forçados no filme. Não há chance de confundi-lo com Crash – No limite (Crash, 2005), que se utiliza de forma leviana do mecanismo de afunilamento de tramas, beirando a mediocridade. Perto de Short cuts – Cenas da vida, o roteiro de Paul Haggis é simplesmente pilhéria com o espectador e uma fonte rasa de reflexão.

O meio pelo qual se dá o encontro dos personagens também é extremamente simples, e leva a crer piamente que poderia acontecer no cotidiano de qualquer grande cidade. É o atropelamento de uma criança, que tem relação direta com alguns dos personagens desde o início, que servirá de elo entre todos os outros, e portará consigo uma chave para a abertura de uma enorme porta para ensejar sobre a realidade da condição humana. Altman sintetiza, por mais longo que o filme seja, a essência da humanidade: carente de afeto, necessitada de falar e de ser ouvida, em busca da completude que não encontra por mais que se esforce para tal e a certeza de que a felicidade está muito mais clara evidente em lampejos que em uma continuidade temporal. Muitas da temáticas levantadas pelo filme estão longe de ser inéditas, mas a maneira pela qual o diretor toma as rédeas para lançar essa discussão despertam novamente um forte interesse por comentar sobre elas. Afinal, qual é o ser humano que não se interessa em debater sobre sua própria condição? O roteiro de Short cuts – Cenas da vida possibilita essa discussão de modo brilhante, e o resultado foi sua indicação ao Globo de Ouro nessa categoria. O Oscar, por sua vez, contemplou o filme com apenas uma indicação, na categoria de diretor, mais do que merecida. Se a Academia já tivesse criado a categoria de melhor elenco, certamente o conjunto de atores desse filme seria premiado com justiça, já que boa parte da responsabilidade da chama que se acende quando se assiste ao filme e que não se apaga mais é de cada um dos intérpretes que oferece seu talento aqui. Não há desempenhos medianos no filme, somente atuações que podem ser classificadas tranquilamente como, no mínimo, ótimas.
Além dos nomes já citados anteriormente, Short cuts – Cenas da vida nos brinda também com a presença de Lilly Tomlin, uma parceria um tanto recorrente de Altman, Jennifer Jason Leigh, um triste exemplo de atriz subestimada que arrebenta mesmo em um papel pequeno – no que se refere a tempo de permanência em cena - , Robert Downey Jr., ainda em uma época iniciática, mas já demonstradora de seu talento, e tantos outros que nos encantam e chamam a atenção para si a cada movimento na tela. O cineasta vinha de um outro grande mosaico humano, O jogador (The player, 1992), filmado apenas um ano antes desse, e confirmou sua predileção por traçar retratos em escala macroscópica sobre que há de mais humano em cada pessoa. Esse apreço ainda se comprovaria em dois de seus três últimos trabalhos: Assassinato em Gosford Park (Gosford Park, 2001) e A última noite (A prairie home companion, 2006) Os tipos apresentados por Altman podem exalar um pouco de cada um de nós, com proporções ou intensidades distintas, mas com notabilidade de identificação alta. Aos mais resistentes a embarcar na experiência de um filme de longa duração, o conselho que fica é o de romper com essa reserva e ser enlevado pelas surpresas infinitas de Short cuts – Cenas da vida, muitas mais que os fragmentos de trama espargidos por aqui.

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