A verbalização dos conflitos entre casais é exatamente o caminho oposto trilhado por Nuri Bilge Ceylan em Climas (Iklimler, 2006), seu segundo filme. O realizador turco, nascido em 1952, oferece um tratado minimalista sobre o jogo de luz e sombras que pode ser lançado sobre um relacionamento entre um casal absolutamente comum, com o qual a identificação pode ser simplesmente imediata. Eles atendem pelos nomes de Bahar (Ebru Ceylan) e Isa (o próprio diretor), e ilustram o ascensor para o cadafalso no qual duas pessoas podem se instalar quando decidem investir em um casamento. Enquanto ele é um professor universitário quarentão, ela é uma mulher que vive praticamente sob sua influência, acompanhando-o por onde quer que ele vá. Essa espécie de simbiose acordada entre o casal, todavia, não tarda a ruir, por conta, principalmente, do comportamento algo mimado e voluntarioso apresentado por Isa.
No começo do filme, o espectador tem a oportunidade de imergir no universo particular do diretor, que gosta de abordar os silêncios que pontuam as relações humanas, aqui simbolizada pelo casamento de duas pessoas cujo antagonismo é, de início, parcimoniosamente sublimado. Ceylan filma com toda a paciência do mundo uma sessão de fotos feita pelo seu personagem em uma paisagem semi-desértica, enquanto é visto pela esposa entediada. O tédio, aliás, pontua todo o filme, e parece ser e única mola propulsora das (poucas) ações executadas pelos protagonistas. Climas é um filme que se concentra nos vácuos dialogais deixados voluntariamente ou não no cotidiano de um casal. A escolha por uma temática dessa natureza é sempre incômoda, e afugenta grande parte do público. E, no caso do diretor, é uma recorrência em sua obra, vide seu trabalho anterior, Distante (Uzak, 2002), em que também trata do abandono e se vale do mundo da fotografia, e sua obra seguinte 3 macacos (Uç maymun, 2008), em que se volta para uma família que opta pela mudez, pela surdez e pela cegueira. Mas há que se reconhecer e louvar a coragem de Ceylan em exumar a lenta agonia de que um relacionamento pode ser acometido.
A economia de falas é um aspecto que perpassa todo o filme, e exige do público uma concentração mais acurada nos espaços e ambientes frequentados por Isa e Bahar. Muito do que acontece em Climas são palavras não ditas, omissões propositais e ironias não declaradas, que minam a convivência diária dos dois. Nesse sentido, o cenário em que os personagens estão é absolutamente contrastante com seus estados de espírito. Eles estão em férias no mar Egeu, na costa grega, um lugar paradisíaco que é o sonho de consumo de muitos mortais e o quintal de casa para alguns endinheirados. Seus interiores, entretanto, demonstram um desalento e uma insatisfação quase permanente, o que lhes faz adotar uma postura muito passiva diante da vida. Ceylan amplifica a potência dramática de seus personagens através de um dado importante: a atriz que interpreta Bahar é sua mulher na vida real. Com isso, ambos alcançam uma empatia ainda maior em cena, fazendo de sua convivência anterior um trampolim para o entendimento do que pode vir a se passar na rotina de um casal comum. E mais: os atores que interpretam os pais de Isa são parentes de Ceylan na vida real, ajudando, portanto, a integrar o ambiente de uma família na qual o protagonista muitas vezes não encontra guarida para sua inquietude.
O título do longa é bastante adequado, ainda que esteja sendo empregado em um sentido alargado. Os climas são as várias fases pelas quais o casamento de Isa e Bahar vai passando, gerando nos amantes os movimentos de constantes aproximação e desapego, sem que eles se decidam facilmente por uma dessas alternativas. Ao longo de pouco mais de 1h20 de duração, o espectador é transportado para o recorte de realidade proposto por Ceylan, que captura sentimentos de naturezas e intensidades diversas, como a afasia e a falta de motivação como quem compõe um quadro expressivo das dores e delícias de ser um casal. Os climas também se traduzem na paleta de cores frias que se contrapõem à atmosfera de calor que inebria os dias de descanso dos personagens. Nas tentativas de se colocar as coisas em seus devidos lugares, Isa é quem acaba metendo os pés pelas mãos, já que abre espaço para as investidas de uma antiga amiga com quem não hesita em ter algo mais que amizade. Cansada, Bahar reage com desprezo às aproximações canhestras de Isa, mas o caminho de desvencilhamento almejado por eles não é nada simples.
Muitos dos fatos que se superpõem na narrativa de Climas são oriundos de um percurso diegético que indica que a crise que eles estão atravessando vem de longa data. Explica-se: diegese é todo conjunto de acontecimentos vivenciados por um personagem antes mesmo da narrativa de um filme; é algo que não está na tela, mas pode ser explicitado pelo roteiro quando, por exemplo, um personagem faz menção a um evento passado através de um diálogo com outro personagem. No caso dos personagens de Climas, alguns eventos pregressos são evocados, principalmente por parte de Bahar, que os emprega como justificativa para não mais aceitar as investidas de seu marido. O espectador, por sua vez, tem a oportunidade de escolher ao lado de quem quer ficar. Ceylan evita o maniqueísmo, não estando preocupado em apresentar vítimas ou algozes no relacionamento de Isa e Bahar. Apesar disso, há que se comentar a personalidade arisca e algo intratável de seu personagem, que mortifica boa parte do bem querer que a esposa nutria por ele. Esse comportamento se evidencia principalmente na cena em que seu personagem tem um rompante enquanto pilota sua motocicleta com ela na garupa, iniciando uma discussão na qual é muito agressivo com a esposa.
À parte de todos os detalhes já expostos anteriormente, Climas tem como grande achado a relação de quase mutualismo apresentada pelo cineasta entre o homem e a natureza. Assim como os climas são as variações de humor e pensamento dos protagonistas, eles também são as oscilações do ambiente natural em que ambos se encontram inseridos. Aquela tese clássica de que a natureza influencia no comportamento das pessoas, a depender de como estão a temperatura ou as condições de ventos, chuvas ou do sol, é ilustrada e reafirmada aqui, com o apoio da bela direção de fotografia, que nos apresenta o calor e o frio das estações, emoldurando uma Turquia que passa longe dos estereótipos mais caros aos ocidentais. Com inúmeros closes que valorizam especialmente o rosto de Ebru Ceylan, o diretor escava o que se esconde nas cavernas soturnas dos sentimentos parcialmente soterrados ou resguardados do casal. No festival de Berlim, onde foi exibido em competição em 2006, Climas venceu em algumas categorias, como a de melhor diretor, além de ter sido laureado em Cannes e em Istambul. Reconhecimentos que corroboram para assinalar esta como uma das mais interessantes e reverberantes análises do diário de um crise de casal já oferecidos pelo cinema eurasiático contemporâneo.
5 de abr. de 2011
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