O subgênero dos filmes de serial killers obteve uma adição de peso à sua galeria com o lançamento de Zodíaco (Zodiac, 2007). O filme de David Fincher é um dos exemplares mais interessantes sobre o tema que o cinema recente pôde realizar. Nas mãos do diretor de clássicos modernos como Seven – Os sete crimes capitais (Seven, 1997) e Clube da luta (Fight club, 1999), a história real do assassino que aterrorizou São Francisco nos idos da década de 60 é mais do que simplesmente a história da investigação de um criminoso. Zodíaco foca suas lentes nas vidas de três homens que, de alguma maneira, têm suas trajetórias individuais interligadas com a série de crimes cometidas pelo homem cujo codinome dá título ao longa-metragem. O primeiro deles é Robert Graysmith (Jake Gylenhaal), um cartunista que logo se interessa pelos crimes, e passa a trabalhar em prol da descoberta da verdade oculta por trás de seus delitos. O segundo é David Toschi (Mark Ruffalo, em interpretação notável), um inspetor que acompanha de perto as investigações. O terceiro é Paul Avery (Robert Downey Jr.), um jornalista do San Francisco Chronicles, que passa a seguir cada minuto do que está sendo procurado a respeito dos crimes.
Com o passar do tempo, Robert, David e Paul terão suas vidas consumidas pela necessidade de chegarem à verdade, custe o que custar. É então que Zodíaco mostra seu propósito: entender de que maneira esses três homens foram sendo afetados pelas investigações relativas ao delinquente. Não há mais vida para eles além dos limites do inquérito para a elucidação da identidade do assassino. Essa busca frenética, portanto, será a chave para a derrocada pessoal dos “protagonistas”, por assim dizer. Tudo começa, na verdade, com o envio de três cartas ao jornal citado, todas escritas pelo mesmo remetente. Essas cartas avisam acerca da morte de três pessoas nos próximos dias, isto é, contêm a confissão de um assassino sobre seus crimes. Os dados contidos nas cartas só poderiam ser compartilhados entre a Polícia e o delinquente, e eram uma espécie de código que, ao ser decifrado, revelaria a identidade do assassino. A exigência dele é de que suas cartas fossem publicadas, sob pena de haver mais assassinatos além daqueles sobre os quais ele informara.
Fincher aposta suas fichas em um filme lento e introspectivo, muito mais focado no aspecto psicológico de seus personagens. Zodíaco é, antes de mais nada, um olhar obtuso sobre as interferências de um crime na vidas de Robert, Paul e David. Aqueles homens nunca mais serão os mesmos depois de 1º de agosto de 1969. Robert é quem dá o primeiro grande passo no caso, ao descobrir que a intenção oculta da mensagem do criminoso é uma referência ao filme Zaroff, o caçador de vidas (The most dangerous game, 1932). No longa, três náufragos encontram um conde em uma pequena ilha que lhes oferece guarida, mas encobre seu instinto assassino.
Esse diálogo com uma obra do terror é apenas a ponta de um iceberg intrincado, que irá revelar ao longo dos anos cada vez mais horror e desespero. O filme apresenta a busca insana de muita gente por alguns instantes de notoriedade, entregando-se à Polícia e fazendo-se passar pelo criminoso. Os próprios homens envolvidos na investigação acabam se tornando celebridades instantâneas, tamanho o interesse que os crimes despertam.
Zodíaco é a forma pela qual Fincher espia o fascínio do ser humano pelo crime, especialmente no contexto da população dos EUA, cenário absoluto da história. É atordoante saber que muitos dos elementos presentes na trama, bem como a trama em si aconteceram realmente. Significa dizer que a própria realidade serviu de matéria-prima para a construção de uma obra que instiga os sentidos para a descoberta de uma verdade que jamais se mostra por inteiro. O diretor se filia a uma tradição de filmes que não exibem como preocupação fundamental o esclarecimento do culpado pelos crimes, mas em estudar as repercussões que eles podem causar. À semelhança de Assassinato em Gosford Park (Gosford Park, 2001) e Caché (idem, 2005), que trazem um crime que não é solucionado – ao menos não de modo explícito – em Zodíaco também não é essencial saber quem está por trás das mortes que vão se sucedendo ao longo dos anos. O filme é o primeiro trabalho de Fincher depois de O quarto do pânico (The room of panic, 2002), suspense protagonizado por Jodie Foster. O diretor levou um longo tempo na sala de edição para suprimir 15 minutos da narrativa original, um dado que atesta seu perfeccionismo e sua precaução para manter a integridade do texto em que se baseou. O tempo, aliás, transcorre muito mais pelo mecanismo do psicológico que do cronológico em Zodíaco. Quando nos damos conta, vários anos já se passaram.
Os desempenhos do trio de atores principais merecem ser comentados, já que todos oferecem interpretações dignas de serem premiadas. Cada qual à sua maneira, eles personificam a loucura e a desorientação decorrente do processo de acompanhamento do tal Zodíaco, que sempre se mostra um passo à frente dos investigadores. Gylenhaal encarna um personagem bastante maduro, coroando uma fase de bons trabalhos que ele iniciara com o pouco visto Vida que segue (Moonlight mile, 2002), filme pessoal de Brad Silberling, além do estimado O segredo de Brokeback Mountain (Brokeback Mountain, 2005). Na pele do cartunista cujo trabalho foi a grande base para a escrita do livro no qual o filme é baseado, ele exibe um controle notável da transformação por que o personagem passa. Ruffalo é outro que contribui muito para o andamento do filme, vivendo um papel denso e distante de algumas bobagens cometidas por ele em sua carreira – vide o exemplo de Voando alto (A view from the top, 2003) – e mais próximo da beleza de um título como Minha vida sem mim (Mi vida sin mi, 2003). Sua performance é um belo argumento para contrariar seus detratores, que o acusam de apatia e canastrice. E o que dizer de Robert Downey Jr., que dá vida à exasperação em forma de gente com seu Paul, sendo o mais devastado dos três pelas consequências da análise exaustiva dos crimes.
Um dos dados curiosos a respeito do filme é que seu roteirista, Shane Salerno, teve preferência na compra dos direitos do livro. Tanto ele quanto o verdadeiro Graysmith trabalharam na escrita do roteiro durante anos, até que as negociações pela compra dos direitos chegassem ao fim. Tamanho afinco na execução desse trabalho só poderia resultar em um texto primoroso, de condução impecável. O filme, aliás, não é o primeiro sobre o caso. Os anteriores foram The Zodiac killer (idem, 1971) e O Zodíaco (The Zodiac, 2005), sendo este último um telefilme de pouca repercussão. No elenco de ambos os filmes – o de Fincher e esse filme para a TV -, há em comum a presença de Philip Baker Hall no elenco, interpretando personagens distintos em cada um. No filme desta crítica, ele é Sherwood Morrill, enquanto no filme televisivo ele dá vida a Frank Perkins, ambos peças importantes das investigações. Melvin Bell, por sua vez, quase foi parar nas mãos de Gary Oldman, mas acabou ficando a cargo de Brian Cox, em atuação irretocável.
Enfim, Zodíaco gasta suas mais de duas horas de duração seguindo a trilha deixada pelo assassino que dá nome ao longa, assim como se encarrega de analisar até que ponto três pessoas comuns podem ser afetadas por um criminoso que instaurou o pavor coletivo. Fincher encara aquela realidade com um olhar algo distante, como se estivesse apenas interessado em documentar os eventos tal e qual aconteceram, sem se comprometer. Mas acaba nos ensinando que quem apenas observa também se compromete até a medula, por sua participação, ainda que passiva, no que está sucedendo. Tudo sempre encaminhado por um timing excelente, sublinhado pontualmente pela música assinada por David Shire, composta de canções instrumentais que conferem um atmosfera soturna ao filme. E a grande conclusão a que se chega com Zodíaco é a de que a verdade se deixa perseguir, mas não necessariamente se permite alcançar.
13 de abr. de 2011
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário