12 de abr. de 2011
A reflexão histórica no cinema de A leste de Bucareste
Auxiliado por uma onda recente de prestígio, o cinema romeno é responsável pela entrega de A leste de Bucareste (A fost sau n-a fost?, 2006), longa-metragem de estreia de Corneliu Porumboiu que chegou aos cinemas brasileiros em 2007. Esse primeiro filme da carreira do diretor demonstra que sua intenção mais explícita é propor um debate de fundamentação histórica sobre a participação ou não de uma pequena cidade na série de eventos que levou à queda do ditador Nicolae Ceausescu, um dos episódios mais lembrados da história recente da Romênia. A propósito, esse momento histórico tem sido uma temática recorrente nos filmes recentes oriundos daquele país, dada a força de sua ressonância.
Porumboiu lança as sementes da discussão de forma singular, sem qualquer pressa de iniciar um debate propriamente dito. A maneira pela qual ele se inclina a tratar dos ecos da morte do ditador pode soar cansativa ou distante, mas é uma escolha legítima e digna de atenção. O cenário do filme é o Natal de 2005, data do 16º aniversário da revolução que pôs fim ao regime comunista impresso por Ceausescu. Sua execução ocorreu, portanto, em 25 de dezembro de 1989. A grande questão a ser debatida – se a cidade mostrada no filme teve ou não participação no evento – é analisada por meio de três personagens cujas trajetórias já estão previamente entrecruzadas. São eles: Manescu (Ion Sapdaru), um professor de História, Piscoci (Mircea Andreescu), um velho aposentado, e Virgil Jderescu (Teodor Corban), um apresentador de TV.
Cada um deles surge na tela em tempos diferentes, sendo apresentados pacientemente pela câmera do diretor, que se utiliza intensamente dos tempos mortos, potencializando o aspecto contemplativo de uma trama enxuta, que concentra seu enredo em apenas 89 minutos. Porumboiu oferece uma mescla de reflexão histórica com os conflitos individuais dos protagonistas, homens simples com questões da vida prática para solucionar, e que se veem, quase repentinamente, diante de uma câmera, para ponderar sobre um evento acerca do qual ainda há o que dizer. A narrativa de A leste de Bucareste se concentra na véspera da exibição do programa de debates apresentado por Virgil, e em como ele e seus convidados vão levando a vida paralelamente aos preparativos de suas respectivas participações. Virgil é um homem solitário que realiza suas atividades cotidianas quase no piloto automático, sendo auxiliado em tudo que faz por uma espécie de assessora. Manescu parece sofrer do mesmo mal, atendo-se à sua participação no programa como último signo de sua dignidade. O velho Piscoci, por sua vez, parece ser o mais bem-resolvido do trio, mas também apresenta suas vacâncias.
A leste de Bucareste, definitivamente, não é um filme de mil acontecimentos por minuto. Na verdade, Porumboiu demonstra um interesse em se aprofundar nas realidades particulares daqueles homens. Para isso, ele se utiliza de um episódio de repercussão nacional, que filtra para a vivência interior do trio. Por esse trabalho, o diretor levou a Câmera de Ouro em Cannes, um prêmio especialmente destinado a cineastas em seu primeiro trabalho. De fato, é uma estreia alvissareira, por meio da qual ele mostra que está disposto a refinar a sétima arte como plataforma para a reflexão, executando tal tarefa com simplicidade e esmero. Tanto no conteúdo como na forma, o realizador chama a atenção, e dialoga com uma linhagem de diretores que soube se utilizar dos silêncios da narrativa, ainda que com propósitos diversos, como é o caso de Michelangelo Antonioni, Ingmar Bergman e Aleksandr Sokurov, para citar um exemplo contemporâneo.
O ápice da trama, por assim dizer, é o programa de TV comandado por Virgil. Ali concentra-se a discussão sobre o fato histórico central apontado pelos personagens e a existência ou não da participação da comunidade local no evento. Não por acaso, a tradução do título original do filme é dada no diálogo entre os protagonistas durante o programa: “houve ou não houve?”, no sentido de que se busca desvendar se aconteceu ou não uma revolução naquele lugar. As tentativas de responder à questão por parte de Manescu e Piscoci são comoventes, mas logo uma espectadora que participa do programa ao vivo começa a colocar em xeque a credibilidade de Manescu, que afirma ter estado presente na praça principal da cidade no Natal de 1989, fato que ela nega por dizer que estava lá e não o viu. Manescu insiste em dizer que participou da revolução, mesmo diante da insistente negativa da mulher, enquanto Piscoci permanece apenas ouvindo, para só mais tarde fazer suas colocações a respeito do fato. No título em português, evidencia-se a posição geográfica ocupada pela cidade retratada no filme, a alguns quilômetros da capital romena. A pequena cidade se chama Timisoara, e seu aspecto é de uma localidade desalentada, com uma população que não demonstra grandes expectativas em relação à vida e ao porvir. O filme nos traz uma Romênia maltratada, que ainda respira um ar de crise, com ruas desertas, gente simples que segue resignada e uma necessidade de superação da própria história urgente.
O diretor voltaria a praticar um cinema de forte teor reflexivo em seu segundo filme, Polícia, adjetivo (Politist, adjectiv, 2010), no qual também praticamente abre mão dos diálogos para investir na contemplação e se colocar no lugar dos olhos do protagonista. Ambos os filmes são a prova de que Porumboiu está disposto a seguir oferecendo uma abordagem exumatória de temas que interessam ao cenário romeno, mas que também podem ser estendidos para uma realidade mais globalizante. Afinal, os conflitos vividos pelos moradores de Timisoara podem ser adaptados para qualquer cidade do mundo, bem como a dúvida que paira sobre o homem da lei de Polícia, adjetivo. Em A leste de Bucareste, o dado concreto que suscita a dúvida levantada pelo programa de Virgil é o horário em que a revolução aconteceu. A televisão romena transmitiu o fato às 12h08min, quando estavam acontecendo os protestos para a deposição de Ceausescu. A essa hora, não havia uma pessoa sequer na praça da cidadezinha. Se apareceu alguém somente após esse horário, então não houve qualquer participação da cidade na revolução, apenas na festa da derrubada.
Essa questão mexe profundamente com os brios do povo local, e eleva a discussão para um patamar de intensa discussão. Na verdade, Porumboiu acaba por deflagrar através daquele programa fictício um estudo sobre as veias abertas da Romênia, bem como de todo o leste europeu, e nos aproxima um pouco mais de um país cujo idioma oficial compartilha conosco sua origem: o latim. A direção de atores de A leste de Bucareste é eficiente, e o roteiro se encarrega de introduzir pequenas rodelas de fina ironia, destiladas nas falas do trio de protagonistas, cada qual ao seu modo. Aqueles homens são totalmente palpáveis, e suas angústias se traduzem na forma como procuram se impor para mascará-las, e inibir a profusão de uma dor que está mais em seus olhares que em seus gestos mal ajambrados. Se no primeiro terço do filme as lentes da câmera, uma cúmplice notável do diretor, estão posicionadas a uma distância considerável de seus personagens, quando o debate toma conta da trama elas apresentam closes marcantes das faces daqueles homens, que exalam uma séria ausência de perspectivas. Esse aspecto do filme evidencia o rigor quase matemático com que o diretor o conduz, sem que, entretanto, seus protagonistas sejam encarados como meros títeres da História, entidade viva e fascinante que cobra seus ônus como faceta implacável do tempo que é e sempre será.
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