28 de abr. de 2011

Má educação, um retrato marcante da iconoclastia

Normalmente, o cinema praticado por Pedro Almodóvar é associado ao afloramento da personalidade feminina, que invade todos os espaços oferecidos por ele, constituindo retratos ora afetuosos, ora denunciatórios da instabilidade e do alto grau de complexidade de suas representantes. Todavia, o diretor decidiu romper com essa característica essencial de sua obra ao dirigir Má educação (La mala educación, 2004). O filme é um retrato acurado do universo masculino, de forte carga homoerótica, encabeçado pelo protagonismo de Gael García Bernal, intérprete de Ignacio Rodriguez e, mais à frente, de outro(s) personagem(ns). Sua trajetória é o fio condutor de uma narrativa que se debruça sobre as questões mais particulares do âmbito dos homens e também faz uma homenagem ao cinema, tendência que vem sendo seguida por Almodóvar em seus últimos filmes.

É a paixão pelo cinema que vai mover as ações dos personagens principais do filme, que exige atenção redobrada dos espectador, por conta de sua narrativa que apresenta idas e vindas no tempo e que brinca bastante com a noção de intérprete e de personagem. Bernal é um dos que mais demonstra essa capacidade de mimetismo, aparecendo inicialmente para o público como Ignacio, para se transmutar dentro de si mesmo em personas diversas, atraindo a atenção do público para cada um de seus passos. Sua primeira aparição em cena é em uma visita a Enrique (Fele Martínez), que logo é identificado como um querido amigo de infância de Ignacio, que o procura para relembrar episódios passados de sua vida. Esse reencontro que se dá depois de muitos anos, e suscita o início de uma narrativa em retrocesso, que transporta a ação para o tempo em que Ignacio e Enrique eram meninos que estudavam em um rígido colégio de padres. Ali, eles descobriram o carinho, o amor e a culpa, e jamais voltaram a ser o que eram.
Almodóvar examina as consequência de um abuso sexual sofrido pelos dois amigos nos tempos de colégio, e como eles transformaram o fato em fonte de inspiração para um filme, que é a proposta feita por Ignacio a Enrique assim que eles se reencontram. Seguindo essa estrutura, o diretor aponta suas lentes para uma crítica ferrenha à Igreja Católica como instituição da hipocrisia, não deixando de contar uma história de amor e de vontade sublimada em paralelo. A verve iconoclasta de Almodóvar nunca esteve tão reverberante como nesse filme, que não hesita em trazer à tona tudo o que a fachada de um colégio de padres. Inicialmente, situa sua trama na Madri da década de 80, para incorrer em duas décadas anteriores e expurgar o que teriam sido as vivências daqueles dois homens separados pelo transcorrer do tempo.
É bastante notável a presença débil do sexo feminino em Má educação. É quase uma regra do cinema almodovariano trazer em destaque a figura das mulheres, vide os exemplos de Tudo sobre minha mãe (Todo sobre mi madre, 1999) e Fale com ela (Hable con ella, 2002), para citar títulos mais recentes. O filme em questão também vale pela inovação em termos de seus trabalhos, além de lidar com o discurso metalinguístico de modo encantador. E essa lida se materializa no bloqueio criativo de Enrique, que não dá conta de escrever um roteiro para filmar, até que recebe a tal visita de Ignacio, com uma sugestão de texto que oferece uma mistura de ficção com toques de realidade, por mencionar a questão do abuso sexual da infância dos amigos. Mas, na verdade, esse é apenas o ponto de partida de uma trama que é assinalada por reviravoltas, e comprova o talento do realizador espanhol como um exumador de feridas abertas, capaz de abarcar uma série de tópicos para discussão ser perder o fio da meada. A fotografia colorida, outro aspecto que costuma se destacar em seus filmes, aparece em Má educação com grande força, mas também com discrição suficiente para não chamar mais a atenção do público que a trama em si.

Na verdade, o filme é mais um exemplar de um estilo mais contido que Almodóvar vem adotando nos últimos anos. Essa fase mais “comportada” se iniciou com A flor do meu segredo (La flor de mi segredo, 1995), em que o cineasta abriu mão das cores berrantes e de personagens descaradamente espalhafatosos para se concentrar em tramas mais maduras. Não significa dizer, contudo, que o teor crítico de seu cinema, bem como seu estilo provocador, tenham sido abandonados. Muito pelo contrário, eles continuam presentes com toda a vivacidade, mas, agora, envoltas em uma atmosfera mais requintada, que deixa seu cinema mais acessível ao público, mas não necessariamente mais fácil. É notável o trabalho que composição que os personagens exigem dos atores, e Bernal, certamente, é um dos que mais precisou se adequar ao perfil de seu Ignacio, que, em dado momento da narrativa, surge como outro, e depois como um terceiro – um dado que é melhor compreendido ao se assistir ao filme. Ele está longe de ser apenas um ator de bela estampa, e demonstra maturidade e convicção dando vida a um homem atormentado pela própria consciência, que dá vazão aos seus desejos de forma impetuosa e anticonvencional.Bernal tem em Martinez um ótimo parceiro de cena, que faz jus à escalação e contracena de forma marcante com seu colega. O ator ainda é desconhecido do grande público, mas não é um iniciante. Este é seu segundo trabalho consecutivo com Almodóvar, já que também atuou em Fale com ela.
O diretor também volta a trabalhar com Javier Cámara, um dos atores mais recorrentes de sua filmografia recente, e que, aqui, exerce um papel de coadjuvante, mas de importância capital para o andamento da narrativa. Em todos os trabalhos com o diretor, Cámara dá vida a personagens de sexualidade dúbia, mas nenhum é igual ao outro. Um rápido cotejo entre os tipos que ele viveu em Tudo sobre minha mãe, Fale com ela e neste Má educação permite comprovar a afirmativa, e compreender a versatilidade do ator para transitar no universo algo bizarro criado por Almodóvar a cada nova película. Ele está perfeitamente adequado a esse estilo, e contribui bastante para o êxito da empreitada do diretor de contar uma história de contornos homoafetivos. É polêmica das grandes, mas não é necessário concordar com o ponto de vista exposto pelo diretor. Como cinema e como reflexão, o filme tem grande valor, e merece ser conferido com olhos atentos. Principalmente depois de certa altura de seu enredo, já que Almodóvar oferece uma radical alteração na percepção que o espectador tem no início do filme. Quando se está habituado a uma determinada configuração na narrativa, as convicções simplesmente se desfazem, e comprovam a capacidade de Almodóvar de surpreender e não estar preocupado em facilitar o entendimento de sua obra, que é sempre prolífica, anárquica e multifacetada.

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