29 de mar. de 2011

A vida dos peixes, um achado sobre o tempo que se esvai

Conhecido do público brasileiro por seu tórrido Na cama (En la cama, 2005), Matias Bize é daqueles cineastas que faz da palavra o seu reino. Essa característica se traduz em filmes assinalados por uma verborragia intensa, que caminha em contrapartida a ações mirabolantes. Por isso, seu tipo de cinema está muito mais atrelado a questões íntimas e hiper subjetivas, que repelem as grandes massas de espectadores, mais afeitas ao senso comum. Não se trata de uma crítica, mas de uma constatação sobre uma escolha que é legítima. A escolha de Bize é pela manifestação plurissignificativa da palavra, numa composição de estilo que ele vem depurando filme após filme. Seu começo se deu no último ano da década retrasada, com o inédito no Brasil La gente está esperando (idem, 2000), um trabalho com peculiaridades próprias de um diretor iniciático.

A carreira de Bize prosseguiu com Sábado (idem, 2002), no qual se utilizou do trabalhoso recurso de filmar toda a trama em um único plano-sequência, expediente igualmente adotado pelo russo Aleksandr Sokúrov no mesmo ano, quando dirigiu Arca russa (Russki Kovtcheg, 2002), sobre uma visita ao Museu Hermitage. A estréia mundial de Sábado, filmado exatamente num sábado, foi no festival de cinema de Mannheim-Heidelberg, na Alemanha, de onde saiu vitorioso, com quatro prêmios, incluindo o prêmio Rainer Werner Fassbinder. E tamanho sucesso se deu para uma película de apenas 65 minutos de duração. Seu filme seguinte foi o instigante Na cama, que foi exibido no festival do Rio de 2006, e obteve uma boa repercussão entre público e crítica ao narrar, com enxutez invejável, a (im)possível história de amor entre um homem e uma mulher confinados por uma noite inteira em um quarto de motel, entre muita conversa e muito sexo. Depois, Bize dirigiu Jogo de verão (Juego de verano, 2005), que não teve vez no circuito comercial brasileiro. No mesmo ano, trouxe à existência dois pequenos filmes, intitulados Llamando (idem, 2005) e Llamando ficción (idem, 2005). Então, dirigiu O bom de chorar (Lo bueno de llorar, 2006), no qual deixou seu Chile natal para se aventurar pelas ruas de Barcelona e contar a história de desapego de um casal em longa discussão de relação antes do fim definitivo. O filme também foi exibido no festival do Rio, em sua edição de 2007, mas não ganhou a chance de estar em cartaz posteriormente.
Por fim, chegamos ao recente A vida dos peixes (La vida de los peces, 2010), em que Bize revisita sua temática predileta: as incongruências que assinalam os relacionamentos amorosos. Para dar conta de narrar mais um conto moderno sobre o assunto, ele recrutou a dupla de atores Blanca Lewin, com quem já havia trabalhado em Na cama, e Santiago Cabrera, que atuou em filmes como Haven (idem, 2004) e Amor e outros desastres (Love and other disasters, 2006), no qual deu vida a um italiano. Eles são os protagonistas absolutos de uma trama que nos apresenta a vida conturbada de Andrés (Cabrera), um jornalista que vive há 10 anos em Berlim, por conta de seu trabalho com notícias esportivas. Depois de tanto tempo longe do solo chileno, ele decide retornar ao seu país natal, disposto a rever amigos com quem não vinha mantendo contato.
A sensação que acompanhará Andrés em todo o tempo de sua permanência no Chile será a de deslocamento. À medida que vai reencontrando pessoas que fizeram parte de sua trajetória, ele vai se certificando de que o tempo em que vivia harmonicamente com elas já passou, e que essa é uma realidade patente e irreversível. Andrés está em uma festa, como logo o roteiro escrito por Matías Bize em parceria com Julio Rojas nos indica. Não se sabe ao certo quem é o aniversariante, e nem mesmo interessa à narrativa essa afirmação. Como fizera em seus trabalhos pregressos – Na cama e O bom de chorar – , o diretor circunscreve a ação de A vida dos peixes a um único espaço: a festa na casa de um dos amigos de Andrés. É ali que o personagem vai rever Beatriz (Lewin), a mulher que mais mexeu com seu coração enquanto ele habitava sua terra natal. Em algumas conversas francas e alternadas com Beatriz, Andrés vai perceber que o amor que eles viveram no passado não pode mais voltar a ser, e que grande parte da motivação dela para pôr fim a tudo foi a personalidade egoísta do jornalista, algo que vai ficando mais claro para o público através de outros diálogos que o protagonista trava durante a ocasião festiva.
Enquanto circula pelos diversos ambientes daquele aniversário, ele revê amigos com quem mantinha uma relação de extrema cumplicidade, que acabou sendo perdida com o passar dos anos. Nesse sentido, A vida dos peixes se revela como um eficiente e inteligente ensaio sobre o avançar do tempo, e de inúmeras consequências que ele pode trazer consigo. Bize emprega uma estética simples e uma composição de planos minimalistas, livrando-se de possíveis gorduras no enredo e chamando a atenção para o que se passa com os personagens a partir do que eles têm a dizer. O cineasta de 31 anos exibe uma maturidade admirável na condução de seu filme, e imprime novamente sua estética particular, importando-se menos com o cenário e mais com os personagens. No caso desse filme, há que se mencionar o apoio dado pela fotografia em tons azulados, que faz alusão aos peixes do aquário da casa do aniversariante o tempo todo. Andrés discursa longamente com Beatriz e com vários de seus amigos do passado, assim como dialoga com os filhos de um desses amigos e com a filha e a amiga da filha de um desses amigos, fomentando no público um desejo de conhecê-lo cada vez mais por aquilo que ele vai revelando de sua personalidade.

Em sua escolha por valorizar os diálogos, Bize se aproxima da verborragia de Eric Rohmer, cineasta francês que sempre soube fazer concessões aos longos debates entre os personagens, abdicando de uma ação que corre pelos fotogramas. A vida dos peixes é ao mesmo tempo, autoral e despojado, e traça um painel comovente das instâncias de mudança que afetam a curvatura sempre sinuosa que se observa ao se investigar o crescimento de alguém como ser humano. Andrés acaba expondo seu lado frágil cada vez que fala mais um pouco com Beatriz, que já não é capaz de corresponder ao amor que ele acha que ainda sente por ela. Sua vida percorreu outros caminhos, ela subiu outros degraus, e esse movimento dissonante com relação a ele só serviu para acentuar diferenças que outrora já haviam se manifestado entre eles. Nas entrelinhas dessas conversas entre o ex-casal, Bize discursa sobre a falibilidade a que muitos relacionamentos nascem condenados, e essa constatação é feita como quem apenas afirma a respeito do estado das coisas.
De certa forma, pode-se afirmar que o realizador chileno conclui aqui a gradação de romances que iniciara com Na cama. Nesse, havia um quase casal, em O bom de chorar havia um casal se desfazendo, até que em A vida dos peixes o casal se desfez de fato. Como cada fase de uma relação pede um retrato, Bize construiu três filmes diferentes, cada um com sua independência e seu valor próprio. Andrés voltou a Santiago apenas na tentativa de podar algumas arestas que havia deixado, para que pudesse se instalar em solo berlinense em definitivo. Portanto, sua longa jornada noite adentro naquela festividade acaba sendo uma ocasião de reavaliação de sua trajetória até ali, e possibilidade de entendimento de que essência e aparência podem caminhar separadas, mas se relacionam de modo dicotômico. O filme foi premiado com O Goya de melhor filme estrangeiro falado em espanhol fora da Espanha, um reconhecimento merecido para uma obra de embalagem e enredo simples que se desdobra em um terreno fértil em aberturas para discussão. A trilha sonora é outro elemento que arrebata em A vida dos peixes, especialmente na sequência em que Andrés vai até a sala da casa, em que várias pessoas estão reunidas e um dos convidados toca uma balada triste com uma bela e desalentada voz. Esse momento do filme, que ocorre quando sua duração está em cerca de 30 minutos, sintetiza a grande perseguição do cinema de Matías Bize: a impossibilidade de uma sintonia profunda entre duas pessoas, por conta da inevitável condenação à solidão por que todos sofremos.

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