12 de mar. de 2011

As pequenas maldades do coração em Grandes esperanças

O diretor mexicano Alfonso Cuarón ofereceu uma delicada adaptação do romance de Charles Dickens quando filmou Grandes esperanças (Great expectations, 1997), um de seus primeiros trabalhos no cinema. O filme é um grande achado em termos de narrativa e elenco, e fala ao coração com uma trama emocionante e envolvente. Trata-se da história de vida de Finnegan Bell, um menino taciturno e retraído que vê nascer seu encanto por uma garotinha tão linda quanto cruel com seus sentimentos, a gélida Estella. Ela é sobrinha da excêntrica Nora Dinsmoor (Anne Bancroft), que a cria desde que seus pais faleceram. Uma vez tenho conhecido Estella, em uma ida com seu tio Joe (Chris Cooper) à casa da Nora, Paradiso Perduto, Finnegan, carinhosamente chamado Finn, não conseguirá mais desvencilhar totalmente a sua trajetória da dela.

Com essa premissa nas mãos, Cuarón assina a direção de uma tocante história de amor, com seus descaminhos e reviravoltas surpreendentes para mexer com a percepção do público ávido de contos afetivos. Grandes esperanças vai se revelando, logo em seus primeiros fotogramas, como um filme que versa sobre as pequenas maldades do coração, que se mostram em vários momentos, como quando insiste em amar mesmo diante da ausência de reciprocidade, ou de sua explicitação. É exatamente esse o mal de que sofre Finn ao longo de seu crescimento. Ele se apaixona por Estella, mas ela demonstra não corresponder a esse sentimento, embora torture o garoto com seus jogos de sedução desde a infância. E assim continua sendo depois que eles se tornam mais velhos, e passam a ser interpretados por Ethan Hawke e Gwyneth Paltrow.
A partir dessa fase do filme, fica ainda mais claro que Estella se diverte em brincar com os sentimentos de Finn, algo de que ele já tinha sido avisado quando a conhecera, pela boca da própria tia da jovem. Ela dissera que aquela menina partiria o seu coração, mas o aviso foi inútil diante do amor que brotou em Finn. Por conta desse amor, o protagonista passará sua vida às portas da esperança por conquistar definitivamente o coração da mulher que tirou seu sossego, e fazer do espectador um cúmplice incondicional de sua jornada de teor, por vezes, autocomiseratório. Finn descobre sua arte, e passa a desenvolvê-la, mas o destino – ou seria o acaso? – sempre se encarrega de aproximá-lo de Estella. Mesmo depois de se tornar um artista plástico reconhecido, ele guarda muito do ar de menino desamparado que ostentava no início da narrativa.
É indispensável comentar que a dupla de protagonistas é encarnada com muito talento pelos atores, que oferecem a densidade necessárias para seus papéis, marcados pela alta dramaticidade. Hawke é um ator que consegue exibir uma naturalidade admirável em cena, e comove a plateia com seu desalento pelo comportamento sempre inatingível de sua amada que, mais à frente, tornar-se-á sua amante. Ele vive Finn a partir da sua fase adolescente, e convence tanto como um rapaz de 16 ou 17 anos quanto como um jovem adulto na casa dos 30. Paltrow, por sua vez, esbanja fleuma e charme na pele de Estella, mexendo com o imaginário do público e perturbando Finn a cada novo encontro que se dá entre eles. Ela é uma atriz subestimada, que recebe uma hostilidade acima do aceitável por conta de seus trabalhos. Seu trabalho de composição demonstra esmero, e é fácil se apaixonar por ela, graças à maneira com que o roteiro encaminha os acontecimentos para serem observados sob a ótica do protagonista.
Grandes esperanças também conta com um ótimo elenco de coadjuvantes, que auxiliam no movimento progressivo da narrativa. Anne Bancroft está ótima como Nora, a tia extravagante de Estella, que se mostra como uma senhora um tanto insana, com suas danças ao som de boleros latino-americanos, como Besame mucho. Sua presença no filme se encerra com a passagem de tempo que mostra Finn e Estella adultos, mas é suficientemente marcante para que seja mencionada e elogiada. Depois desse, ela encarou poucos trabalhos, entre os quais está Doce trapaça (Heartbreakers, 2001), uma comédia inofensiva em que contracena com Sigourney Weaver. Outro que também está em ótima forma é Robert De Niro, que dá vida a um homem misterioso, de quem Finn se aproxima quando ainda é criança. Ele está saindo da cadeia, e pede ajuda ao protagonista para sair de onde está e reiniciar sua vida. Finn, com sua boa fé, estende a mão para aquele homem, mesmo sem conhecê-lo bem. Também é uma participação curta, mas significativa o bastante para ser recordada.

O filme não é a primeira adaptação do romance de Charles Dickens. Em 1946, David Lean levou o texto pela primeira vez ao celulóide, mantendo o nome original do protagonista, aproximando-se mais do livro. Seu trabalho lhe rendeu 5 indicações ao Oscar de 1948, entre elas a de melhor filme e melhor fotografia em preto e branco, na qual foi vitorioso. Na versão mais recente, dirigida por Cuarón, o filme ganhou m modernidade, com sua trama urbana e seus conflitos mais atualizados. Em vários aspectos, a versão de Cuarón se mostra como uma licença poética, que goza de uma certa autonomia em relação à obra original. Recentemente, noticiou-se que Mike Newell estaria interessado em levar novamente às telas o romance, como parte das comemorações pelo bicentenário de nascimento do escritor, um dos mais adaptados do cinema.
Em outras palavras, a versão de Grandes esperanças de 1997 é um conto moderno sobre as armadilhas do coração, e sobre como o ser humano aprende pouco com o desprezo de quem ama. É como se houvesse um movimento de constante antagonismo de interesses a atitudes entre os amantes, que nunca querem e demonstram a mesma coisa ao mesmo tempo. Estella, por mais que queira se entregar, comporta-se como uma rocha, colocando mel na boca de Finn para, depois, fazer pouco caso dele. O protagonista, por sua vez, cresce na vida, mas guarda muito do olhar dócil que tivera na infância, quando viu pela primeira vez aquela garotinha que despedaçaria o seu coração, e não esconde sua inquietude diante da figura daquela mulher exuberante. Com sua fragilidade, ele é o retrato arquetípico de homens sem acalento, cuja força parece estar atrelada ao contato com outra que o complete.

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