22 de mar. de 2011

A arte como espaço de resistência analisada em O mágico

A animação francesa contemporânea nos presenteou com uma obra cheia de singularidades quando do lançamento de O mágico (L’illusionniste, 2010), o exemplar mais recente da obra ainda pouco extensa de Sylvain Chomet. Em apenas 90 minutos, o espectador mais sensível é transportado para um universo todo particular, cheio de metáforas e representações que caem como uma luva para uma produção que se propõe a analisar as ressonâncias do início do processo de decadência de um tipo de arte, mais especificamente, a magia tradicional. O personagem-título, que não recebe um nome próprio, apenas a alcunha citada, é a ilustração em traços animados de uma era que vem se apagando com grande velocidade nos dias atuais. Seu tipo ora altivo, ora desalentado é uma amostra de como o homem vem deixando de lado sua porção sonhadora, que se encanta com a simplicidade e se deixa levar muito mais pela imaginação que pela imagem.

Em se tratando de uma sociedade imagética como a contemporânea, vale cada vez mais o espetáculo visual, a grandiloquência de cores, formas e pessoas, aliado ao tátil, ao multissensorial. Numa sociedade como essa, um mágico que se apresenta com truques comuns, como o de tirar um coelho da cartola ou um lenço enorme de dentro da sua garganta, não encontra mais guarida. Resta-lhe caminhar a esmo, em busca de lugares onde ainda possa haver apreciadores de seu modo de encantar e embevecer a plateia. Nesse ponto, o filme de Chomet exibe uma faceta desoladora, pois o mágico vaga pelas grandes cidades, assim como pelo interior, sempre sem sucesso de público. Para quem assiste à animação – talhada à moda antiga, algo cada vez mais raro – com olhos saudosistas, no melhor sentido da palavra, surge o sentimento de agonia, por saber que a realidade apontada pelo filme é cada vez mais irreversível. A sede de modernidade, que parece nunca ser aplacada, só faz afastar os homens da arte mais primitiva, ou seja, menos atrelada à tecnologia.
Em O mágico, a única pessoa que ainda demonstra encantamento com a arte do protagonista é uma garotinha chamada Alice, que trabalha em um hotel barato, um dos locais onde aquele homem se hospeda. Nasce ali uma bela amizade, que ultrapassará os limites da convivência circunscrita àquele espaço, levando-o a carregá-la como sua companhia aonde quer que ele for. O surgimento dessa relação amistosa entre Alice e o mágico comprovam que a aura de candura acompanha o filme desde o seu início.
Chomet ainda opta pelo silêncio quase absoluto, ao idealizar uma animação de pouquíssimos diálogos, na qual exatamente a imagem vai chamar a atenção do espectador. Numa atualidade em que o público sente necessidade de ouvir além de ver, o silêncio de O mágico pode soar incômodo. Entretanto, esse índice acaba por cooperar para que a obra seja mais contemplativa, e as imagens falem por si sós. O diretor oferece a chance de entrar em contato com uma atmosfera de brilho e charme que salta aos olhos. E não somente aos olhos infantis, mas de todos aqueles que ainda guardam um pouco de criança dentro de si. Apesar de fazer menção a uma prática que cada vez se circunscreve a um passado, O mágico se revela um filme atemporal, de alcance a todas as faixas etárias.
O filme foi construído com base em um roteiro deixado por Jacques Tati, um dos grandes pilares da cena muda cômica francesa. Uma de suas obras mais famosas é Meu tio (Mon oncle, 1958), uma comédia dramática que achincalha com a modernização exagerada das coisas, que parece automatizar também as pessoas. Em sua carreira, Tati muitas vezes acumulou as funções de diretor, ator e roteirista, e o roteiro de O mágico é sua última colaboração para o cinema. Portanto, a animação também é uma bela homenagem à figura desse profissional, e verifica-se uma grande semelhança entre Tati e o ilusionista em traços tradicionais. O personagem tem um estilo clássico, que remete aos anos 40 e 50, e soa quase como a versão animada de Tati. Chomet, por sua vez, vinha de um jejum de sete anos na direção, já que seu último trabalho havia sido As bicicletas de Belleville (Les triplettes de Belleville, 2003). Comparando os dois filmes, nota-se que o diretor imprime um traço muito marcante às suas obras, como personagens de tipos que são facilmente reconhecíveis como sendo os seus. As bicicletas de Belleville concorreu ao Oscar de melhor animação em 2004, disputando com Irmão urso (Brother bear, 2003) e Procurando Nemo (Finding Nemo, 2003), perdendo para este último. O mágico, por sua vez, também entrou na disputa pela estatueta dourada nessa mesma categoria em 2011, perdendo para a animação inteiramente computadorizada Toy story 3 (idem, 2010). As animações vencedoras em seus respectivos anos têm qualidade inegável, mas o fato de elas terem sido premiadas também parece ser indicador de que a tendência cada vez maior é a de privilégio e de preferências pelas animações produzidas digitalmente, em detrimento de um trabalho mais artesanal.

No mundo ocidental, Chomet encontra um parceiro perfeito no que se refere à resistência à computadorização: Hayao Miyazaki. O diretor japonês, de filmes como A viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no kamikakushi, 2001) e Ponyo – Uma amizade que veio do mar (Gake no ue no Ponyo, 2008), também opta sempre por composições tradicionais de animações, entregando visuais deslumbrantes e tramas lúdicas, que chamam a atenção de crianças e adultos. Tanto Miyazaki quanto Chomet se colocam na posição de ícones da resistência à extinção do modo de produção de animações à moda antiga, e permanecem como alternativas a quem ainda ama ver um filme em desenho animado. E, mais do que isso, ambos demonstram como a arte pode ser concebida como um espaço de resistência contra a barbárie e a bestialização do ser humano. No caso de O mágico, algumas curiosidades interessante merecem ser comentadas. O roteiro original de Tati sofreu algumas alterações, feitas pelo próprio Chomet. A principal delas foi a transferência do cenário da história de Praga para Edinburgo, justificada pelo fato de Chomet ter seu estúdio situado nessa cidade. Outro elemento interessante, que deve chamar a atenção dos mais observadores, é loja de penhores que aparece no filme. Ela se chama Brown and Blair, e é uma nítida referência aos dois últimos primeiros-ministros da Inglaterra.
Em sua caminhada por um ambiente que ainda receba sua arte, o mágico se vê cada vez mais sem espaço, sendo suplantado por bandas de rock que arrastam legiões de fãs escalafobéticas, ávidas de tietar cantores construídos sob medida, com músicas que se servem muito bem para a substanciação de seus conflitos juvenis, sempre descomunais em sua concepção. Em dado momento do filme, o protagonista está uma casa de shows, exatamente atrás do palco, esperando pacientemente a sua hora de começar a se apresentar. Mas essa hora parece não chegar nunca, pois a banda de rock que está no palco canta várias músicas seguidas, dando ao público exatamente o que eles querem: canções vazias que só assinam embaixo de sua maneira de ver o mundo, padronizando até mesmo o sofrimento. É triste ver as várias tentativas do mágico de começar seu show, e, quando ele finalmente consegue, restam apenas uma avó e seu neto na plateia, a quem ele oferece um bom espetáculo, comprometido com a sua arte acima de tudo. Até mesmo Alice, que um dia fora sua maior entusiasta, deixa de ser a menina ingênua do começo, e se torna mais afeita aos bens confiscáveis que ao encanto puro e simples. E o mágico segue sua caminhada cada vez solitária, cônscio de estar indo rumo a um deserto em que não parece haver sequer um oásis.

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