27 de mar. de 2011
O olhar perscrutador que vai além em Janela indiscreta
Lembrado com alta frequência pelos fãs e apontado como um dos maiores clássicos de todos os tempos, Janela indiscreta (Rear window, 1954) faz jus à sua perífrase. Narrado sob o ponto de vista de seu protagonista absoluto, o filme pertence a uma era de Hollywood que já se perdeu, e que, por isso mesmo, chama tanta atenção ao ser evocada por meio desse trabalho. Tudo gira em torno de Jeff (James Stewart), apelido carinhoso de L. B. Jefferies, um repórter intrépido que está temporariamente impedido de exercer seu amado ofício em decorrência de uma fratura na perna. Imobilizado com o gesso e confinado a uma cadeira de rodas, resta-lhe como passatempo a observação constante da janela de seu apartamento.
Logo que o filme começa, a câmera analisa pacientemente o que os olhos de Jeff podem contemplar, e evidencia a estética um tanto teatral impressa por Hitchcock, o cineasta responsável pela película. Num tempo em que os efeitos visuais ainda eram primitivos, quase mambembes, era preciso recorrer a técnicas mais simplórias para surpreender o espetador, algo que o diretor era perfeitamente capaz de fazer. Depois de uma espécie de sobrevoo pela movimentada vizinhança de Jeff, o espectador é transportado para a sala do apartamento do protagonista, que não perde nada de vista com seu potente binóculo. Ele está habituado a seguir um perfil investigativo, e é exatamente por conta dessa conduta que Jeff encontrará uma fonte de desconfiança bem próxima de sua residência. Essa fonte é um homem que ele acredita ter matado a esposa e escondido o corpo, o que o leva a tentar provar de todo jeito que está com a razão.
Nessa tentativa de provar que está certo, Jeff envolve sua noiva, a estonteante Lisa (Grace Kelly, uma lenda então viva), numa trama de suspense e de voyerismo em que vai concentrar todas as suas forças. É por meio dessa sinopse simples que Hitchcock apresenta ao seu público um filme com roteiro bem azeitado, atuações preciosas e uma montagem acertada, entre vários outros motivos. E, diferentemente do que possa parecer, Janela indiscreta não é feito apenas de suspense. O filme também tem momentos de humor legítimo, especialmente nos diálogos inspirados entre Jeff e Lisa, que tenta dissuadir o noivo de suas investidas contra o vizinho, que pode ser mesmo inocente como ela imagina. Na verdade, a procura de Jeff por algo que esteja fora do lugar é um traço marcante de sua personalidade, talhado com os anos de profissão. Ele sempre fotografou cenas de crimes e situações ou atitudes suspeitas, e isso contribui para que, em suas semanas de ócio, qualquer passo em falso de outras pessoas lhe chame a atenção.
Aos poucos, o protagonista consegue fazer de Lisa a sua parceira de investigação, mesmo que ela continue incrédula quanto a periculosidade do vizinho de seu noivo. Com essa busca pela verdade em que Jeff acredita, muitos acontecimentos, ora estranhos, ora banais, vão se superpondo na trajetória dos personagens, o que acaba por colocar em risco o relacionamento desse casal. Some-se a isso a posura ranzinza exibida por ele em muitas ocasiões, e sua teimosia em comprovar que está certo naquilo que pensa. Hitchcock demonstra, com isso, um domínio do drama e do suspense, alternando-os durante a narrativa, e oferendo razões para o interesse de públicos distintos. A contrução de Janela indiscreta é sobre uma atmosfera claustrofóbica, reforçada o tempo todo pela condição de invalidez passageira vivida por Jeff. Seus amigos e sua empregada também lhe dizem que suas desconfianças são puramente imaginárias, e que ele deveria deixá-las. Mas Jeff é turrão, e não dá o braço a torcer. Por outro lado, o roteiro escrito por John Michael Hayes, a partir do conto de Cornell Woolrich, deixa a interrogação no ar: o vizinho é ou não um criminoso? A dúvida passa a perseguir também o público, que se torna cúmplice do périplo investigativo do protagonista para chegar à verdade por trás das aparências.
Um dos grandes trunfos de Janela indiscreta é a presença de James Stewart em cena. O ator foi simplesmente um dos melhores de sua geração, sempre demontrando versatilidade e talento notáveis. Além disso, Stewart foi um grande colaborador de Hitchcock, figurando entre os seus atores favoritos. Hitchcock o dirigiu em numerosos títulos, entre os quais estão Festim diabólico (Rope, 1948), O homem que sabia demais (The man who knew too much, 1956) e o legendário Um corpo que cai (Vertigo, 1958), todas parcerias bem-sucedidas, que contaram com composições extremamente acertadas do Stewart, que faleceu em 1997, depois de uma carreira profícua que incluiu trabalhos com Joh Ford, Frank Capra e Anthony Mann. Grace Kelly, por sua vez, enche a tela de Janela indiscreta com sua beleza indescritível, quase diáfana, e também com sua capacidade incontestável como atriz. Ela demonstra o talento de uma era que há muito se foi, e que deixa saudades, que só podem ser aplacadas quando se pode assistir a filmes desse tempo.
Durante seus 112 minutos, o filme é um achado em termos de enredo, pois oferece uma trama reflexiva, que brinca com o que pode ser imaginação e com o que pode ser realidade. É quase inevitável não ser levado a concordar com Jeff, já que os desdobramentos da história são filtrados pelo seu olhar, mas Hitchcock não se vale de maniqueísmos, e Stewart constrói um personagem fronteiriço entre a bondade e a implacabilidade. Na sua necessidade de distração, Jeff acabou por se agarrar ao caso que lhe surgiu da janela de sua casa, mesmo que estivesse cometendo um terrível engano. O filme fez escola, servindo de referência para vários diretores que vieram após Hitchcock. Entre os projetos que podem ser citados estão o brasileiro O outro lado da rua (idem, 2004), em que Fernanda Montenegro é a moradora desconfiada, e o italiano A janela da frente (La finestra di fronte, 2004), cuja protagonista se envolve com um vizinho de quem não sabe praticamente nada, e o estadunidense Paranoia (Disturbia, 2007), em que um rapaz em prisão domiciliar vê algo de estranho com seu vizinho. Além desses, Woody Allen fez uma homenagem, ao seu modo, ao estilo de Hitchcock quando filmou Um misterioso assassinato em Manhattan (Manhattan murder mistery, 1993) e se utilizou de um esquema narrativo semelhante ao do Mestre do Suspense, apesar de ter se voltado muito mais para a comédia. Por fim, cabe assegurar que Janela indiscreta merece permanecer inscrito no rol dos grandes filmes de todos os tempos, por suas qualidades mais do que atestadas.
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