18 de mar. de 2011

A adorável busca por dividendos de Trapaceiros


Antes que a última década do século XX se encerrasse, Woody Allen teve tempo de oferecer mais uma deliciosa comédia com suas marcas registradas, cujo resultado atende pelo nome de Trapaceiros (Small time crockers, 2000). O filme é um dos mais ingênuos da fase mais recente da carreira do cineasta, o que não significa dizer que se equipara a produções contemporâneas do arsenal de bobagens que tomou Hollywood de assalto há tempos. Allen sempre encontra um modo de catalisar a ação de seus filmes para um caminho de crítica e reflexão, e isso já um grande motivo para se dar uma chance aos seu filmes.
Trapaceiros tem como fio condutor a jornada hilária de Ray (Allen, em um de seus últimos trabalhos como ator), cujo aposto “O Cérebro” denuncia que há nele uma mente capaz de arquitetar planos sólidos para a obtenção de muitos lucros e dividendos, aquilo de que ele e seus amigos (ou comparsas) têm necessidade. Como o título avisa, Ray é um salteador (é um termo anacrônico, mas não faz mal ressuscitá-lo), e está ladeado por uma dupla de néscios (outro termo anacrônico) que o ajuda nas empreitadas mais inusuais, colocadas em prática para que eles alcancem a tão sonhada entrada na alta sociedade novaiorquina. Quem não gosta nada das trapaças de Ray é sua esposa Frenchy (Tracey Ullman), pois ela sempre repele a investidas do marido em novos “negócios” que poderão render aquilo que o trio de vigaristas tanto deseja. E é com base no argumento que fala de três bandidos que Allen conjuga entretenimento de qualidade e um série de tiradas cheias de inspiração.
O novo plano de Ray parece fadado ao fracasso, e é nele que Frenchy pensa ao saber do que se trata. O gatuno pretende cavar um túnel no subsolo de uma pizzaria recém-fechada, enquanto sua mulher vende biscoitos caseiros para despistar sobre o que acontecerá nos bastidores do estabelecimento. Até que todos entrem em acordo sobre o plano, sobram estratégias de convencimento muito bem inventadas por Ray para que sua mulher participe da idéia, o que acaba acontecendo. É quando vem o primeiro dos grandes achados do filme: o sucesso involuntário dos biscoitos vendidos por Frenchy
que mal consegue dar conta de produzir tantos. O negócio de fachada rende bons dividendos aos sócios, que ganham até mesmo a simpatia de um policial que faz vista grossa para a outra empreitada realizada pelos vigaristas. Em pouco mais de um ano, a trupe estará em ótimas condições financeiras, e Ray e Frenchy terão se tornado um casal de novos ricos.
Utilizando-se do expediente de enriquecimento a curto prazo do casal de protagonistas, Woody Allen propõe uma análise bem-humorada do comportamento dos membros da alta sociedade de Nova York, tendo o seu texto inspirado como arma primordial. Nas pessoas de Ray e Frenchy, o espectador tem a chance de se deparar com a maneira de ver a realidade que muitos pertencentes a essa classe exibe. E isso colabora para que o filme adquira um tom de charge nessa fase, já que muitas das atitudes desse casal ganham vários tons acima da média. O diretor se permite usar com talento a galhofa, de um modo bastante acessível ao grande público. Sem qualquer tom pejorativo, pode-se dizer que Trapaceiros é um dos filmes mais “fáceis” de Allen, que se soma a um filão de obras do diretor em que se inserem títulos como Um misterioso assassinato em Manhattan (Manhattan murder mistery, 1993) e O escorpião de jade (The curse of jade scorpion, 2001), que ele dirigiria no ano seguinte. Não significa, contudo, dizer que Trapaceiros é um filme boboca, nem que seja um longa que se deixa arrastar pela obviedade.
Como de hábito, a direção de atores alleniana é um show à parte, e o elenco de coadjuvantes de Trapaceiros oferece desempenhos dignos de elogios, bem como a parceira de cena do Allen ator. É delicioso acompanhar sua dobradinha com Tracey Ullman em cena, por conta da fluidez e da naturalidade com que ambos se relacionam interpretando marido e mulher. Ullman demonstra uma ótima noção do timing cômico, servindo de complemento ideal para as gags de Allen, uma de suas várias marca registradas. Hugh Grant também não deixa a desejar como um professor ocasional de boas maneiras, que é contratado por Frenchy para auxiliá-la em sua entrada na high society. O ator se sai muito bem na pele de um tipo canalha, interessado apenas no retorno monetário que sua aproximação com essa mulher pode gerar. Ter aceito esse trabalho com o diretor foi uma ótima decisão de Grant, que adiciona uma comédia inteligente e genuinamente divertida ao seu currículo de filmes coroados de indigência.

Apesar de reunir uma série de elementos que são facilmente reconhecíveis como sendo de um filme de Woody Allen, Trapaceiros exibe identidade própria. Está entre um dos maiores sucessos de bilheteria recentes do diretor, e funciona como uma alternativa salutar às produções que mascaram a total falta de propósito com um desfile de piadas infames e vazias. O cineasta não abandona em um só momento o tom piadístico nesse trabalho, mas sempre optando por um estilo apurado, mesmo quando seu discurso aparenta ser apenas simplório. Mesmo dando vida a um ser tão descarado como Ray, Allen consegue despertar a cumplicidade do espectador, que torce para que seus ciclos acasos se encaminhem para um desfecho otimista. Mas cabe lembrar que, mesmo em sua seara de filmes cômicos, Allen não abandona sua porção de pessimismo, ainda que, nesse gênero, essa sua perspectiva de vida se apresente de modo mais latente. O filme em questão está longe de ser um dos melhores da longa carreira do diretor, mas não prescinde de uma boa observação, pois um Allen menos inspirado, como adoram propagar seus entusiastas, ainda é bem mais relevantes que outros diretores em franca “inspiração”.
Ele continua fazendo um cinema orgânico, em que se verifica um notável vococentrismo, isto é, uma ênfase clara na voz e na palavra, talvez uma maneira de dirimir algumas inquietações, compartilhando-as audiovisualmente. Trapaceiros comprova que Allen também sabe trabalhar com a simplicidade, sem abrir mão de ser minimamente reflexivo. O elenco do filme não traz nenhum de seus habitués, mas acrescenta à extensa galeria de atores que já passaram por seus trabalhos nomes bastante interessantes. Cada pequeno instante dessa 0bra exala um misto de frescor com encanto que garante a compenetração do público à sua narrativa, e tornam Trapaceiros mais um tomo da grande coleção de volumes de ensaios sobre o homem e suas numerosas possibilidades.

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