9 de mar. de 2011

Cisne negro, uma imersão no profundo de uma mente aniquilada

Habituado a dirigir filmes que apresentam personagens em situações-limite, Darren Aronofsky dá mais uma prova de que seu cinema pode ser faiscante com Cisne negro (Black swan, 2010). O quinto filme do realizador estadunidense, natural do Brooklyn, é um mergulho profundo e intenso na jornada de enlouquecimento progressivo vivenciada pela bailarina Nina Sayers (Natalie Portman). Ela é o retrato do perfeccionismo, buscando incessantemente provar para si mesma e para todos que a cercam que é capaz de interpretar qualquer papel com sua dança. O filme começa com os ensaios constantes de Nina, e logo o espectador percebe o quão desgastante e férrea é toda aquela ambiência de jovens em busca de aperfeiçoamento. Esses primeiros minutos da narrativa são dotados de uma repetitividade que soa proposital, para que sintamos o cotidiano da protagonista totalmente voltado para sua arte.

Aos poucos, vamos conhecendo a situação-limite em que Nina se encontra: ela faz parte do corpo de baile de uma respeitada companhia de dança, e está se preparando para encenar o famoso balé O lago dos cisnes, cujos personagens principais são o Cisne Branco, o Cisne Negro e Odile, uma ardilosa feiticeira. Nina já demonstrou para seu coreógrafo Thomas (Vincent Cassel) que é capaz de exalar toda a candura e suavidade necessárias para encarnar o Cisne Branco, mas ela quer mais. A grande luta da bailarina é por provar que também pode viver o lado negro da personalidade do Cisne Branco, e interpretar o tal Cisne Negro presente no título do filme. Mas o principal argumento apresentado por Thomas é de que Nina não demonstra com sua dança a sensualidade e a ousadia que são compatíveis com o personagem que ela deseja.
Está iniciada a odisseia particular de Nina, que fará de tudo para provar que pode ter esse personagens nas mãos, mesmo que tudo ao seu redor aponte negativamente para seu êxito na empreitada. Por meio dessa premissa, Aronofsky oferece um pouco mais do seu olhar para pessoas que exageram, de algum modo, em algum aspecto de sua vidas. Nina é o retrato da busca pela autosuperação, e canaliza todas as suas forças para uma rotina extenuante de ensaios e aperfeiçoamento de sua técnica. Aí reside um outro detalhe que compromete sua escolha como intérprete do Cisne Negro: Nina é excessivamente técnica, e não se deixa levar pela dança e pelo caráter sensual e misterioso que cabe ao personagem, na concepção de Thomas. Mas, a exemplo de um Randy “The Ram” Robinson (Mickey Rourke) de O lutador (The wrestler, 2008), ela não mede esforços para apresentar-se apta para abocanhar o papel.
Cisne negro é classificado, por conta de sua narrativa densa e intimista, como um suspense. Porém é, antes de tudo, um drama fortíssimo sobre os limites da mente humana diante da vontade imperiosa de se realizar em uma área da vida. Nina investe pesado em suas tentativas de ser a melhor, e isso resulta em um aprisionamento de sua mente em uma lenta caminhada de ensimesmamento com um ideal. O aspecto espamódico da narrativa é acentuado pela fotografia granulosa de Matthew Libatique, que dá um tratamento em tons acinzentados à imagem, dimensionando o público para o universo acachapante da bailarina. Essa estética de sobressalto evidencia a filiação do longa-metragem a exemplares do chamado cinema de terror psicológico, do qual é exemplo prototípico Repulsa ao sexo (Repulsion, 1965), dirigido por Roman Polanski e protagonizado por Catherine Deneuve, reconhecidamente talentosa na pele de uma mulher horrorizada diante de qualquer experiência de cunho sexual.

Um dos sustentáculos de Cisne negro, aliás, é a atuação hipnótica de Natalie Portman. Poucas vezes a atriz pareceu tão à vontade em um papel, bem como se apresentou madura e espetacularmente sensual em suas feições pseudoangelicais. Apenas em Closer – Perto demais (Closer, 2004) ela ofereceu um desempenho tão despudorado, quando deu vida à sexy Alice, uma stripper que tirou o chão dos personagens de Jude Law e de Clive Owen, seduzindo este último com sua dança. Aqui, ela se utiliza da mesma forma de expressão, e também tem a necessidade de ser sedutora, mas acaba sendo seduzida por Thomas, em uma sequência na qual brinca com a libido adormecida de Nina, podendo levar também o público ao desconforto experimentado pela protagonista. Certamente, é possível e necessário recorrer ao adjetivo lugar-comum “visceral” para classificar a interpretação da atriz, que se entrega a cada minuto de vida de sua personagem para oferecer um desempenho marcado pela completude de talento. A Academia exageradamente, entretanto, entendeu o filme como sendo de Portman, o que resultou em uma única premiação para o filme, que foi a estatueta de melhor atriz. Um belo escorregão que abriu espaço para filmes de calibre muito inferior saírem premiados na noite de 27 de fevereiro de 2010.
Outro que oferece um desempenho notável é Vincent Cassel. Apesar de muitos conceberem sua atuação como canastrona, o ator apresenta muitas qualidades na pele de Thomas, que cumpre com louvor a função de ser um dos algozes da protagonista. É certo que a mente de Nina é sua maior fonte de tormento, mas o coreógrafo da companhia também executa pequenas crueldades com a personagem, levando-a a entrar em declive mais rápido no que tange à sua perda de sanidade. Mesmo soando um pouco desconfortável por atuar em língua inglesa, o ator é certeiro na sua caracterização de homem sedutor e, ao mesmo tempo, ordinário. Seus trabalhos de composição, no entanto, costumam ser subestimados. E ele já chegou até mesmo a se arriscar como lusofalante, quando atuou em À deriva (idem, 2009), sendo dirigido com traquejo por Heitor Dhalia.
O elenco de coadjuvantes é completado pela presença vibrante de Barbara Hershey, impecável na pele de Erica, a mãe de Nina, que foi bailarina como ela, e que mantém uma relação de estranho afeto com a filha, sendo, ao mesmo tempo, sua companheira e sua grande censora. Hershey envelheceu muito mal, e para comprovar o fato basta dar uma olhada para ela em Hannah e suas irmãs (Hannah and her sisters, 1986), no qual sua estampa era muito mais bela a atraente. A construção de sua personagem em Cisne negro permite perceber que ela impede a filha de crescer, e ajuda a manter a porção pueril da personalidade de Nina, além de competir com ela de forma velada, como quem sente recalque por não ter feito sucesso na mesma profissão no passado. Ainda surge na tela a imagem da beleza e do desassossego de Lilly, vivida pela ótima Mila Kunis, que recebeu uma indicação ao Oscar de melhor atriz coadjuvante pelo papel, perdida para Melissa Leo, que concorria por O vencedor (The fighter, 2010). Ela é uma espécie de alter ego mais sombrio de Nina, que consegue imprimir a perfídia requerida pelo Cisne Negro com seu balé faiscante e provocador.

Paulatinamente, a protagonista vai sendo enredada pela atmosfera de sedução que acompanha Lilly, mas o roteiro de Andres Heinz e Mark Heyman, com base em história de Andres Heinz deixa entrever que boa parte do que ocorre entre as duas é fruto da imaginação de Nina, que perde o senso de realidade em sua procura por ser a melhor e a escolhida por Thomas. Winona Ryder é outra que oferece um desempenho memorável como Beth, a bailarina em final de carreira que sai de cena para dar lugar a Nina, e que lhe mostra, como uma espécie de consciência, que sua carreira seguirá para o mesmo final caso ela estenda seu envolvimento com Thomas para além da esfera profissional. Em uma das poucas cenas na qual a personagem aparece, ela ilustra assustadoramente a confusão mental de Nina, furando os olhos e dizendo para si mesma que não é perfeita e nunca será. Paira a dúvida: ela fez ou não aquilo?
Esses e outros vários aspectos contribuem para que Cisne negro se constitua como uma obra singular, acresentando mais uma pérola à carreira de um cineasta que, a exemplo de sua protagonista, está em busca da autossuperação. Uma busca que resulta em uma jovem de mente aniquilada. O filme é um dos melhores de seu tempo, usando a seu favor os elementos técnicos para ambientar o público no processo de bestialização pelo qual Nina vai passando, culminando em uma sequência extasiante na qual ela, de posse de seu tão sonhado personagem, chega propriamente às raias da loucura e encena o famigerado balé, com a intensidade de uma estrela que deixou sua faceta mais obscura aflorar, a fim de entrar no personagem, quase de modo literal.

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