5 de mar. de 2011

Os devaneios oníricos bem arquitetados de A origem

Incensado como um dos filmes mais inventivos de 2010, A origem (Inception, 2010) é um trabalho de categoria engendrado por Christopher Nolan. O mesmo diretor que foi responsabilizado pela retomada do fôlego de Batman retornou às telas com uma trama original e calcada em inúmeras estripulias narrativas, que exigem do público atenção redobrada a cada instante de sua duração. Seu protagonista é Don Cobb, interpretado por um inspirado Leonardo DiCaprio, que vem pavimentando uma carreira de talento a cada filme que estrela, especificamente nos últimos 5 anos. Na pele de um ladrão de sonhos, ele é puro vigor dramático, e uma das principais razões para se acompanhar o filme em questão.

O trabalho de Cobb é invadir o subconsciente alheio e roubar sonhos, daí seu epíteto de ladrão. Com essa função nada trivial, ele teve de desenvolver interessantes mecanismos que lhe permitem se infiltrar com propriedade na mente de pessoas que podem oferecer alguma ameaça a quem o contratou para executar a tarefa. Essa premissa radical é o grande chamariz de A origem, que é, antes de tudo, uma ficção científica, mas também tem muitos elementos dramáticos, que talvez ajudem a entender suas indicações ao Oscar, fato que será comentado mais adiante. A sinopse do filme se completa pelo seguinte dado: Cobb recebe uma nova missão pela frente, que é oposta às que ele sempre cumpre. Ele tem agora de implantar uma ideia na mente de um homem importante, daí a tal “inserção” presente no título original da obra.
Com a tarefa de introduzir um pensamento nas mãos, Cobb acaba conhecendo e se aproximando de pessoas que o auxiliarão no trabalho. Uma delas é Ariadne (Ellen Page), uma jovem talentosa para arquitetar construções de que Cobb necessita para montar um arcabouço de imagens perfeito para o êxito de sua função. Ela exerce, de certa forma, a curiosidade e os questionamentos do espectador, que se pergunta o tempo todo como serão alcançados os objetivos do protagonista. A origem tem a seu favor uma direção eficiente de Nolan, que consegue hipnotizar o público com um arsenal de imagens bem filmadas, simplesmente extáticas. O filme é um daqueles arrasa-quarteirões claros, que cumpre com louvor seu papel de entretenimento legítimo. Mas cabe reforçar que o longa-metragem não subestima a inteligência de quem está assistindo a ele, como é quase de praxe com outras obras de sua estirpe. Na verdade, a estima bastante, daí a necessidade de se estar constantemente atento aos desdobramentos de sua trama.
Entretanto, um bom filme não se faz somente com um bom roteiro ou um bom enredo. É preciso que outros ingredientes entrem na “receita”, no sentido mais artesanal que esse vocábulo pode carregar, e A origem o faz. Leonardo DiCaprio, por exemplo, é um dos grandes trunfos que Nolan tem nas suas mãos. Ele exibe uma notável capacidade de injetar força ao seu personagem, que está presente em praticamente todas as cenas. Seu Cobb demonstra um misto de desalento com desespero gerada pela ausência precoce de sua mulher, Mal (Marion Cotillard), que, desde o início do filme, já está morta. Como fica nítido para quem assiste à história, ela é o grande obstáculo que Cobb tem de superar para não ser soterrado em meio às suas próprias armadilhas cerebrais. Cotillard, por sua vez, foi devidamente abraçada pela indústria hollywoodiana, e faz aparições fugidias em meio à narrativa frenética de A origem. Ela prova, com esse papel, que consegue transitar com facilidade entre o cinema mais comercial e aquele mais comprometido com valores artísticos estritos, vide sua atuação soberba em Piaf – Um hino ao amor (La môme, 2007).
Outro que transpira talento é o franzino Joseph-Gordon Levitt. Depois de encarnar um protagonista que se tornou o sonho de consumo de várias mulher em (500) dias com ela ((500) days of Summer, 2009), ele dá vida a Arthur, mais um dos membros da equipe que auxilia o protagonista em sua empreitada pelo universo onírico. Levitt é um jovem talento muito bem escolhido por Nolan para seu personagem, e oferece segurança vivendo mais um homem inesperado para sua constituição física, o que corrobora a tese de que a aparência não deve ser o único critério quando se pensa em um ator para um papel. Sua presença em cena nos faz enxergar que o elenco esbanja coesão, o que é outro aspecto fundamental para o sucesso do filme.

A origem conquistou os espectadores e chamou a atenção da crítica com sua quase ausência de convencionalismo. A Academia soube dar valor ao trabalho de Nolan, dando-lhe as indicações de melhor filme, melhor roteiro original, melhores efeitos visuais (claro!) e algumas outras. Para desalento de seus entusiastas, que não são poucos, o filme perdeu na principal categoria em que concorria, já que um certo O discurso do rei (The king’s speech, 2010) papou o prêmio. Na noite do Oscar, A origem acabou premiado apenas nas categorias técnicas, algo que serviu, de algum modo, como um recado dos votantes: é um filme muito mais visual que propriamente pleno de conteúdo. Fãs mais xiitas podem discordar veementemente, mas a suposta afirmação tem lá seu fundo de verdade.
Ao longo de suas mais de duas horas de projeção, o filme inova, inventa, enreda, surpreende, confunde, explica, mas chega perto de seu final acompanhado de uma incômoda sensação de enfado e de confusão mental. Afinal, a impressão que se tem é de que uma ideia genial escrita sobre o papel não chegou a ser um filme igualmente sensacional. Apresentar o sonho como uma espécie de castelo de cartas que se vai desmoronando à medida que o sono vai acabando é realmente interessante, mas não exatamente original. Brincar com a posição limítrofe entre sonho e realidade em que vivemos também é válido, digno de ser acolhido, mas essa premissa não caminha a contento para seu desfecho. Com isso, A origem exibe sua última sequência deixando um tipo de vácuo narrativo que funde a consciência do espectador, levando-o a questionar sobre seu final abrupto. É bem verdade que essa opinião é pertencente a uma minoria que acompanhou o filme, mas é exatamente esse o dimensionamento em que um espectador sedento de um roteiro mais bem-amarrado se insere. Por fim, resta afirmar que A origem é um filme com roteiro e direção, mas que vale, como um todo, apenas pela arquitetura imagética.

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