O gênero dramático ganhou mais um bom exemplar com o lançamento de Fatal (Elegy, 2008), quarto filme da diretora Isabel Coixet. A catalã cinquentona decidiu adaptar um romance de Philip Roth, intitulado O animal agonizante, para empreender um ensaio denso e intenso sobre as chagas da vontade e o despedaçamento da prepotência. No papel de protagonista, temos um inspirado Ben Kingsley, que personifica David Kepesh, um professor universitário que se gaba de ter um bom domínio na cama quando se trata do sexo feminino, assim como se garante fortemente no campo da sedução e da conquista. O personagem é a encarnação de dois temas caros a Roth: o erotismo e a erudição. Cada um desses aspectos se manifesta com intensidade na vida de David. O primeiro, por conta de seu comportamento hedonista, e o segundo, por suas tiradas cheias de referências ao ambiente academicista.
Coixet dirige a adaptação procurando extrair a essência do texto de Roth, mas não se furta de construir uma obra com identidade própria, impedindo que ela seja classificada como um decalque do romance idealizado pelo escritor. A começar pelo título do filme, que será comentado mais adiante. Quanto ao protagonista, a sua vida de triunfo sobre o sexo feminino começa a ficar abalada depois que entra em cena a sensual Consuelo (Penélope Cruz), uma das alunas de David, a quem ele busca seduzir e encantar com seu palavrório rebuscado e e seu charme cinqüentão. A jovem é extremamente bonita, mas David está longe de querer uma relação duradoura com ela, deseja apenas que ela seja mais uma em sua lista de conquistas. Entretanto, a segurança com que o professor transita pelos seus encontros fugazes é abalada pelo ciúme doentio de Consuelo que começa a brotar em seu coração.
A partir dessa fase do filme, David vai percebendo a sua egolatria entrando em derrocada, um processo que se acelera à medida que ele percebe sua discrepância física em relação à amante. David toma ciência de todo o frescor jovem que Consuelo exala, enquanto enxerga a clara aproximação de sua decrepitude, o que também o leva a discussões cerebrais com seu grande amigo George (Dennis Hooper), um homem que o acompanha em suas jornadas de autoadulação e de busca pelo prazer. Entre um e outro set de jogos de tênis, eles dialogam sobre o caráter por vezes fastidioso de viver, bem como da dificuldade de relacionamento entre homens e mulheres, algo atemporal e irrestrito a espaços geográficos. Ele teme desesperadamente ser deixado por Consuelo, fato que acaba se consumando em pouco tempo, gerando desolação nele.
Mais tarde, é Consuelo quem voltará a procurá-lo, movida pela necessidade de pedir-lhe um favor do qual depende sua vida, e essa se mostra a grande reviravolta na trama. Sobre o personagem David Kepesh, é interessante comentar que ele é uma figura recorrente na literatura de Roth, já que apareceu em livros anteriores do autor: O seio (1973) e O professor do desejo (1977). Sua figura representa com propriedade o espírito egocêntrico do homem moderno, sempre afeito às manifestações de seu bel-prazer, ao qual quer satisfazer indiscriminadamente. A fonte de suas grandes preocupações, contudo, está justamente em uma personagem feminina, levando-o a não saber mais como agir para afirmar e reafirmar seu poderio sobre ela. Até mesmo a amante e amiga de longa data, Carolyn (Patricia Clarkson), que nunca lhe cobrou mais do que sexo, demonstra uma certa noção de seu estado, e procura entender o que se passa realmente com ele.
Fatal tem um título original que difere do que foi dado em português. A tradução literal para a nossa língua é “elegia”, um tipo de composição poética originário da tradição grega antiga, em que há um tema triste sobre o qual se discorre, geralmente o amor. A apropriação feita por Coixet é louvável, pois o filme evidencia exatamente essa acepção literária do vocábulo, sublinhada pelo pessimismo que atravessa a pseudo love story de David e Consuelo. O roteiro foi adaptado por Nicholas Meyer, e marca a primeira vez em que Coixet não filma um texto escrito por ela mesma, o que é um detalhe interessante, já que nos permite observar como ela se apropria de um roteiro alheio. Ao longo de sua carreira como diretora, ela entregou dramas fortes ao público, formando duas parcerias seguidas com Sarah Polley, com quem filmou Minha vida sem mim (Mi vida sin mi, 2003) e A vida secreta das palavras (The secret live of the words, 2006). Ambos os filmes são tratados profundos sobre seres humanos em buscas lancinantes por manifestações de afeto. É uma grande pena que o trabalho mais recente da cineasta jamais tenha chegado ao Brasil. Map of the sounds of Tokyo (2009) foi exibido apenas no festival de Cannes de 2009, sem qualquer chance no circuito comercial.
Outros elementos atestam a qualidade de Fatal como filme e como exercício de reflexão sobre a finitude dos sentimentos. Entre eles está o esmero visual oferecido pela direção de fotografia de Jean-Claude Larrieu, um esteta da imagem que ostenta numerosos títulos fotografados em sua carreira. No caso do filme criticado, a luz atravessa os personagens com discrição, revelando suas facetas pouco a pouco, e deixando no ar que existem muitas outras características que permanecerão implícitas sobre a personalidade daqueles homens e mulheres tão verossímeis. Larrieu brinca, de certa forma, com o aspecto chiaroscuro de David e Consuelo, que apresentam sempre comportamentos e visões antagônicas, mas também diletantes. Ele é colaborador habitual de Coixet, tendo fotografado todos os filmes da diretora citados até aqui, além de assinar a fotografia de filmes como Paris, te amo (Paris, je t’aime, 2006) e Baby love (Comme les autres, 2008), duas produções francesas de grande repercussão mundial.
No mais, Fatal é a encenação acertada de conflitos dolorosos, apoiada em desempenhos fantásticos dos atores principais. Kingsley já comprovou seu talento para papéis que exigem versatilidade, tendo sempre algo mais para apresentar em cena. Sua parceria com os outros veteranos do elenco, Clarkson e Hopper, é uma espécie de jogo cênico delicioso de se acompanhar, executado com veemência e afinco. Cruz, em uma de suas performances em um inglês um tanto quanto escorregadio, transparece um amadurecimento importante com atriz, num de seus trabalhos mais reconhecidamente benfeitos, somado a belas parcerias com Almodóvar. Desse filme em diante, ela ainda nos brindaria com incríveis personagens. Também sobra espaço para Peter Sarsgaard, ator pouco aproveitado na maioria dos filmes em que atua, mas que aqui tem um bom espaço como o filho de David, com quem mantém uma relação muito tumultuada. Juntos, esses aspectos se somam a uma linguagem seca, claramente vinda de alguém experiente, que já provou da amargura de certos momentos da vida.
18 de mar. de 2011
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