3 de mar. de 2011

Magnólia, uma jornada de vácuos afetivos entrecruzados

Paul Thomas Anderson surgiu fazendo muito barulho com Boogie nights – Prazer sem limites (Boogie nights, 1997), em que adentrava os bastidores da indústria pornográfica para investigar a sua ascensão e a sua queda. Dois anos depois, entregou o segundo exemplar de sua filmografia, o monumental Magnólia (Magnolia, 1999), em que refinou um estilo que apresentara em se début cinematográfico: o cruzamento de tramas paralelas. Por meio desse segundo trabalho, Anderson apresenta uma filiação direta a Robert Altman, observação feita pela crítica tão logo o filme chegou às salas de exibição. Trata-se de uma narrativa múltipla cujo grande elo são as vivências de personagens assinalados pela carência afetiva.

Nessa espécie de tratado da condição humana, o fio condutor é a história de Jimmy Gator (Philip Baker Hall), apresentador de O que as crianças sabem?, um programa televisivo de auditório que revela crianças-prodígio através de perguntas e respostas. O produtor do programa é Earl Partridge (Jason Robards). Em estágio terminal de câncer, ele tem a companhia constante de Phil Parma (Philip Seymour Hoffman), seu enfermeiro particular, e deseja reaver o contato com seu filho, o egocêntrico Frank (Tom Cruise), um guru de autoajuda masculino que também tem seu programa na televisão. Através dessa trama, todas as outras serão desenroladas, compondo um mosaico riquíssimo da fauna de Los Angeles, e amplificando a força de Magnólia como um petardo dramático calcado em um roteiro muito bem alinhavado em em interpretações brilhantes.
A direção de Thomas Anderson permite que todo o elenco brilhe, cada ator a seu tempo e a seu modo, o que contribui para fazer do filme uma chance de ouro de ver bons nomes em cena. Ele repete aqui sua parceria com Philip Seymour Hoffman, com quem havia trabalhado em seu primeiro filme, assim como volta a trabalhar com Julianne Moore. Aqui, ela é Linda, a mulher de Earl, que se casou com ele por interesse, mas que acabou por descobrir que agora sente amor verdadeiro pelo marido. Sua performance irrepreensível como uma pessoa frágil que chega ao desalento diante de uma descoberta em meio a uma circunstância adversa é magnetizadora da atenção do espectador que coloca seus olhos nela. Moore é daquelas atrizes que inundam a cena em que está presente, catalisando o foco para seus desempenhos nunca menos que ótimos.
Tom Cruise, por sua vez, é um poço de altivez de espírito e de desorientação latente. Aprovado com louvor na escola do abandono, ele canaliza seu descontentamento com sua condição lançando conselhos descarados para os machos interessados de alcançar êxito em suas empreitadas amorosas. O ator comprova sua capacidade de surpreender e ir além do papel de galã com seu Frank. É certo que o papel também exigiu parte do tônus muscular do ator, mas sua fina estampa é um acessório diante da carpintaria dramática cuidadosamente sinalizada pelo roteiro do próprio diretor. Seu desempenho foi merecidamente reconhecido com uma indicação ao Oscar de melhor ator coadjuvante na 72ª edição da cerimônia, prêmio que foi para as mãos de Michael Caine, que concorria por Regras da vida (The cider house rules, 1999). Cruise oferece uma mistura de carência recolhida com ferocidade explícita que tornam seu personagem distante de uma composição maniqueísta. Vale lembrar que, no mesmo ano, ele foi dirigido por Stanley Kubrick, com quem rodou De olhos bem fechados (Eyes wild shut, 1999), derradeiro filme do, por vezes, superestimado diretor, em que teve seu talento como intérprete posto à prova.
Essa crítica pretende-se centrifugadora no que tange a uma descrição taxonômica dos numerosos personagens que desfilam ao longo da narrativa de Magnólia, bem como de suas intrincadas tramas. Mas cabe destacar o trabalho de atores que dão peso dramático a quem interpretam. Além de Cruise e Moore, outro que oferece uma atuação brilhante é William H. Macy, que encarna Donnie Smith, um homem amargurado que, quando criança, participou do programa de Earl, e se mostrou inteligentíssimo, batendo recorde entre os prodígios que ali estiveram. Ele tornou-se um adulto fracassado, e persegue a felicidade sem saber exatamente onde ela está, caminhando a esmo pela vida e vendo sua situação se complicar mais ainda depois de sua demissão. Está sempre de bar em bar afogando suas mágoas, e é a oportunidade de Macy, um ator pouco conhecido do grande público, demonstrar sua enorme capacidade como intérprete.
Para dar conta de tantas subtramas que se alternam e se entrecruzam, Magnólia alcança mais de três horas de duração, colocando o filme em posição de emparelhamento com calhamaços do naipe de Dogville (idem, 2003). Essa longa duração permite classificá-lo como um poderoso tratado sobre a falta de afeto dos tempos modernos. Uma falta que é repelida, mas que se encontra a cada vez que os seres humanos dão sua agressividade em vez do seu carinho, empoeirando os corações de um contato direto com a gentileza e a docilidade. A começar por Earl, os personagens desse filme estão em busca de um contato para a demonstração de seus afetos recolhidos. Thomas Anderson nos envolve nessa atmosfera de desalento, apresentando uma Los Angeles multifacetada e fragmentária, fotografada em tonalidades múltiplas, por vezes êneas, e marcada por sons de espécies variadas.

O espectador que entra em contato com a projeção desse filme é desafiado a montar pacientemente o quebra-cabeças de que ele é feito, cujas peças vão demonstrando encaixes surpreendentes. Para quem é habituado a ficar tentanto adivinhar o final dos filmes, assim com o que virá na próxima sequência, Magnólia é uma fonte profunda de frustrações, pois os rumos tomados pelos personagens, engendrados pela mente criativa de Thomas Anderson. A similitude com um filme de Robert Altman se dá pelo fato de haver um cruzamento de trajetórias que vai se alinhavando aos poucos em Magnólia. O grande exemplo desse aspecto no cinema de Altman está em Short cuts – Cenas da vida (Short cuts, 1993), em que tramas aparentemente desconexas iam se inserindo umas nas outras com fluidez aprazível.
Um destaque inevitável é a chuva de sapos que ocorre no filme, uma sequência sempre lembrada e comentada quando se fala dele. Esse momento, que surge nos minutos finais da narrativa, despertou opiniões diversas entre os espectadores e entre os críticos. Há quem considere um momento uma inserção de realismo fantástico em um enredo tão crível, ao passo que há outros que entendem a tal chuva como uma referência explícita a uma das dez pragas lançadas no Egito, quando Israel estava para ser liberta da escravidão e caminhar rumo à Canaã, conforme narra a passagem bíblica do Êxodo. Há também quem despreze a sequência, tendo-a como dispensável e estranha. Seja como for, ela acaba sendo um dos simbolismos adotados pelo diretor, que exibe coragem e talanto de sobra para falar da eterna busca pela felicidade, da constante necessidade de um rompimento com um estado de coisas e de uma reinvenção permanente. Longe de tentar cristalizar suas verdades, ele empreende com sua segunda incursão como realizador uma comovente jornada de vácuos afetivos entrecruzados.

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