Um dos maiores achados do cinema nacional recente é, sem sombra de dúvida, "Jogo de cena". Concebido como um documentário, o filme de Eduardo Coutinho é daquelas obras que a crítica tem dificuldade de encaixar em rótulos. Afinal, nunca se sabe ao certo se aquilo a que se está assistindo é realidade ou se se trata de uma ficcionalização do real. É sobre essa temática tão complexa quanto estimulante que se debruça o longa, que marca um passo importante rumo à excelência na procução audiovisual do Brasil.
Nada do que se vê acontecendo em "Jogo de cena" é tão simples como aparenta. Inicialmente, um espectador mais incauto pode acreditar que são apresentadas apenas conversas sobre assuntos corriqueiros, como acontece e, tantos outros documentários. Mas o filme (?) é muito mais do que isso. Para começar, há apenas mulheres em cena, resultado de um garimpo feito pelo diretor ao longo de algumas semanas. Ele colocou um anúncio no jornal convidando mulheres de todas as idades para contar suas histórias de vida, ou algum episódio específico que as tenha marcado. Essa espécie de entrevista quase sem a intervenção de um interlocutor seria filmada por Coutinho no teatro Glauce Rocha, no centro do Rio de Janeiro. Foram aproximadamente 83 mulheres ouvidas durante meses, as quais tocaram nos assuntos mais diversos.
Elas falaram abertamente sobre escolhas, arrependimentos, atitudes que tomaram em momentos de raiva, relacionamentos amorosos e com pais e filhos, sempre com muita coragem e franqueza. Coutinho disse à época do lançamento do filme que tinha certeza de que ele havia dado certo por causa da presença feminina no "elenco". Segundo ele, os homens não teriam a mesma intrepidez para contar com riqueza de detalhes daquilo de que mais se recordam, ou daquilo que mais os aflige. Esse desprendimento para contar a própria história tipifica as mulheres. "Jogo de cena", no entanto, não se resume a uma colagem de depoimentos mostrados uns após os outros. Existe um detalhe absolutamente crucial, que faz do filme uma obra singular.
Aliada à espontaneidade das mulheres comuns, que aceitaram abrir suas vidas sem reservas, há a presença de atrizes de talento, como Andréa Beltrão e Marília Pêra. Elas foram escolhidas a dedo pelo diretor a fim de que desempenhasseum uma função importantíssima para o longa. Cada uma poderia escolher uma das histórias de vida das mulheres que foram entrevistadas, de modo que as recontassem como se fossem elas mesmas a viver aquilo tudo. Somado a isso, Coutinho pediu gentilmente que elas pudessem contar algo que jamais haviam dito na mídia antes, que revelariam no filme. O poonto-chave desse pedido é que essas histórias da vida pessoal das atrizes são contadas em meio àquilo que seria a representação delas da vida das mulheres que elas decidiram interpretar. E é esse detalhe que causa o embaralhamento entre realidade e ficção que caracteriza o filme.
Valendo-se desse recurso engenhoso, Coutinho exige de seu público uma atenção redobrada: afinal, aquilo a que se está assistindo é uma mulher comum falando de sua própria vida, uma atriz fazendo uma representação ou uma mulher simples que está dando ares de ficção ao seu discurso. Essas são apenas três das possibilidades que se levantam na mente do espectador à medida em que o filme prossegue, deixando sempre no ar a incerteza sobre a veracidade, ou mesmo a falsidade, do que se lhe apresenta diante dos olhos. A tese de que todos representamos na vida, emm alguma instância, ganha reforço com a proposta de Coutinho. Assim fica a questão instigante de que há um pouco de ator em cada um de nós, e mesmo nas falas menos elaboradas podemos imprimir uma dose de ficção. Tudo depende de para onde nosso olhar e nossa intenção estão voltados no momento.
Interessante também é acompanhar a reação de Andréa e Marília ao narrar das histórias que escolheram. Além delas, Coutinho também convidou Fernanda Torres e Mary Sheila para falar de si e falar como se fosse outras mulheres. Elas estão espalhadas ao longo do filme, o que contribui para dificultar ainda mais a compreensão daquilo que é fato e daquilo que é ficção. Essa é a grande sacada de "Jogo de cena", que faz do filme um material excelente para se observar o comportamento humano diante da contação de uma história. Há sempre um toque de ficção naquilo que dizemos, pois trata-se de nosso olhar subjetivo acerca do que falamos. E esse olhar faz toda a diferença.
14 de abr. de 2010
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