16 de abr. de 2010

"A partida", um belo conto sobre o medo da morte

O cinema japonês deu o ar de sua graça na festa do Oscar em 2009 em grande estilo. Depois de concorrer ao maior prêmio da área, "A partida" saiu vitorioso, levando a estatueta para sua casa do outro lado do mundo. Importante é salientar que a vitória foi bastante justa, já que o filme tem muitos méritos que justifiquem sua apreciação. O cerne da trama é a história de vida de Daigo Kobayashi (Masahiro Motoki), um jovem que demonstra ser bastante calmo e sereno em relação à própria vida. No começo do filme, ele faz parte de uma simpática orquestra na qual atua como violoncelista. Aquele é o ofício sobre o qual ele tem certeza de que é o que tem talento para fazer.

Mas logo surge um revés, que será o elemento catalisador das transformações que sucederão ao personagem, tirando-o de sua zona de conforto. A orquestra da qual ele faz parte é dissolvida, devido a questões de ordem financeira. Isso o obriga à partida do título em português, já que ele decide retornar à sua cidade natal junto com a esposa Mika (Ryoko Hirosue). A volta ao lugar onde nasceu é também uma volta para o interior dele mesmo, já que a cidade na qual se cresce é sempre um reservatório de recordações, boas e ruins. Assim também o é para Daigo, que reencontra a família, mais especificamente seus pais, com quem sempre teve uma relação boa, mas um tanto diplomática. Esse retorno forçado leva Daigo a rever suas próprias expectativas, e a lidar com alguns de seus fantasmas.
Uma vez de volta à sua cidade, ele precisa encontrar um novo trabalho, e é quando o jovem finalmente encontra uma ocupação que o filme dá uma guinada importante. Ele chega a um pequeno estabelecimento através de um anúncio no jornal, que informa haver uma vaga para uma ocupação que não exige qualquer experiência, além de pagar muito bem ao funcionário. Interessado nessa combinação perfeita, Daigo encontra o local, e uma simpática atendente lhe explica com vaguidão do que se trata o emprego. Ela diz que ali eles ajudam as pessoas a fazer boas viagens. Com isso, Daigo pensa que irá trabalhar em uma agência de turismo, e se espanta com a dispensabilidade de seu currículo e de uma entrevista formal com o dono do negócio. É essa a ideia que ele passa para a esposa, que até gosta de saber do novo trabalho do marido.

Mas ele acaba descobrindo que não é exatamente viagem em seu sentido corriqueiro que a firma oferece aos seus clientes. Daigo se dá conta de que está trabalhando em uma espécie de escritório funerário, e terá de atuar como preparador de corpos. Cabe ao jovem ajudar seu patrão a arrumar cadáveres antes que eles sejam enterrados, para que tenham um velório digno e sejam transportados para uma outra vida com toda a dignidade. Esse novo trabalho acaba fazendo com que, aos poucos, sua relação com a morte seja modificada. Porém, não é nada fácil para Daigo assimilar logo a sua função. Sua primeira experiência é simplesmente desastrosa, já que ele não demonstra ter estômago para lidar com aquela situação tão surreal para a maioria como se fosse um ato comum. E acaba quase vomitando. Essa atitude quase põe seu emprego a perder, mas ele pede uma segunda chance, pois o salário que recebe por isso é alto, e dali dependerá seu sustento.
Enquanto isso, sua esposa nem faz ideia de que o marido está lidando com mortos. Quando o fato vem ao seu conhecimento, entretanto, sua reação é a pior possível, já que a atividade desempenhada por Daigo é cercada de todos os tipos de preconceitos. Mika exige que ele abandone o trabalho, se quiser continuar casado com ela. Daigo prometa atender seu pedido, mas recua diante da afeição que já adquiriu por seu chefe. De fato, o personagem é muito carismático, e demonstra muita sabedoria e resignação diante dos fatos da vida. Na verdade, é uma característica quase unânime do povo oriental. Além disso, com o passar do tempo em seu trabalho, Daigo percebe que encontrou naquilo que está fazendo sua verdadeira vocação, já que se torna um exímio preparador de corpos, surpreendendo inclusive seu patrão. Até se esquece do quanto amava tocar seu violoncelo. Diante de sua recusa em deixar o emprego, Mika decide sair de casa, abalando, assim, casamento dos dois. Daigo não sei deixa abater pela visão condenatória das pessoas à sua volta, o que evidencia que seu novo trabalho lhe deu mais coragem para encarar a vida.
Partindo desse argumento um tanto quanto dolorido, Yojiro Takita dirige um filme belo e delicado, de cores frias que traduzem um estado de espírito de contemplação e introspecção. É o modo contido, quase legendário, que tipifica muito bem japoneses e outros povos naturais do Oriente. "A partida" não é feito de sobressaltos, e exige de seu espectador uma certa calma, já que seus 144 minutos de duração transcorrem com a fluidez de um pequeno rio. Não significa que seja tedioso, apenas que passa com uma dose de vagarosidade que se encaixa perfeitamente em seu enredo. É um filme feito para mentes que se permitem inclinar para o aprendizado, já que, de certa forma, pode ajudar a rever a relação do público com a morte. O único senão fica por conta de parte da trajetória do protagonista. Colocar um homem diante de uma situação nova, com a qual ele não sabe lidar inicialmente, e depois torná-lo o melhor naquilo, é um pouco clichê. Mas nada que comprometa seriamente a estrutura e o acabamento de uma história pulsante, que sobrevive na memória muito tempo depois da subida de seus créditos.

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