9 de abr. de 2010

A efemeridade da vida revisitada em "Memórias"

Ao iniciar da década de 80, Woody Allen decidiu se lançar novamente naquilo que faz com talento incontestável: dialogar com a vida através da metalinguagem. Esse recurso poderoso rende um filme sensacional como "Memórias", de clara inspiração felliniana,e um dos maiores acertos da carreira do cineasta novaiorquino. Aqui, ele mais uma vez assume o papel de protagonista, interpretando Sandy Bates. Ele é um cineasta de sucesso, que está numa fase de rememoração da vida e da carreira bem-sucedida. Apenas essa sucintadescrição já dá conta de mostrar que há muito em comum entre o enredo do filme e o enredo da própria vida de Allen. E é caminhando nessa tênue fronteira, que, ás vezes, parece desaparecer, que o diretor engendra essa pequena pérola. Pequena mesmo, já que toda a trama está condensada em 91 minutos.

Sandy é homenageado com um festival de seus filmes, o que o leva a se confrontar com uma série de lembranças, nem todas tão agradáveis. Esse é o grande tema do filme: a capacidade que o ser humano tem de armazenar dados, fatos, informações, pessoas, cores, texturas e tudo o mais que passa pelo campo das sensações. Um filme que se calca nesse assunto, inveitavelmente tem um quê de afetivo, e é esse o caso de "Memórias". Allen se vale de seu humor bastante peculiar para trazer à tona aquilo de que mais gosta de falar. Seu alter-ego Sandy traduz as angústias que todo ser humano carrega, em maior ou menor escala. Ao rever sua trajetória no cinema, ele também reconsidera os passos que deu na vida pessoal, num reencontro consigo mesmo. A fotografia em preto e branco, que ele já utilizara em "Manhattan" no ano anterior, reforça a ideia de um mergulho no interior da alma e do coração.
Mas a jornada emocional de Sandy é temperada com algumas rodelas de humor, o que tornam o filme uma obra inconfundível. Mesmo quem não é fã do diretor sabe reconhecer de longe quando está diante de um seus longas. Esse aspecto reforça o diálogo que Allen trava com um dos maiores cineastas de todos os tempos: Ingmar Bergman. Ele já confessou várias vezes que o sueco é seu diretot predileto, e aqui faz uma ponte interessante com o Bergman de "Morangos silvestres", que pode ser considerado o filme-símbolo da busca pela identidade através das lembranças. Somos feitos das nossas memórias, e essa constatação pulsa a cada fotograma do filme, que tem em seu elenco outro grande trunfo. A presença de Charlotte Rampling enriquece cada cena, pois a atriz tem um impressionante carisma, que faz com o que o espectador não consiga tirar os olhos dela sempre que aparece. Sua Dorrie é apenas uma das várias mulheres que já cruzaram o caminho de Sandy, mas certamente merece ser sempre relembrada, por irradiar charme.

"Memórias" tem alguns momentos de diálogo direto com o público, que é convidado pelo diretor, tanto o de dentro do filme quanto o próprio Allen, a navegar pelas águas das recordações que fazem parte de sua vida. Não há como não enxergar um certo teor autobiográfico nessa obra, o que não é nem demérito nem grande qualidade. O longa também é marcado por uma estética simples e eficiente, além de uma economia narrativa exemplar. Normalmente prolixo em suas afirmações e piadas, aqui Allen adota um comportamente um pouco mais conciso. É a prova de que também se diz muito com pouco. Por meio de "Memórias", ele traça um inventário sentimental das chagas e das virtudes que acompanham a vida de uma pessoa, e é muito difícil que até o final da sessão pelo menos um pouco de identificação não seja despertada. O cineasta é um esteta da palavra e, por esse seu domínio, consegue traduzir emoções com grande acuidade e talento. São esses traços que demarcam a diferença entre um artista da imagem e um vendedor de uma obra desacaradamente comercial, que ainda é maioria no cinema como um todo.
É um prazer acompanhar o ponto de vista sarcástico do personagem em relação à sua vida. Allen demonstra que o ser humano deve ter consigo uma característica muito importante: a capacidade de debochar de si mesmo em certas situações. Ele relembra que nem tudo na vida pode ser levado totalmente a sério, pois sempre há um toque se absurdo naquilo que vivemos. Nem sempre a vida faz sentido, por mais que tentemos achar um sentido nela. Essa é a tônica dominante de seu cinema, que já atravessou décadas e continua digno de interesse e admiração. E a graça de viver talvez esteja exatamente nisso, como Allen quer nos fazer enxergar.

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